"DON GIOVANNI" NO CIRCO: QUANDO A PALHAÇADA SUBSTITUÍ A ÓPERA. CRÍTICA DE MARCO ANTÔNIO SETA NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.


 Quando a Direção Mata a Música : O Colapso da Encenação Lírica Contemporânea

O último comentário do post“Uma Palhaçada: Aquecimento para a Ópera 'Don Giovanni'” do blog Ópera & Ballet revela uma crítica contundente à direção artística da montagem da ópera “Don Giovanni” no Theatro Municipal de São Paulo. O comentarista expressa descontentamento com a ambientação circense e elementos de palhaçaria, considerando-os uma deturpação da obra original de Mozart. Além disso, critica a suposta influência de ideologias contemporâneas na produção, utilizando termos como “esquerdopatas” e “lacração”. 

            É importante reconhecer que a arte está em constante evolução e reinterpretar obras clássicas pode ser uma forma de torná-las relevantes para o público atual. A ambientação em um circo e a inclusão de elementos de palhaçaria podem oferecer novas perspectivas sobre os temas da ópera, como a dualidade entre aparência e realidade, e a crítica social. No entanto, é essencial que tais adaptações sejam feitas com sensibilidade e respeito à essência da obra original.

         A crítica do comentarista vulgo anônimo, embora expressa de forma veemente, destaca a importância do debate sobre as abordagens contemporâneas na encenação de obras clássicas. É fundamental que o diálogo entre tradição e inovação seja conduzido de maneira construtiva, permitindo que diferentes interpretações coexistam e enriqueçam o panorama artístico. Ressalte-se que a marcação de cena muda a cada ensaio desta ópera, resultando numa miscelânea de ideias do referido diretor Hugo Possolo. Amplie-se o conteúdo em epígrafe, ressaltando-se a inexatidão na escolha dos intérpretes de certos personagens,  comprometendo o rigor da escrita musical desta que é uma preciosidade da obra de Mozart, e o que é pior; a inclusão de textos em português, preterindo os diálogos em italiano (linguagem original do libreto,  de Lorenzo da Ponte)

            Em suma, a diversidade de opiniões reflete a vitalidade da cena cultural e a necessidade de espaços para discussões abertas e respeitosas sobre as múltiplas formas de expressão artística.   

            Com a gravidade que o momento exige e a exasperação que só a decadência de um templo cultural pode provocar, venho registrar minha crítica veemente — e, sim, profundamente desalentada — à montagem da ópera Don Giovanni no Theatro Municipal de São Paulo, dirigida por Hugo Possolo. O que se apresenta sob o manto de “releitura contemporânea” nada mais é do que uma farsa grotesca travestida de vanguarda, uma pantomima desprovida de qualquer substrato artístico ou intelectual que justifique sua existência.

                Trata-se de uma encenação que representa o colapso do rigor cênico, a profanação da partitura mozartiana e a completa desarticulação do sentido dramatúrgico da obra. Ao converter Don Giovanni em um pastiche circense, impregnado de elementos de palhaçaria destituídos de pertinência simbólica, a direção não apenas comete uma violação à integridade do texto original de Lorenzo da Ponte, mas opera uma espécie de desmonte semântico, uma mutilação voluntária da densidade filosófica e moral que estrutura a ópera.

            A trivialização do trágico, a banalização do conflito, e a desconstrução arbitrária da forma operística revelam não ousadia, mas ignorância estética. E, pior ainda, arrogância disfarçada de “inovação”. Muda-se a marcação cênica a cada ensaio, como se a instabilidade fosse sinônimo de criatividade. Na verdade, trata-se da mais pura indigência conceitual. Os cantores — verdadeiros reféns dessa balbúrdia encenada — são jogados em um tabuleiro onde impera a incoerência gestual, a vacuidade simbólica e a inconstância rítmica.

            Não bastasse o desatino cênico, a substituição dos diálogos originais em italiano por textos em português configura um crime contra o espírito da obra. Trata-se de um gesto de prepotência cultural, que subjuga o idioma original — parte indissociável da musicalidade e da intenção poética do libreto — em nome de uma suposta acessibilidade que esconde, na verdade, um desprezo pelo rigor. A obra de arte não deve ser diluída para acomodar a ignorância, mas elevada para inspirar a elevação.

            A cereja desse bolo de despropósitos é o proselitismo ideológico que permeia toda a encenação. Não se trata de arte engajada — seria digno, se fosse. Trata-se de lacração vulgar, de acenos toscos à militância de ocasião, num jogo pueril de polarizações previsíveis. A arte, nesse contexto, é capturada por um discurso panfletário que substitui o conflito por caricatura e o símbolo por bordão. Reduz-se a complexidade da condição humana à superficialidade de slogans identitários. Mozart, nesse processo, é apagado — Da Ponte, silenciado — e o público, subestimado. Inexorável ! 

