ENTRE A PELE E A ALMA /FOCUS CIA DE DANÇA : NA DECIFRAÇÃO COREOGRÁFICA DO ENIGMÁTICO UNIVERSO DE BOSCH. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
Entre a Pele e a Alma. Focus Cia de Dança. Alex Neoral/Coreografia. Junho/2024. Fotos/Léo Aversa. |
Há mais de meio milênio a criação artística do holandês Hyeronymus Bosch vem desafiando pelas suas intrigantes criações pictóricas, numa representação de cenas ora bizarras, ora plenas de lascividade, na passagem entre a era medieval e o renascimento.
E não é por mero acaso que seu tríptico - O Jardim das Delícias - tornou-se, assim, a maior atração do Museu do Prado (Madrid), seja para espectadores conservadores ou mentes mais libertárias, imergindo todos no provocante fascínio sagrado e profano de sua proposta plástica e temática.
Caso do coreógrafo Alex Neoral quando, sob a pulsão presencial expressiva desta emblemática pintura, decidiu que ela seria o signo conceitual e propulsor de sua próxima concepção inventiva para a Focus Cia de Dança, titulando a obra, muito a propósito, de Entre o Corpo e a Alma.
Não reproduzindo meramente o impacto causado pelo painel central, o Jardim das Delícias, ladeado por dois outros mostrando o Inferno e o Paraíso. Mas procurando reinterpretá-los à luz de um olhar visionário que sugestionasse, através de uma visceral performance dos nove integrantes da Cia, sua permanente conexão com os avanços coreográficos da contemporaneidade.
Onde um revelador design cenográfico (Natália Lana), acentuado por potenciais efeitos luminares (Anderson Ratto), priorizando tecidos aquarelados fracionados em tiras frontais móveis, serve às entradas e saídas de elenco numa visualidade que induziria à decifração dos mistérios espirituais e eróticos, entre o céu e a terra, o inferno e o paraíso.
Entre a Pele e a Alma. Focus Cia de Dança. Alex Neoral/Coreografia. Junho/2024. Fotos/Léo Aversa. |
Em coesiva atuação de uma convicta corporeidade dançante no uso de várias peças indumentárias que, em suas franjas ou por brilhos resplandecentes, remetem a figurinos de shows de Ney Matogrosso. Cuja trajetória transgressiva, como cantor performático, torna-se, aqui, um elo metafórico com a luxuriosa figuração dos personagens de Bosch.
Não só através dos caractéres de um sensualizado comportamental cênico/coreográfico, com sutis tons acrobáticos dos bailarinos, como pela envolvência de uma trilha autoral inédita. Poética e instrumental (Paula Raia e Sacha Amback), ora recitativa, numa voz atoral de Lucinha Lins, ou cantada por Ney Matogrosso, sob instintiva remissão ao diferencial sotaque que o celebrizou.
Na concepção do enredo que, sobretudo, levou Alex Neoral a se empenhar no entorno desta sua mais recente criação coreográfica, há a incidência afetiva de alguns fatores que marcaram sua ascensão como um dos nomes mais referenciais da dança em moldes brasileiros. A primeira é o apelo carismático que, desde sua infancia, foi exercido pelas imagens de um Ney Matogrosso soltando-se, segundo afirmou, no seu espontâneo jeito rebolativo, em exibições televisivas.
Completada por uma progressiva carreira como bailarino, coreógrafo, criador e diretor da Focus Cia que, agora, está alcançando três décadas, sem esquecer que ele foi, sequencialmente, se notabilizando por uma singular linguagem estética / coreográfica.
Além de transitar pela brasilidade musical/gestual de suas criações que levaram-no a ser um dos mais solicitados diretores de comissões de frente das escolas de samba cariocas. Fazendo, neste atual espetáculo, um conexo tributo alegórico à festa popular das alegrias “pagãs” com o Jardim das Delícias Terrenas.
Uma dinâmica energizada sendo imprimida por ele à corporeidade psicofísica dos exponenciais bailarinos neste ritual celebrativo do prazer dos sentidos, livre da culpa do pecado e longe de uma falsa moralidade apregoada, cada vez mais, pelos fanatismos religiosos. Sabendo, assumidamente, como vivenciar e conciliar o movimento direcionado ao encontro, sem preconceitos, da pureza e da sexualidade, num mundo paradisíaco “Entre a Pele e a Alma”.
Ecoando em processo reflexivo-especular nos líricos versos de uma das canções de Paula Raia, contextualizando a voz luminosa de Ney Matogrosso à magia da pintura de Bosch :
“Num gramado infinito / De Lagos azuis / Morangos gigantes / Bichos homens nus / Paraíso invertido / Metade de mim / Frutos proibidos / Delicioso jardim / Todos esculpiam / O pecado com as mãos / A luxúria lasciva e o perdão...”
Wagner Corrêa de Araújo
Entre a Pele e a Alma/Focus Cia de Dança estreou no Theatro Municipal/RJ, de sexta 28/06 a domingo, 30 / julho.
Comentários
Postar um comentário