RESPEITÁVEL PÚBLICO: O CIRCO ESTÁ ACABANDO. ARTIGO DE EDSON LIMA NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 Desde as Colinas de Kronos em Olympia, na Grécia ainda na Idade do Bronze, por volta do Século V antes de Cristo, sob o reinado do legendário Oinomaos e quando se estabeleceram os princípios do que seria um circo, para que se assistisse às corridas de carros onde o herói Pelops disputava a mão de Hippodemia, a filha do rei, o circo teve uma lenta, longa e firme evolução, até nossos dias.

Naquela época, os circos eram fixos, imóveis e muitos se transformaram mais tarde em templos aos deuses, já que muitas das suas festas e reuniões estavam ligadas às manifestações religiosas ou, em estádios, quando predominantes desportivas. Dois belos exemplares restantes ainda hoje, são o Coliseu (90 DC), o grande circo em Roma e o anfiteatro de Epidaurus (350 AC) no Peloponeso, na Grécia. Ficaram famosas as “festas dionisíacas”, mas no Século VI AC sob a tirania de Psistrato, começou a surgir outro tipo de representação popular e que pode ser considerada a origem do circo, do teatro e da ópera, graças a Thespis, um grego e o primeiro autor do qual se tem notícias.

Esses espetáculos eram apresentados apenas em Atenas e com o correr do tempo, alguns perceberam que poderiam ganhar mais, se os levassem para as cidades menores, no interior da Grécia e até, no exterior. Nasciam aí, os “circos” ambulantes, posto que nem todas as cidades dispunham de acomodações fixas para abrigar as troupes, sendo necessária então, a improvisação das instalações mutáveis a cada deslocamento.

Um pouco mais tarde, já no início da Idade Média, centenas de saltimbancos, menestréis e outros artistas começaram a se deslocar por toda a Europa, com seus carros e carruagens sob coberturas de panos e couros improvisadas, dando início às mais variadas e extravagantes representações artísticas de teatro, circo, música e do canto. Dali para cá, os nossos nômades e ambulantes apenas se aclimataram, se adaptaram e se estabilizaram, mas bem pouco mudaram no seu primitivismo de atuar.

Nestes dias, noticia-se o fechamento do Circo Garcia, um dos mais antigos do Brasil, com cinquenta anos de existência (hoje, dia 12.01.3003, o último espetáculo). Quem nasceu no interior sabe avaliar melhor o que isso representa, lembrando-se de que a chegada de um circo nas suas cidades assim como a dos famosos almanaques “A saúde da mulher”, dos mascates e do cineminha da Kolynos, eram as únicas formas de acesso a bens culturais de conhecimentos, através da diversão e numa época em que não se imaginava a TV, cinema, teatros, discos gramofônicos e o próprio rádio, ainda incipiente e inacessível para a maior parte do povo.

Quanto ao teatro de prosa, igrejas dos mais bizarros cultos acabaram (ocupando) com os poucos cinemas e arremedos de teatros que existiam no interior e nas próprias capitais, remetendo-os para galpões pequeníssimos e, à falta de terrenos para abrigar as montagens, as legislações sobre segurança e higiene e os custos muito aumentados de quase tudo, deram a estocada final nos circos, que hoje abandonam seus materiais e equipamentos e até seus animais, em praça pública. Diz-se também, que provavelmente (como parece estar acontecendo) a Internet irá acabar com os jornais e revistas e com as próprias televisões, como elas são hoje.

Mas, que conversa é essa, “seu” Lima? Acessamos o Movimento esperando que o senhor fosse falar de ópera!

Jovens: é exatamente o que estou fazendo. A história da origem, dos primórdios e evolução da ópera até 1594, em nada difere daquela do circo e do teatro.

Ops!!! Então podemos supor que a ópera também vai acabar?

Creio que não, porque o caso da ópera é bem diferente; tranquilizai-vos pois, porque ela irá longe, muito longe. A ópera, ao contrário das demais artes que surgiram e evoluíram espontaneamente, foi criada como tal, para ser o que é: um teatro cantado, musicado. Em 1594, em Florença na Itália, quando a Camerata Fiorentina ou os “bardistas”, entre eles Jacopo Peri, Giulio Caccini, Ottavio Rinuccini e Claudio Monteverdi resolveram criar uma nova arte (a primeira ópera: Daphne, de Peri, estreou em 1597), calcada na antiga tragédia grega, pensaram que ela deveria agasalhar todas as demais artes e chamaram-na de “Ópera Lírica”, juntando a literatura e a poesia (nos textos), a música, o canto, a representação cênica (o teatro e a cenografia), a pintura, a escultura e o resultado foi fantástico, como vemos até hoje, passados 406 anos.

Quem acompanha a evolução da ópera pode observar que sua principal característica foi a versatilidade em transmutar-se através dos tempos, mantendo no entanto a sua capacidade de ser a crônica viva de suas épocas, com as críticas aos costumes, moral e religiões sempre evidenciados e tão ao gosto popular. Há várias décadas anuncia-se a morte da Ópera; alguns dizem que ela morreu com Puccini em 1924; outros, com Strauss um pouco mais tarde. Outros mais, com Korngold, com Moore, com Rotta e assim, dão-na sempre, a cada ano, como morta, até por quem a compôs anteontem.