            Infelizmente, o caso de Don Giovanni não é isolado. A própria curadoria do Theatro Municipal revela uma tendência preocupante: uma programação que ostenta títulos como Ouvir as Cores: 100 anos de Física Quântica, cujo hermetismo pretensioso mascara uma evidente falta de coesão conceitual. São nomes que orbitam a vacuidade, construídos para impressionar incautos, mas que revelam o colapso de qualquer orientação estética consistente. E o que dizer da montagem de Porgy and Bess prevista, cercada de indefinições (solistas de vários personagens ainda não definidos e certos cantores que são anunciados e não aparecem à última hora; igualmente como ocorreu em AídaNabucco e, recentemente em O Guarani) e títulos estapafúrdios que transformam o nobre palco lírico em vitrine de experimentalismos mal formulados?

         Chegamos, pois, a um impasse ético e cultural. A ópera, que por séculos foi território do refinamento, do conflito ontológico, da elevação estética, está sendo corroída por direções que preferem o escândalo à substância, o efeito à essência, o gesto fácil à densidade. A arte lírica não sobrevive ao esvaziamento de seu núcleo simbólico. O Municipal, sob essa lógica, se converte em arena de vaidades irresponsáveis, onde a ignorância se disfarça de audácia.

            O público merece mais. O repertório exige muito mais. E o legado de Mozart clama por restauração urgente. Que esta crítica, dura e implacável, sirva como denúncia e como apelo: pela retomada do rigor, da profundidade e da dignidade artística no mais importante palco operístico do país.

Escrito por Marco Antônio Seta

Jornalista inscrito sob nº 61.909 MTB / SP

Comentários

  1. Não aguento mais essa mania moderna de substituir diálogos na língua da ópera pela língua local. Até faz sentido em algumas operetas, mas acho bem ruim em óperas, mesmo em Singspiel e em opéra comique. Por que, afinal, isso não é feito na Europa (os diálogos na lingua original são mantidos)? É só porque ali há elenco internacional e não haveria uma língua em comum entre eles? Confesso que fiquei bem decepcionada pelos diálogos em português em "O rapto do serralho", pois já tinha visto na França e mantiveram os diálogos em alemão. Sempre vi "A flauta mágica", inclusive no Brasil, com os diálogos em alemão - será que agora vai ser proibido? Os diálogos na língua local não necessariamente levam à inclusão, pois dependem de onde a pessoa está sentada no teatro. Se está na plateia, até provavelmente ouve bem. Se está na galeria, duvido muito que consiga entender sem legendas.

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    1. Fizeram isso com a Viuva Alegre no Municipal do RJ e ficou otimo! Tradução de Arthur de Azevedo. Mas isso, fez sentido por ser uma Opereta.

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    2. Engano seu. Na Alemanha e na França, por exemplo, é bastante usual fazer as óperas no idioma local. O próprio Don Giovanni já teve versões em alemão. Essa transposição é o menor dos problemas.

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    3. Vc está errado. Na Alemanha existe sim uma ópera, a Komische Oper de Berlin que eventualmente faz óperas traduzidas em alemão, mas as principais casas de ópera como Staatsoper Berlin e Deutsche Oper, além da Bayerische Oper de Munique fazem os espetáculos no idioma original com legendas. O mesmo em Paris .

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  2. O regietheater chegou ao Brasil! Essas produções do Municipal de Sp estão horriveis. Imagina o que vão fazer com Macbeth!!!


    O que mais promete esse ano é Les Indes Galantes que, embora tenha produção moderna, para mim é uma aula para esses diretores sem massa encefálica de como fazer algo moderno. Foi super elogiada pelo New York Times e eu mesmo a vi.

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  3. Comentário enviado por um anônimo onde tirei uma palavra que julguei ofensiva :"Um verdadeiro show de horror! Duturparam uma obra prima sob o tema "a ópera não pode ser elitizada". É isso que se vê nessa administração horrorosa da Sustenidos em conivência absoluta com o maestro : sucateamento da arte, sucateamento da temporada onde cada vez menos títulos de ópera estão presentes (Jamil Maluf em seu último ano de gestão como diretor do Teatro, realizou 8 OPERAS). Em outros tempos, a partitura jamais seria desrespeitada dessa forma, trocando os recitativos por diálogos chulos. Minczuk não sabe absolutamente NADA! tudo é feito como se fosse para ser trilha de corrida de cavalos no Jockey Club. Não sabe o que é um fraseado no canto, não respeita a respiração dos cantores, não sabe que em uma ópera a música está em função do texto. Está mais para animador de auditório do que para maestro (com sua entrada ridícula e a orquestra posicionada ao alto)"

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  4. Como insistem em convidar a Camila Provenzale para cantar! Super desafinada!

