POR QUE O BRASIL NÃO PRODUZIU UMA ESCOLA BRASILEIRA DE CANTO? ARTIGO DE RICARDO ROCHA NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Este assunto há muito já deveria ter sido discutido em seminários, congressos e festivais de música, além de, em especial, nas Escolas de Música de nossas universidades, que insistem, salvo honrosas exceções, a não preparar nossos cantores tecnicamente para o domínio de diferentes expressões.
Antes, não entendendo que cada geração, povo e cultura expressam esteticamente a vida e a realidade que vivem e veem, insistem em vestir a emissão de nossos jovens cantores com a camisa do 'bel canto', sem lhes ensinar que esta é uma maneira de cantar que precisa, claro, ser aprendida para seu repertório específico, como no caso da música romântica produzida em especial na Itália e na Alemanha do século 19, - mas não para tornar-se padrão, com seus característicos ataques das notas por baixo de suas frequências até atingi-las em sua afinação, seus 'glissandi' e 'portati' de um intervalo a outro, produzindo vibratos de segunda menor ou mais já no início da emissão do som etc.
Com esta redução, deles é retirado não apenas o entendimento do 'pathos' específico de cada estilo, mas também a capacidade de sua correta interpretação. Ora, não se pode cantar música renascentista, barroca, clássica, moderna e contemporânea, como quem canta Verdi e Wagner, ou vice-versa! Só que já vi fraudes grosseiras em apresentações de música renascentista a música brasileira contemporânea, executadas com bel canto. É insuportavelmente feio e brega.
No Brasil, o processo foi curioso, pois que Carlos Gomes, preocupado em criar e ouvir canções de colegas brasileiros compostas em vernáculo, discutiu o tema com amigos poetas na Confeitaria Colombo, aqui no Rio, até que resolveram passar a compor com 'letras' de nossos poetas. Só que não perceberam que, se de um lado, começavam a cantar obras de nossos músicos cultos em português, de outro o faziam como se fosse música italiana, sob a influência direta do 'bel canto'.
O impacto na música popular foi tão grande que em poucas décadas o Brasil já idolatrava, em sucessivas gerações, nomes como Vicente Celestino, o "Rei da Voz", depois Dalva de Oliveira e outros, assim como cantores ainda vivos, tais quais Angela Maria, Cauby Peixoto e Agnaldo Rayol, por exemplo.
Entretanto, pouco antes dos anos 60, um compositor que nunca foi cantor e nunca o será, do ponto de vista da vocação e da expertise profissional do canto, João Gilberto, quebrou a ‘coluna vertebral’ da influência do bel canto na música popular, abrindo caminho para os tropicalistas e a geração que começou, aos poucos, a preocupar-se em estudar canto e em encontrar uma maneira brasileira de se cantar.
Foi neste cenário que, a meu ver, uma estrela apareceu catalisando essas influências e buscas: Elis Regina! Com ela, nossa música popular encontrava finalmente um porto seguro de sua expressão vocal.
Enquanto isso, na Academia, nossos professores de canto agiam como nada tivesse acontecido e seguiram seu caminho romântico e positivista no ensino do bel canto como ‘A’ forma correta de emissão, malgrado sua total inadequação para a interpretação, por exemplo, da música bachiana e barroca em geral, com seus contrapontos cerrados e coloraturas de enorme virtuosismo técnico; ou do classicismo haydn-mozartiano, com sua leveza e transparência em estruturas de grande equilíbrio formal, nas quais não há espaço para excessos e dramas para os que não quiserem resvalar na afetação. E daí por diante.
Para resumir, já que este assunto é polêmico e muito complexo, o que vimos assistindo da década de 1970 aos nossos dias, foram nossas Escolas de Música permanecerem solenemente indiferentes a esta questão, assim como a nossa música popular, que havia se desvencilhado do bel canto italiano, tornar-se refém e prisioneira do Gospel americano, com seus melismas intermináveis nas vogais e tiques-padronizados, nascidos de um ‘pathos’ triunfalista e ianque que não é o de nossa alma, mais profunda e melancólica, de um lado, e mais alegre e descolada, de outro. Basta ouvir uma propaganda do “The Voice Brasil” para constatarmos como todos cantam da mesma maneira. Mais curioso ainda é perceber como temos ali vozes brasileiras lindas, sendo julgadas por artistas como Carlinhos Brown, que canta tanto quanto a Xuxa opera como cirurgiã cardiovascular.
Desta maneira, seja na Música Popular, como na Música de Concerto, o Brasil vem perdendo o seu perfil e a sua identidade vocal. Por isso mesmo prefiro, então, parar por aqui, jogando a discussão no ventilador. Que cada um de vcs possa motivar-se a escrever e comentar o que quiser sobre este assunto, com direito a jogar pedras nesse texto. Se assim acontecer, alguma contribuição já terá sido dada. Contudo, para também não sair com ares pessimistas, ofereço-lhes aqui, de bandeja, uma pérola histórica de nosso passado recente, que foi a Elis Regina em genial dueto. Podem usar o lenço como babador.
Ricardo Rocha
Foto Internet.
Reflexão de incrível valor para todos nós profissionais da música. Escrevi un pequeno trabalho sobre os fundamentos para o ensino da Técnica Vocal quando concluí a Licenciatura e vi uma banca, absolutamente, surpresa pelo objeto do trabalho, uma vez que até então, na área da Educação, não haviam visto algo sobre o tema.Eu, que amo cantar a musica brasileira, sempre senti que, realmente,precisamos trabalhar muito nisso.
