MACUNAÍMA/BALÉ DO TMRJ : RESGATANDO A IDENTIDADE MÍTICA DE UM HERÓI MODERNISTA. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

Macunaíma. Balé do TMRJ. Coreografia Carlos Laerte, coreografia. Ronaldo Miranda, música. Setembro/2022. Fotos/Conrado Krivochein.

Desde os anos 30, o Balé do TMRJ sempre privilegiou, ao lado do repertório clássico internacional, obras inspiradas em composições brasileiras (inicialmente, de Villa-Lobos e Mignone, a Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez) coreografadas inclusive por criadores do naipe de Serge Lifar e Léonid Massine.

Sendo  mais do que louvável a retomada deste ideário em compasso comemorativo nacionalista, tanto do Bicentenário da Independência como dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, através da primeira versão completa para o palco coreográfico de obra simbólica deste movimento – Macunaíma.

Na trilha de um clássico fenômeno de desconstrução investigativa dos paradigmas estilísticos e convencionalismos temáticos da arte e da literatura Macunaíma, 1928, criação mor de Mario de Andrade pós Semana de 22, alcança sua primeira reinterpretação sob o propósito de uma nova instauração coreográfica da identidade cultural brasileira, em torno deste “herói sem nenhum caráter”.

Depois das emblemáticas releituras para o cinema, com Joaquim Pedro de Andrade, 1969; para os palcos teatrais, por Antunes Filho,1978; na irreverente versão concepcional de Bia Lessa, 2019; e, agora, para o universo da dança contemporânea. Em idealização dúplice do coreógrafo Carlos Laerte a partir da composição inédita de Ronaldo Miranda, plena de brasilidade em seus calorosos acordes sinfônicos (aqui, conduzidos artesanalmente por Jésus Figueiredo à frente da OSTM).

Macunaíma. Balé do TMRJ. Coreografia Carlos Laerte, coreografia. Ronaldo Miranda, música. Setembro/2022. Fotos/Conrado Krivochein.

Enunciada (por intermédio do roteiro de André Cardoso) no fio condutor do original literário, embora sujeito a um olhar diferencial armado na contemporaneidade, mas sem a nuance mais transgressora de Bia Lessa ou o substrato mais assumidamente ingênuo e primitivista de Antunes Filho.

Num dimensionamento estético do encontro das linguagens do cinema e da dança através das inserções de imagens projecionais (Igor Corrêa), em proposta de interatividade pictórica, na fusão presencial dos bailarinos com as imagens cinéticas referenciais à floresta amazônica.

Sem deixar de lado uma citação fílmica, em tom de denúncia, sobre os absurdos de uma equivocada política de descaso ao meio ambiente, em flashes de incêndios, com a invasão exploratória das terras indígenas, sequenciada no polêmico  assassinato  recente de dois de seus grandes defensores (Bruno Araújo e Dom Phillips).

Em energizada performance coletiva de quase 50 bailarinos, entremeada por solos e duos (com destaques na atuação feminina de Márcia Jaqueline e das irmãs Claudia e Priscilla Mota), envolvendo o vigoroso protagonismo tríptico de Glayson Mendes, Rodolfo Saraiva e Edifranc Alves. Respectivamente representativo da trajetória em quatro momentos do personagem titular, de sua geração materna em ambiência indígena ao seu inusitado comportamental urbano e o seu libertário destino mítico como habitante do espaço sideral.

Numa progressão dramática em contextual cênico de rubricas soturnas, acentuadas por luzes entre sombras (Paulo Ornellas), num formalismo estetizante coesivo com os fotogramas em preto e branco mas indo além da tonalidade ideal. Ao escurecer o visceral paisagismo urbano muralista e a mais clara percepção do uso de traços aquareladas, no visagismo corporal e na indumentária (Wanderley Gomes), a partir do legado dos pintores modernistas de 22.

Onde a incisiva exploração gestual (Carlos Laerte) de corpos em conexão revela instintiva amarração rítmica de contrações musculares capazes de remeterem, simultaneamente, ao contraponto de um gestual indigenista à adequação da fisicalidade à herança afro-brasileira e aos movimentos da dança urbana.

Fazendo, enfim, desta proposta de buscas investigativas mais ousadas para o Balé do TM, um necessário e questionador instante cultural de um País em crise de identidade, ecoando nas palavras iconicamente visionárias de Mário de Andrade para contextualizar Macunaíma :“Eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo”...


                                        Wagner Corrêa de Araújo 



Macunaíma/Balé do TMRJ, está em cartaz no Teatro Municipal, de quarta a domingo, em horários diversos, até o dia 25 de setembro.

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