A ópera tem sobrevivido, seguindo por tantos caminhos diferentes e diferenciados e se agora é um ser morto, aparentemente goza de uma excelente saúde. Três sintomas demonstram isso:
– existe uma efervescência de representações e de gravações como nunca se viu no mundo predominando inclusive, o repertório antigo que não se limita exclusivamente a Monteverdi ou os oitocentistas;
– os clássicos do Século XX estão tendo uma projeção cada vez mais firme;
– os novos títulos encenados e gravados, conseguem a cumplicidade entusiasta de alguns diretores e intérpretes que estão na maior evidência.

Parece-nos, por isso, no mínimo inoportuna a afirmação rotunda, principalmente por parte daqueles que não têm a sensibilidade e o privilégio de conhecer, entender e apreciá-la, que a ópera em seu conceito tradicional está morta e mais, que morreu faz tempo.

Ora, todos os grandes teatros que fizeram o esplendor e o sucesso da ópera “naqueles tempos”, ainda estão aqui, acrescidos de centenas de outros construídos depois da II Grande Guerra. Havendo mais teatros, representa-se bem mais e a modernidade, que poderia liquidar (e em alguns casos, liquidou) com outras artes como o circo por exemplo, no caso da ópera foi altamente benéfica, já que ela se “apropriou” dos avanços da eletricidade, com o aprimoramento da iluminação, virtualmente acabando com os incêndios dos grandes teatros; das facilidades mecânicas na maquinaria que tornaram as movimentações cênicas mais eficientes e, com a melhoria dos transportes, passando a ir mais longe, para os centros menores, para lugares dantes inimaginados. E agora, assenhora-se da mídia eletrônica.

Igualmente com a chegada das gravações (cilindros de cera e discos) e até do rádio, novamente foi a ópera que assumiu “solo” o proscênio, aparecendo mais que qualquer outra arte e com tudo isto, aumentava-se o número de cantores e de maestros que, encerrando suas carreiras, partiam para o professorado, ensinando e criando um imenso e numeroso grupo de novos artistas e assim, sucessivamente. Que o digam nossos professores de hoje, que não encontram folgas na suas agendas para novos alunos.

Lembro que nos anos cinquenta, caiu-me nas mãos um exemplar de uma enciclopédia italiana relacionando perto de 60 mil óperas estreadas. Tentei prosseguir no registro e catálogo de novos títulos e já encontro perto de 140 mil. Creio ser tarde para “curar” esse mal da ópera em sua expansão, diante de tal metástase. Qualquer maestrinho hoje, sabe que só será alguma coisa, se compuser uma ópera. A maior parte o faz sem sucessos mas, faz.

A “vil razza danata” contrária à ópera, augurava que a chegada do cinema, da televisão e da Internet, acabaria de vez com a ópera e vimos o que aconteceu: mais uma vez, ela apropriou-se de todas e, na internet, é uma das atividades humanas com maior número de sites: quase nove milhões.

Nenhuma outra arte soube se aproveitar tão bem, tanto da força quanto da fraqueza, de todos os seus pseudo-inimigos como a ópera, que aprendeu a aliar-se a tudo e a todos, abrindo públicos imensos e espalhando-se, disseminada e sutilmente, através dos plágios que lhe fazem autores populares e as “melhores” bandas de rock e com trechos musicais nos mais inusitados anúncios e eventos publicitários (ouvi esta semana, um belo “negão”, motorista de ônibus assobiando durante seu trabalho, a “Dança das horas” de La Gioconda).

Que defunto será esse que atrai tantos milhares de pessoas, mal se conseguindo cadeiras nos teatros do mundo para assistir a seus espetáculos? Quem não conhece hoje, aliás, alguma coisa sobre ópera ou vinhos, “já era!”. Se amanhã inventarem uma forma de projeção holográfica no espaço, podem ter certeza de que as primeiras imagens apresentadas serão de alguma ópera e até aposto no “Hino ao sol”, da Iris de Mascagni.

A ópera sofre de algumas doenças sim, como cantores medíocres, massacrando-a com suas vozes esganiçadas e seus microfones sem fio; como diretores de talento miserável esculhambando-as com suas experimentações extravagantes ainda que aplaudidos por alguns poucos basbaques e com governos e empresas de dirigentes incultos que entendem-na como elitista e não como uma necessidade, negando-lhe minimamente quaisquer ajudas. E até por quem quer apenas, “ver o circo pegar fogo”.

Como no dizer de Helena Katz (O Estado de S. Paulo, 10/01/03): “Todo cidadão tem direito a comer três vezes por dia e a tomar contato com a beleza e a poesia que estimulam ao mesmo tempo, os sentidos e a reflexão!”.

Edson Lima (1931-2020)
Fonte: Publicado em 12/1/2003 no movimento.com

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