ResponderExcluirTudo bem que é afetação e exagero cantar música brasileira com técnica de belcanto. Mas tomar João Gilberto como referência é ir para o extremo oposto. Desculpe, mas João Gilberto prestou um desserviço à técnica vocal. Ele não canta, sussurra. Sua voz é puro sopro, mais ar do que som. Quem ganha, com ele, são os fabricantes de microfone e os operadores de som. Por isso que ele tem tantos xiliques com a sonorização dos lugares em que se apresenta, porque sua voz é inaudível. Depois do João Gilberto, ter voz passou a ser algo secundário, irrelevante, até dispensável, virou quase um crime punível com apedrejamento. Hoje, qualquer um acha que canta, bastando abrir a boca para isso. João Gilberto cantando, me desculpe, não dá!
ResponderExcluirCaro Anonymous,
Excluirfiquei procurando aqui entre os comentários quem poderia ter tomado o João Gilberto como referência e não encontrei. Se vc escreveu isto pensando em meu texto, leu bastante errado. Veja como eu começo meu quinto parágrafo:
"Entretanto, pouco antes dos anos 60, um compositor que nunca foi cantor e nunca o será, do ponto de vista da vocação e da expertise profissional do canto, João Gilberto". Portanto, eu não fui!
Interessantíssima a discussão lançada por Ricardo Rocha. Embora discorde de alguns pontos e pudesse acrescentar elementos a outros, o principal foi feito: lançar a questão. E eu vou pensar a respeito e volto a comentar. Parabéns ao Ricardo.
ResponderExcluirE o mais incrível é que mesmo cantando sem sem cantar, sussurrando e com voz soprosa com mais ar que som, Jpão Gilberto é maravilhoso, dentro do repertório a que se propõe!!!! Mil vezes melhor do que qualquer cantor gospel cantando música popular "brasileira"!!!!
ResponderExcluirEm relação à música chamada de erudita, os caminhos do que temos no Brasil realmente seguem os padrões internacionais, europeus, e penso que assim deve ser - guardando-se as devidas características estilísticas de cada período e abertos para as transformações necessárias à música contemporânea. Em relação à Música popular, concordo com Ricardo totalmente. A música brasileira não merecia e não merece essa desconstrução e absorção de uma cultura que não é a nossa. Conseguimos nos libertar da forma empolada de cantar originária do canto lírico, passamos por uma fase de encontro com nossa forma brasileira de cantar, onde Elis Regina e outros cantores como Clara Nunes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Zé Renato, Joyce, Roberta Sá e tantos outros, estabeleceram um novo paradigma, para atualmente cairmos na absorção de uma cultura americana de lixo, de quinta categoria. Os bons cantores brasileiros ainda existem e lutam para manter nossa forma de cantar brasileira, mas a mídia insiste em querer valorizar o que não é nosso. Por um lado essa mídia irresponsável, idiotizada e idiotizante imprime uma americanização de nosso povo, sendo responsável pela destruição de nosso patrimônio imaterial, por outro, a falta de educação musical nas escolas nos empurrou ladeira a baixo, criando aberrações musicais e uma mediocrização da MPB. Espero sinceramente que ainda haja cura para essa doença!!!!
ResponderExcluirComentário enviado por Eliane Salek: Muito importante e interessante artigo e discussão, permeando tanto a música popular como a dita erudita.Vejo que existem lacunas a esse respeito, sobretudo na interpretação da música de concerto brasileira.A música renascentista e barroca tem na Europa suas escolas, ainda que no Brasil haja apenas o canto verdiano para interpretá-las.Já a interpretação da música brasileira de concerto parece carecer de um aprofundamento.Levando-se em consideração a influência e utilização da temática popular na obra de nossos compositores como Villa-Lobos,Guerra Peixe, Cláudio Santoro e Mignone, entre outros, era de se esperar que também sua interpretação fôsse livre, sobretudo dos vibratos excessivos,como muito bem colocado por Ricardo, além de outros excessos, buscando-se uma impostação mais próxima da voz falada.Nesse sentido vejo uma nítida diferença na música popular que, como pontuado pelo querido colega Luiz Kleber, parece ter encontrado sua identidade a partir da assimilação da bossa-nova e seu estilo "cool" de cantar ao tom melancólico e "suingado" dos tropicalistas e das gerações que se seguiram.Acrescento apenas que Angela Maria, Cauby Peixoto e Dalva de Oliveira foram idolatrados por possuírem grandes e belíssimas vozes e que o padrão "the voice" de cantar não é representativo, senão do padrão "globo".Assunto pra muita pesquisa, estudo e discussão.
ResponderExcluirTexto brilhante! São pensamentos e discussões como tais neste texto que urram por uma solução ou ao menos para sair das sombras uma vez por todas. Acredito em uma escola brasileira de técnica vocal, que obedeça primeiramente a emissão do nosso idioma e, consequentemente, o nosso riquíssimo repertório. Vejo muito a fonoaudiologia se aventurar por esses meandros, mais do que os próprios professores de canto. Acredito que a união dessas duas áreas distintas, porém tão familiares, possa ajudar e muito a uma nova etapa para a prática do canto no Brasil.
ResponderExcluir