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A HUMANIDADE DO DIVINO MOZART. ARTIGO DE FREDERICO TOSCANO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.


Amadeus
Amadeus (1984) popularizou ainda mais o nome de Mozart, ao mesmo tempo em que lhe atribuiu uma polêmica imagem. O filme foi indicado a 53 prêmios, e recebeu 40, incluindo oito Oscars (entre eles o de melhor filme), quatro prêmios BAFTA, quatro Globos de Ouro e um prêmio DGA.
 
 
Recentemente, um colega me falou surpreso, e algo inconformado, a respeito do comportamento excêntrico do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) no filme Amadeus (1984), o que me motivou a trazer neste post algumas considerações sobre a sua personalidade. Por sinal, em relação ao filme, o neurologista e organista Bernard Lechevalier, em seu livro Le Cerveau de Mozart (Odile Jacob, 2003), dispara indignado severas críticas, considerando-o uma obra estimável talvez em nível cinematográfico, mas detestável a nível histórico, por dar ao músico uma visão absurdamente grotesca e caricatural, ao mesmo tempo em que escondia o seu gênio debaixo de uma máscara de um débil mental.
Maria Anna Thekla Mozart (1758-1841), conhecida como Bäsle, prima com quem Mozart trocou cartas nada tímidas...
Maria Anna Thekla Mozart (1758-1841), conhecida como Bäsle, prima com quem Mozart trocou cartas nada tímidas…
 
O fato é que é comum, ao tentar descrever Mozart, esbarrar-se imediatamente em aparentes antagonismos de sua personalidade. Se por um lado, ele é o criador de uma música sublime e muito superior a tudo que parece animalesco no ser humano, que testemunha claramente uma capacidade de sublimação altamente desenvolvida, por outro, o mesmo Mozart era capaz de se comportar e fazer piadas que, aos ouvidos das gerações atuais, parecem extremamente grosseiras. Muitos exemplos dessas piadas aparecem nas suas cartas, especialmente aquelas dirigidas à sua prima Maria Anna Thekla Mozart (1758-1841), conhecida como Bäsle (“priminha”, em alemão) – escritas com 21 ou 22 anos, como fruto de uma possível puberdade atrasada.
Uma das cartas criativas e liberais de Mozart à sua querida prima.
Uma das cartas criativas e liberais de Mozart à sua querida prima, com quem deve ter tido suas primeiras experiências sexuais.
 
A pesquisadora Ruth Halliwell, na sua obra The Mozart Family: Four Lives in a Social Context (OUP, 1998), ressalta que as cartas à Bäsle são meras brincadeiras, quase desprovidas de notícias. São fantasias verbais, que exibem um imaginativo senso de humor de Mozart. Considerando as atuais convenções, elas parodiam gêneros literários e musicais, usando rimas, trocadilhos, ecos e outros recursos. Suas alusões escatológicas e eróticas colocaram tais documentos em grande risco de destruição. Essas cartas “chocantes” sobreviveram por pouco, e não foram impressas por completo até 1938 (na pioneira e valiosa edição de Emily Anderson), despertando perplexidade nas recentes gerações sobre como o, até então, “imaculado” Mozart podia ter escrito coisas tão grosseiras.

Halliwell explica que a análise mais cuidadosa das personalidades de pessoas altamente criativas desafia o estereótipo do gênio como alguém isento do desenvolvimento humano dito normal. Mozart não escapou ao julgamento a respeito de sua inteligência, do seu comportamento e da forma de conduzir seus assuntos. O professor Jean-Victor Hocquard em Mozart ou la voix du comique (Archimbaud, 1999) chega a colocar o problema de uma dicotomia entre o gênio que Mozart foi na sua arte e o homem comum que foi na sua vida. Lechevalier, por sua vez, questiona por que razão o autor de Die Zauberflöte foi alvo de tão duros julgamentos e de uma exigência de perfeição tão elevada e absoluta, quase sobrenatural. O que queriam, de fato, que ele fosse? Um mundano, um conversador eloquente, um lisonjeador, um cortesão, um carreirista hábil e adulado, um homem rico e importante, em suma, a imagem de um “homem de sucesso”, que teria sido, comodamente, um motivo de felicidade e reconhecimento para todos. Sobre a vida de Mozart paira certo ar messiânico, mas ele não foi aquele que gostariam que fosse: o divino Mozart. Lechevalier cita a teoria das personalidades múltiplas da moderna psicologia norte-americana, questionando se seria Mozart um desses casos.
Leopold, pai e principal influência de Mozart, foi excessivamente zeloso na educação do filho.
Leopold, pai e principal influência de Mozart, foi excessivamente zeloso na educação do filho.
 
