CRÍTICA: ÓPERA "CAVALLERIA RUSTICANA", DE PIETRO MASCAGNI NO CLUBE ATHLETICO PAULISTANO. CRÍTICA DE CARLOS EDUARDO CIANFLONE NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
Cheguei nesta ópera graças à indicação do colega Ali Assam Ayache, que teve a boa ideia de publicar a chamada no seu blog e compartilhar no grupo de Ópera do facebook, algumas poucas horas antes do espetáculo. Ingressos comprados e toca para o Club Paulistano.
O Club Paulistano, reduto tradicional da elite paulistana (o que inclui inevitavelmente famílias quatrocentonas falidas e novos ricos da Zona Leste que preferiram migrar para os Jardins a ficar no Anália Franco) tem um auditório típico de clube: um grande palco para apresentação das alunas de sapateado (qualquer dia posto meus vídeos dançando flamenco), do grupo coral, do grupo de teatro e das inexoráveis apresentações de final de ano da escolinha primária para os pais babões. Ao fundo, a tela de cinema, à frente do palco, umas 20 filas de poltronas confortáveis, em bom declive.
Assim que entrei, vi o palco vazio, cortinas abertas, um piano ao canto e já entendi que estávamos diante de uma "pocket opera". Tenho assistido algumas pocket óperas no Brasil, em especial as montadas pelo Teatro São Pedro. Que eu me lembre, A Flauta Mágica, La Cenerentola e Falstaff. As "pocket operas", nome emprestado de uma companhia de San Francisco que monta espetáculos mais simples, eventualmente com eliminação de várias cenas, pouquíssimos músicos (ou até mesmo música playback) e cenário exíguo. Não raro, o libreto da ópera original é traduzido para o idioma local. A tal companhia americana Pocket Opera traduziu para o inglês cerca de 70 librettos de óperas e demais gêneros líricos.
Luzes apagadas, entra o pianista. Por descuido da produção, o nome desta pessoa fundamental na apresentação não aparece no panfleto. Mas sabemos o nome do iluminador: Jânio Silva. Parabéns, Jânio Silva, trouxe luz para o nosso espetáculo. Se encontrares por acaso com o pianista anônimo, faça o favor de mandar nossos agradecimentos a ele.
Como não distribuíram programa impresso, um narrador conta em detalhes o enredo da ópera, mandando um baita dum spoiler. Achei estranho e mais tarde entendi o motivo. Começa a abertura, versão para piano. Entram os cantores, cada um a seu tempo. Cantando em italiano. Sem projeção de legendas. Ouch!
Toda a discussão feroz sobre tradução de obras que permeia nossos grupos desde a versão traduzida da Viúva Alegre levada pelo Municipal de São Paulo, sob direção de Miguel Falabella, até a "Nona - Todos Juntos" traduzida pelo Nestrovsky, fica bem afetada quando nos deparamos com uma obra que fica praticamente ininteligível sem tradução. Eu até que entendo bem o dialeto italiano operístico (caracterizado pelo uso da palavra "ohimè", inexistente no italiano moderno), mas a namorada ao meu lado não entendeu absolutamente nada sem a projeção de legendas em português. Felizmente a trama verista desta peça é muito simples e linear, então a preleção inicial do narrador (explicando o libreto) e a ótima atuação dos cantores deu todo o sentido à ação. Mas esta precária estratégia já não funcionaria nem para a peça irmã "Pagliacci", um pouco mais complicada devido ao seu caráter metalinguístico. Reparei que havia pouca gente "jovem" na platéia, algumas crianças até. Quantos destes espectadores mirins não gostaram desta ópera por não ter entendido patavina dos diálogos?
