"O ESPELHO", ÓPERA DE JORGE ANTUNES, O MAGO DOS SONS. CRÍTICA DE ALI HASSAN AYACHE NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.



     As novas linguagens musicais da ópera me dão calafrios, sempre que vejo uma com menos de 20 anos de vida fico angustiado. Os novos compositores buscam sons inaudíveis e geralmente criam uma barulheira incompreensível. Afirmo que ópera boa é ópera velha, com mais de 50 anos de composição, salvo raras exceções.
   A surpresa da apresentação de "O Espelho" de Jorge Antunes com libreto de Jorge Coli escrito em português e inspirado livremente, bem livremente no conto "O Espelho" de Machado de Assis está na composição musical. Antunes tem farta criatividade misturando melodias clássicas e sons inspirados nos negros africanos escravizados. A junção do clássico e do regional proporcionam ousadias melódicas excepcionais. Uma mistura de ritmos brasileiros que lembram a feijoada, o samba, a capoeira, a batucada e as danças típicas.
   O palco do Theatro São Pedro viu uma abertura impactante, mistura de sons distantes na temática e amarrados na essência. Duas passagens ressaltam a beleza musical de inspiração brasileira. O Lundu, dança e canto de origem africana que os escravos preparam para o Alferes. Tradição paraense com forte presença na cultura marajoara até os dias atuais. Dança sensual que empolga pelos movimentos dos corpos unidos. A letra (retirada de um Lundu) e a música (composta por Antunes) casam para formar uma atmosfera de sensualidade, cores, tons, sensações que hipnotizam o espectador.
   Outra explosão de criatividade é a cena de sexo entre os personagens João Jacobina e Frasa. Expõe a união do senhor branco com a escrava negra, nasce a miscigenação e forma-se o povo brasileiro. Música explosiva e delicada que irradia feromônios por todo o palco.
    Em um trecho um flautista toca "Casta Diva" ária da ópera "Norma" de Bellini. Introduzida por ser popular no Brasil no período que se passa a ação. 
   A Orquestra da casa tem passado perrengues neste ano. A confusão devido ao corte de verbas deixa todos os músicos de sobreaviso quanto a manutenção de seus empregos. Apesar de toda instabilidade o regente Pedro Messias extraiu musicalidade correta. 
   A direção de Caetano Pimentel dá força as cenas com impactante criatividade. Ousadia e tradição se combinam para retratar um libreto que peca pelo enredo sem ação. Os figurinos simples de Giorgia Massetani retratam com fidelidade o período e os cenários mínimos dialogam com a boa direção fazendo fluir a história.
   O Theatro São Pedro tem uma Academia de Ópera e um elenco estável, não faltam cantores de talento. Em "O Espelho" alguns deles exibiram seu dotes vocais e cênicos. Daniel Umbelino como João Jacobina cantou com voz cheia, densa e poderosa. Interpretação cênica emotiva, digna dos melhores atores profissionais de teatro. A melhor atuação de sua carreira. A Tia Marcolina de Andreia Souza construiu seu personagem com correção. Voz em constante evolução, com boa projeção e nuances variadas nos graves. Marli Montoni é descrita no programa como soprano falcon, não é para tanto, vejo nela um soprano lírico com excelentes agudos e boa técnica vocal. Seu ponto alto foi a arrebatadora cena de amor com João Jacobina. 
   Crise se vence com ousadia e criatividade. O Theatro São Pedro faz isso  com montagens simples e inteligentes, utiliza cantores de seu corpo estável, valoriza compositores brasileiros e mantém uma Academia de Ópera que é o maior celeiro de solistas brasileiro. Exemplo a ser seguido.
Ali Hassan Ayache

Cena de O Espelho, foto Internet.
   

Comentários

  1. Caro Ali, fico na dúvida se assistimos à mesma ópera. Embora a abertura, confesso, produza grandes expectativas na plateia, o conjunto da obra deixa a desejar. Não falo do corpo de artistas, tampouco da orquestra, da regência ou do figurino. Falo do libretto, que, lamentavelmente, poderia ter sido muito melhor. Principalmente porque faltam cadência e ação no decorrer da ópera (não vou entrar no mérito das letras em si, pretendo ser breve). Não sei você, mas senti falta de alguma bela ária que marcasse a composição, como costumavam fazer os grandes compositores - de Verdi e Puccini a Wagner e Antônio Carlos Gomes: sempre há algo de que a plateia possa se lembrar. Tanto que grandes óperas sempre trazem consigo grandes árias associadas: una furtiva lacrima, l'amour est un ouiseau rebelle, l'aborrita rivale, la donna è mobile, non più andrai, e lucevan le stelle... Além disso, a história segue de forma monótona e muitas vezes as falas das personagens não encontram uma contrapartida musical - como se estivessem fora de sincronia. Com exceção da abertura e da música que acompanhou a cena de sexo (a qual, particularmente, achei um tanto ousada, mesmo que haja a tendência de a plateia ser bem mais permissiva na contemporaneidade), pouco houve que se salvasse. O lundu me agradou bastante, no entanto.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

MAIS UMA NABUCCADA NO THEATRO MUNICIPAL DE SP. CRÍTICA DE ALI HASSAN AYACHE NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

"DON GIOVANNI" NO CIRCO: QUANDO A PALHAÇADA SUBSTITUÍ A ÓPERA. CRÍTICA DE MARCO ANTÔNIO SETA NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.