Até mesmo em cartas para o pai, Leopold Mozart (1719-1787), Wolfgang usava expressões de referências anais e escatológicas sem qualquer mostra de constrangimento. Nesse sentido, considero fundamental trazer a abordagem do renomado sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) em sua obra Mozart: Sociologia de um Gênio (Zahar, 1995), onde afirma que havia espaço de sobra para tais fantasias no círculo social de Mozart. Nessa sociedade, havia menos necessidade de escondê-las das vistas do público – e, portanto, de reprimi-las da consciência – do que nas sociedades industriais do século XX, explica o sociólogo. A própria mãe do compositor não se privava de inserir brincadeiras “atrevidas” nas cartas que enviava ao marido.

Lechevalier corrobora Elias, afirmando que tal linguagem escatológica fazia parte da cultura da Áustria e do sul da Alemanha na época, além de ser hábito também na França, quando Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673), conhecido como Molière, divertia o rei com histórias de clisteres e quando, muito tempo depois, as multidões vindas dos bairros elegantes de Paris se empurravam para assistir às proezas de Roger Vitrac (1899-1952) e seus gases na peça Victor ou les enfants au pouvoir (1928). É preciso reconhecer, entretanto, que Mozart se deixou, por vezes, levar por uma excitação verbal excessiva, recheada de palavras grosseiras e algumas vezes incompreensíveis, percebida por Hocquard nos textos dos célebres cânones escritos em várias línguas – compostos sem dúvida com amigos e destinados a serem cantados estritamente entre eles.

A “sujeira” verbal era um elemento do comportamento descontraído entre os jovens – e também entre os mais velhos – com quem Mozart se relacionava. Não era de maneira alguma proibido, segundo Norbert Elias. No máximo, recebiam uma proibição tão leve que as zombarias coletivas quanto ao tabu provocavam muita algazarra entre os jovens da época. Desde cedo, porém, Mozart sabia exatamente onde tais piadas eram permitidas. Sabia que eram permitidas e apreciadas entre os pequenos burgueses empregados das cortes, o que incluía os músicos (e mesmo aí apenas entre amigos próximos), mas que eram completamente fora de lugar nos círculos mais altos.

Traços da personalidade também influenciavam o uso aparentemente compulsivo que Mozart fazia de expressões anais e orais. Elias supõe que conflitos ligados à educação higiênica na infância ressurgiram na puberdade. Podem também ser uma expressão indireta de agressão contra o pai – e, mais amplamente, contra a ordem estabelecida, a que tinha sido negada qualquer expressão direta. Sentimentos agressivos em relação à classe dominante da época estavam presentes em Mozart, e formavam um traço muito forte de sua personalidade – isto pode ser observado em toda a sua carreira posterior.
Constanze, esposa de Mozart, em retrato feito já na sua viuvez, em 1802.
Constanze, esposa de Mozart, em retrato feito já na sua viuvez, em 1802.
 