Sobre o modelo "pocket opera". Percebi que é o modo de apresentação que mais expõe o artista. O pianista, por exemplo, não pode errar. Ontem ele errou uma nota importante, muito fora da harmonia. Se fosse uma pequena orquestra, passava batido. Em outro momento, faltou um regente: ao fim de uma cena, o pianista não sabia se começava a tocar ou se esperava uma entrada de voz. Quase um minuto de silêncio constrangedor com o pianista pedindo apoio na coxias e procurando com o olhar com algum produtor na plateia. Em relação aos cantores: sem qualquer tipo de cenário, nem mesmo uma banqueta, tendo apenas a projeção de paisagens na tela do cinema ao fundo, e contando com truques de iluminação (obrigado de novo Jânio Silva, vi teu nome no programa), toda a atenção vai mesmo para a sua música e atuação. Pior, sem a tradução em português, precisam "explicar" a ação com o máximo de expressão possível. Tiro o chapéu para a atuação deste adorável quinteto que deu o sangue no palco inóspito do Paulistano. Tati Helene mostrou uma perfeita Santuzza amargurada. Levou a apresentação nos ombros, sem dúvida. Atirou-se ao chão não só uma, mas duas vezes. Ouvimos o baque surdo e sentimos o impacto das quedas na plateia. Hoje a querida Tati deve estar mancando. Levou suas árias com bastante voz e segurança. Richard Bauer fez um Turiddu canalha na medida certa. Quando se despede de Mamma Lucia ao final estava muito confiante. Eu esperava um Turiddu mais amedrontado naquele momento. O Alfio de Sebastião Soares Teixeira é o corno emputecido perfeito. O meu eu siciliano já teria saído na porrada com Turiddu muito antes, mas daí a ópera ficaria curta demais. Guardou seu ódio para o duelo e matou Turiddu na primeira estocada. Muito expressivo e com vozeirão, deixou sua marca. Não é comum a gente ver o duelo de Afio e Turiddu - não me lembro de ter visto uma montagem assim até então, embora algumas filmagens mostrem a cena. Como ele mata Turiddu no meio do palco na frente de todo mundo, não tem a camponesa que grita 'Hanno ammazzato compare Turiddu!' e a ópera acaba porque apagam a luz.
Voltando, temos ainda a Lola! Marly Montoni de vestido vermelho todo sensual, encarnando a mais perfeita sirigaita siciliana! Pena que seu papel é muito pequeno nesta ópera, queria tê-la ouvido mais ontem. Não sei se a ideia original pede uma moça tão "dada", acho que foi uma liberdade poética da montagem. Lola para mim é só uma mulher comum que gosta de outro cara (até mesmo porque Alfio deve descer umas porradas nela de vez em quando), não é necessariamente uma vagabunda. Ficou bem caricata. Alguns diretores fazem o mesmo erro com Carmen às vezes. Enfim, bola pra frente. Nathália Serrano como Mamma Lucia não me impressionou. Acho que vi muito da minha família italiana no seu papel, e eu não estava preparado para ver a minha tia-avó no palco. Os momentos em que contracena com Santuzza sua voz é sempre coberta pela potência da soprano. Enfim, acho que é um personagem ingrato na ópera, tem que fazer cara de boazinha e compreensiva, mesmo quando todo mundo faz suas grandes bobagens na trama, seja Santuzza, seja Turiddu. No final ainda tem que constatar o filho morte, coitada.
Pontos fracos ainda não citados: a abertura e intermezzo tocados no piano foram bem frustrantes. É música de orquestra, não tem jeito. É música emocional, toca no finalzinho do Poderoso Chefão, dói na alma... Do mesmo modo, o único, maravilhoso e emocionante coro da procissão foi "dublado" pelo piano e ficou bem ruinzinho.
CONCLUSÃO FINAL
O formato pocket ópera é um jeito de levar a ópera para espaços diferentes dos teatros. Comecei a achar que o Teatro São Pedro NÃO PODE (ou pelo menos não deveria) fazer pocket ópera. É usar muito recurso para pouco resultado. Pocket ópera é para ser itinerante, quase mambembe, atuar em teatros subutilizados nas cidades pelo interior, em escolas e clubes. Acho que a falta de cenário pode ser relevada (quem assistiu o problemático Othelo de Verdi sem cenário no Municipal sabe que este não foi o principal problema daquela montagem), mas tenho sérias dúvidas - que não tinha antes - sobre a necessidade da tradução do texto ou pelo menos a projeção de legendas em português. Não consigo pensar em outra ópera além da Cavalleria que possa ser apresentada deste modo espartano. Talvez Gianni Schicchi.
Valeu a pena a experiência, especialmente como entretenimento, mas fiquei devendo para a namorada uma apresentação completa, com orquestra, coro e legendas. Me peguei repetindo direto: "a ópera não é bem assim, você vai ver, vou colocar uma versão no YouTube". Foi um programa curtinho, adequado, confortável, íntimo até. Depois do espetáculo fui cantarolando todo feliz "Viva il vino spumeggiante" enfrentar uma porção de sushi na beira da piscina.
Carlos Eduardo Cianflone
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