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  5. Cada vez pior! Dá medo do q farão c Les indes galantes!

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  6. Marco Antônio Seta disse : será que não está na hora de dizer basta em altos brados na récita de Dona Giovanni ?
    O que vocês acham caros amigos, leitores, amantes da ópera e da música clássica do genialissimo W. A. Mozart.

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  7. A montagem de Don Giovanni no Theatro Municipal de São Paulo, dirigida por Hugo Possolo, foi duramente criticada por distorcer a essência da ópera do genial Mozart. A crítica, alinhada à de Marco Antonio Seta, denuncia o uso de elementos circenses e palhaçaria como artificiais e incoerentes com a profundidade filosófica da obra. A substituição do italiano por português e a desorganização cênica revelam despreparo e desrespeito à tradição operística. A encenação é vista como um exemplo de como a busca por inovação pode resultar na banalização e no naufrágio de um clássico.

    Gostaria de um título para esse resumo?

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  8. Vamos mudar tudo!!!
    Afinal, quem é Mozart mesmo????!!!!

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  9. Com perdão do trocadilho, por que fizeram essa palhaçada com a obra de Mozart? Estou cansada dessa mediocridade atual, se não gostam da ópera como ela é, escrevam uma se forem capazes, e não destruam a original

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  10. A questão que coloco não é a abordagem de Don Giovanni sob uma perspectiva circense, aqui entendida como sinônimo de farsa. Até aí, não vejo problema algum, desde que a coisa seja bem feita. A questão que coloco é o fato de um diretor não conseguir sair do mesmo registro de sempre, e ficar refém dele eternamente. É fato mais que sabido, no meio teatral, que tudo em que Hugo Possolo toca vira circo. E este é o problema: um diretor que não consegue escapar da mesmice e desafiar-se a si mesmo, arriscando-se a enveredar por outras linguagens e abordagens. Pior ainda é quem o convida desconhecer essa característica dele. Como não acredito nesta última hipótese, pois seria uma ignorância imperdoável, a total responsabilidade pelo que se viu é de quem o escolheu.

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  11. Marco Antônio Seta disse:16 de maio de 2025 às 18:23

    Depois desse Don Giovanni, ninguém deveria mais comparecer às próximas apresentações de óperas no Teatro Municipal. O teatro deveria ficar às moscas e os artistas fariam a ópera para as paredes e para o órgão do Municipal. Seria a maior resposta do público a esses mercenários e enganadores do grande público paulistano e paulista, que muitas vezes advém do interior e comparece ao teatro para ser ludibriado, trapaceado, e mutilado com as lacrações que esse mesmo público já não mais suporta.

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  12. Um dos argumentos muito utilizados hoje em dia para justificar cortes em óperas é a duração do espetáculo. Acredita-se que o público não teria a paciência com espetáculos muito longos. Uma apresentação de Don Giovanni não costuma passar de 3h de duração, incluindo o intervalo. Mesmo com os cortes da “versão” de Hugo Possolo, seus enxertos fizeram com o que o espetáculo, além de arrastado em alguns momentos, durasse 3:30h no dia 03/05. Prefiro nem comentar. Digo apenas que, quando o espetáculo é de alto nível, o público não costuma reclamar da duração. O problema é que Don Giovanni no Theatro Municipal, deve ficar à deriva por uns vinte anos, após esse descalabro de encenação, esse desrespeito com o público presente ao teatro máximo de São Paulo e o que é pior...o vilipêndio com o magistral compositor Wolfgang Amadeus Mozart. Cantores e maestros envolvidos.. pêsames a todos, sem exceções !!!

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  13. Nadine Bartolomeu de Abreu19 de maio de 2025 às 02:48

    Nadine Bartolomeu de Abreu disse: Depois desse vexame de Don Giovanni o que mais teremos ?

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  14. Realmente, não há como discordar das críticas acima. Infelizmente, as produções do TMSP vêm, nos últimos anos, desfigurando as óperas do cânone lírico. São tantos os enxertos, as inovações e os maneirismos "interpretativos" que grande parte do conteúdo cénico e musical destas obras é adulterado em troca de agendas e inserções "ativistas", individualistas e totalmente anacrônicas, que banalizam e empobrecem as grandes óperas clássicas.

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