Halliwell afirma que alguns dos traços de caráter adulto de Mozart podem ser progressivamente rastreados desde a mais tenra infância; outros se desenvolveram como respostas posteriores a aspectos específicos de seu ambiente. Desde a infância, Mozart foi o centro das atenções de sua família, graças às suas habilidades musicais, sua alegria e sua inteligência musical (aspecto estudado por Lechevalier em sua obra). A necessidade de ser amado era forte – inicialmente ele dependia, sobretudo, do amor de Leopold; depois, de sua esposa, Constanze Mozart (1762-1842). As cartas de família, as reminiscências do amigo Andreas Schachtner (1735-1795) de Salzburg e os relatos de observadores das turnês européias de Mozart na sua infância, oferecem várias evidências das suas características infantis. Schachtner, por exemplo, comentou que Mozart era “cheio de fogo” e tão impressionável que podia ter se tornado um “vilão covarde”, caso não recebesse a rígida educação de Leopold. Essa impetuosidade pode ser vista também no Mozart adulto, especialmente durante o seu envolvimento com Aloysia Weber (1760-1739), que se tornaria sua cunhada.
Mozart, o pai e seu grande amigo Schachtner, que deixou valiosas referências sobre a infância do compositor, como a curiosidade de que Mozart tinha medo do som do trompete.
O pequeno Mozart, seu pai e o grande amigo Andreas Schachtner, que deixou valiosas referências sobre a infância do compositor, como a curiosidade de que Wolfgang tinha medo do som do trompete.
 
Elias alerta, ainda, para o fato de que qualquer análise sobre a coprofilia verbal de Mozart necessariamente se equivocaria se aplicássemos os padrões atuais de civilização – usando, implicitamente, o nosso próprio padrão de sensibilidade como universal e válido para toda a humanidade, e não como algo que se desenvolveu ao longo do tempo. Para fazer justiça à tendência de Mozart, seria preciso ter uma idéia clara do que o sociólogo batizou de processo civilizador, ao longo do qual o padrão social de comportamento e de sentimento muda de maneira específica, ou seja: na sociedade de Mozart – mais exatamente, na fase do processo social civilizador em que viveu – o tabu quanto ao uso das palavras chocantes que encontramos em suas cartas não era, nem de perto, tão estrito e rígido quanto em nossos dias.

Mozart sempre circulou em dois mundos sociais distintos: o círculo não-cortesão de seus pais, que hoje em dia poderia ser referido pela expressão “pequenos burgueses”, e o dos aristocratas da corte – que ainda se sentiam muito seguros de seu próprio poder nas regiões alemã e italiana, a despeito dos relâmpagos distantes e dos primeiros trovões da Revolução Francesa. Tal divisão em sua existência social também se fazia sentir na estrutura de sua personalidade. Toda a atividade musical de Mozart, toda a sua formação de instrumentista virtuose e de compositor foram modeladas pelo padrão musical das sociedades de corte hegemônicas da Europa.

Halliwell considera que, pelo fato do talento de Mozart haver guiado todas as atividades de sua família durante a sua infância, ele estava acostumado a ter todas as suas necessidades generosamente atendidas. Enquanto os outros “meninos musicais” estavam em aula de canto no coro, a rica educação de Mozart foi talhada e transmitida sob medida por Leopold ao filho para que jamais se tornasse mais uma atração entre muitas – Lechevalier o chama de “produto de estufa”. Somente aos 22 anos de idade Mozart fez a sua primeira viagem sem o pai.
Barão von Grimm, que Mozart conheceu na sua juventude em Paris.
Barão von Grimm, que Mozart conheceu na sua juventude em Paris.
 
O pequeno gênio foi mimado por nobres e encorajado a acreditar que um futuro magnífico o esperava. Quando Mozart tinha dez anos, Friedrich Melchior, Barão von Grimm (1723-1807) acreditava que os monarcas brigariam para atrair os Mozart. Porém, quando isso não aconteceu, explica Halliwell, a frustração de Mozart mostrou-se numa série de traços de caráter. Primeiramente, Mozart não podia suportar o tédio, e começou a mostrar arrogância e falta de tato. Para Leopold, ele escreveu de Mannheim, em 1778: “Deixo isso para as pessoas que nada podem fazer a não ser tocar piano. Eu sou um compositor e nasci para ser um Kapellmeister”. Em segundo lugar, a complacência e a falta de talento para aspectos práticos (especialmente no campo financeiro), decorrentes da superproteção do pai na infância (o elemento que mais modelou a sua personalidade, segundo Lechevalier), formaram uma combinação ruim na vida de Mozart. Finalmente, ele se tornou extremamente sensível quanto ao seu valor na sociedade, queixando-se de não ter a companhia de pessoas que, apesar de sua classe social mais alta, não eram intelectualmente ou moralmente superiores a ele.
Mozart exibindo a comenda recebida do papa, que lhe deu o título de Cavaleiro ("Ritter", em alemão).
Mozart, com 21 anos, exibindo a comenda recebida do papa Clemente XIV aos 14 anos de idade, que lhe deu o título de Cavaleiro (“Ritter”, em alemão).
 
A recusa persistente de Mozart em usar o título nobiliárquico da Ordine dello Speron d’Oro que foi conferido pelo papa Clemente XIV (1705-1774) – ao contrário do compositor Christoph Willibald Gluck (1714-1787) que, tendo recebido a mesma comenda, intitulou-se “Ritter von Gluck” por toda a vida – é um sintoma de não-identificação com a classe aristocrática. Wolfgang tinha o direito de assinar “Ritter von Mozart”, se preferisse. Mozart tinha forte desejo de ser reconhecido e aceito como igual pelos círculos cortesãos aristocráticos – mas exclusivamente pela sua importância como músico, e não pelo título. Como tal reconhecimento lhe foi negado desde as suas primeiras tentativas de conseguir uma colocação, o compositor certamente tinha sentimentos muito negativos a respeito da sociedade dominante. Não é improvável, sugere Norbert Elias, que tal agressão reprimida se refletisse nas referências verbais do compositor às funções animais. Por sinal, o desejo de ser aceito por seus méritos foi certamente uma das principais razões para o ingresso de Mozart na maçonaria, o que lhe deu a oportunidade de interagir em condições de igualdade com muitos membros das classes mais altas.
Mozart com Madame de Pompadour
Mozart, na infância, sendo recebido em Versalhes por Jeanne-Antoinette Czernichovscki Poisson (1721-1764), mais conhecida como Madame de Pompadour, cortesã francesa e amante do Rei Luís XV da França, considerada uma das figuras mais emblemáticas do século XVIII.
A obra de Mozart foi, em grande parte, caracterizada pela sintonia com os círculos aristocráticos, não apenas através da adaptação consciente e deliberada em seu trabalho para imperadores, reis e outros patronos, mas também através do involuntário ajustamento de sua consciência artística a tal tradição musical. Ao mesmo tempo, ressalta Elias, em sua estrutura de personalidade, especialmente no que se referia às relações sociais, continuou sendo um homem da pequena burguesia – quando as pessoas enfrentavam seus semelhantes muito mais diretamente, no que diz respeito a gostar ou não gostar. Ainda assim, como salienta Lechevalier, Mozart sempre teve consciência do seu talento excepcional, e nunca suportou ser humilhado.

A dependência de Leopold durante a infância tornou a transição de Mozart para a vida adulta muito problemática. Ainda assim, ele era incansavelmente sociável e adorava rir, dançar, cartas, tiro e bilhar. Quando jovem, seu humor exibia uma frivolidade desenfreada. Talvez os traços de caráter mais atraentes na vida adulta de Mozart fossem o seu otimismo quase incansável, a sua coragem de perseverar nas dificuldades pessoais e sua determinação de preservar sua integridade artística. Embora ele ocasionalmente expressasse desespero, suas cartas à esposa exibia uma notável capacidade de confortar e encorajá-la, mesmo quando seu desânimo dificultava a sua amada atividade de compor.

O escritor norte-americano Saul Bellow, em Mozart: une ouverture (Tout compte fait, 1995), depois de analisar o caráter de Mozart, simplesmente renunciou a encontrar uma explicação para ele. O enigma do seu caráter, escreveu ele, ultrapassa-nos. Dissimula-se por trás da sua música e nunca o alcançaremos profundamente. Bellow queria dizer que a música ocupava permanentemente a sua consciência, e que só interrogando-a é que se conhecerá a verdadeira personalidade de um músico de tal magnitude.

Frederico Toscano

Fonte: http://euterpe.blog.br/

Comentários

  1. Marcelo Lopes Pereira29 de outubro de 2013 às 10:10

    belíssimo artigo à respeito de um belíssimo compositor, infelizmente o filme trouxe muita desinformação, e como as pessoas, mesmo as que amam música, possuem o hábito de não lerem nem pesquisarem podem ter ficado com uma imagem distorcida. Mozart era humano como todos nós, e sinto que ele era contra o status-quo, assim como eu

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