"CARMEN" DE BIZET RESSALTA O FEMINICÍDIO, O FEMINISMO E AS DIFERENÇAS HUMANAS NO THEATRO MUNICIPAL DE SP. CRÍTICA DE MARCO ANTÔNIO SETA NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.


 Georges Bizet nasceu em 25 de outubro de 1838, em Paris. Ele foi o escolhido para compor o segundo título da presente programação lírica do Theatro Municipal de São Paulo, com a sua célebre "Carmen".

Na Carmen culmina a capacidade de Bizet de adequar a música a cada um de seus personagens.
Carmen é amoral, debochada, corrompida, combinando traços de heroína e vilã. Carmen é livre mas nada há de sordido em sua forma de agir: ela é uma fascinante mistura de sensualidade, alegria de viver, destemor e fatalismo.E isso lhe confere posição histórica impar como a anunciadora da virada realista. A Carmen tem uma bem dosada mistura de elementos românticos e realistas. É romântica na análise da paixão destruidora que faz com que, por causa da cigana Carmen, o soldado don José abandone Micaela, sua noiva da aldeia, deserte, torne-se contrabandista, humilhe-se e atinja ao crime. E realista na descrição muito precisa dos ambientes, na caracterização de personagens recortados do quotidiano, o que a situa como uma das precursoras do "Verismo", que virá surgir em 1890 com a "Cavalleria Rusticana". Mas esse realismo foi também responsável pela reação escandalizada de um público que não estava habituado à crueza, não apropriada para a época, em algumas de suas situações, em sua estreia em 3 de março de 1875, no Théátre de Opéra-Comique de Paris.
                                                      Theatre Opéra-Comique, em Paris, onde estreou a "Carmen" em 03 de março de 1875.

  Tantas foram as Carmens famosas: Celestine Galli-Marie, Minnie Hauk, Emma Calvé, Geneviève Vix, Marie Charbonell, depois Mary Garden, Shirley Verrett, Ann Howard, Tatiana Troyanos, Teresa Berganza, Blanche Thebom,  Victoria de Los Angeles, Grace Bumbry, Regina Resnik, Rinat Shaham, Anna Caterina Antonacci entre outras. 

estilo realista de ópera, caracteriza-se enfatizando cenários contemporâneos, as características da classe operária ou camponesa, as ações e paixões violentas, na qual Bizet deu o ponta-pé inicial. E infelizmente, Bizet não conseguiu ver o triunfo de sua Carmen, vindo a falecer na madrugada de 3 de junho de 1875. 

"Carmen" no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na ordem,  foram Regina Alvarez, Geneviève Vix, Fanny Anitua, Gabriela Besanzoni Lage, Elvira Casazza, Giuseppina Zinetti, Julieta Telles Manezes, Jeanne Mattio, Bruna Castagna, Julita Fonsea, Lily Djanel, Jennie Tourel, Fedora Barbieri, Maria Henriques, Carmen Pimentel, Giulietta Simionato, Kleuza De  Pennafort, Isola Jones, Celine Imbert, Luisa Francesconi.

E em São Paulo no Theatro Municipal viveram a personagem;  sendo a primeira Geneviève Vix (em 1915); Fanny Anitua, Gabriella Besanzoni- Lage (cantou em cinco temporadas líricas); Rhea Toniolo, Pollack Oliveira, Gabriellla Galli, Giuseppina Zinetti, Amalia Bertola, Maria Luisa Lampaggi, Bruna Castagna, Lili Djannel, Jennie Tourel, Fedora Barbieri, Franca Mattiucci, Marta Rose, Francine Arrauzau, Jadranka Jovanovic, Luciana Bueno, Rinat Shaham e Luisa Francesconi.

E num clima festivo, viu-se no último fim de semana,  em 03, 04 e 05 de maio de 2024 a "Carmen" de volta ao Theatro Municipal de São Paulo, com lotação esgotada em todas as sete récitas programadas. Esta montagem, que diferencia da original, situa-se no universo da alta costura, no mundo fashion, onde a Carmen é um ícone fashion, exercendo também atividades paralelas, a do mundo dos contrabandistas. Aproximando-se à época entre final dos anos 40 e início da década de 1950. Jorge Takla soube dar contribuição decisiva à atuação marcante, minuciosa e categórica em sua "regia" plenamente valorizadora do enredo voluptuoso e ardente.

Os cenários de Nicolás Boni são grandiosos e funcionam satisfatoriamente com design de luz de Mirella Brandi e os figurinos do argentino Pablo Ramirez, apropriados e luxuosos, deram a medida do carinho com que foi montado o espetáculo e correspondem à proposta de Jorge Takla. A parte coreográfica destacou-se sobretudo no bailado flamenco ao início do ato II e ato IV recebendo aplausos frenéticos e imediatos do público. 


Orquestra Sinfônica Municipal deu alto rendimento ao "spartito". Sopros de madeira, harpa e solos do violoncelo, tudo saiu bem. Bizet não se limita em pintar belos quadros tonais; a partitura muito bem escrita em todas as cenas, mesmo nas alegres melodias, percebe-se uma sensação da inevitável tragédia, que aumenta gradativamente de intensidade até o tremendo epílogo. 

A Carmen de anteontem (3/5) foi o mezzo soprano Annalisa Stroppa cuja voz escura deu uma interpretação introspectiva muito adequada à personagem, sabendo bem se locomover no jogo cênico a que se propõe. No sábado (4/5) a performance da cantora Lilia Istratii, proveniente da Moldavia, surpreendeu pela espontaneidade, beleza física e de colorido vocal. Possui um timbre de rara beleza e cantou e representou  tanto a Habanera como todas as suas outras passagens famosas na ópera com êxito. 

O Don José do tenor Max Costa oscilou bastante nos dois primeiros atos. Sua entrada (nos Dragões de Alcalá, Ato II) foi desastrosa, desafinando ao descer a escada,  e quanto à ária "La fleur que tu m'avais jetée" , os primeiros compassos tiveram a sua expressão sensivelmente diminuída, pela falta de maior matizamento. A sua voz só ganhou a força expressiva no último ato. No sábado Giovanni Tristacci cantou uma parte que não lhe é apropriada sob o aspecto de seu registro vocal. Realmente é uma pena submeter uma voz a esse desafio errôneo.  

Os dois intérpretes do Escamillo divergem bastante. Fabián Veloz, argentino de muito boa carreira internacional, desta vez não convenceu no toureiro. Prejudicado pela tessitura não apropriada  a sua voz, passou batido na sua famosa canção do Toreador, que requer um baixo-barítono.Contrapondo-se a ele, o sul africano baixo barítono Bongani  J Kubheka (dia 4/5) obteve um retumbante aplauso mediante a sua canção, editada numa extensão vocal adequada e com belos matizes.

Camila Provenzale foi uma Micaela doce e delicada. No dueto "Parle-moi de ma mère!" Micaela é de um estilo gounodiano e na ária do ato III "Je dis que rien ne m'épouvante", onde já exprime o Bizet puro,  saiu-se bem vocalmente e com bom desempenho cênico. O mesmo se pode afirmar de Marly Montoni, apesar de enfrentar uma escrita vocal inadequada ao seu registro,  que não é de soprano lírico. 

Injusto seria não registrar o bem lançado quinteto "Nous avons en tête una affaire" (dos contrabandistas) no estúdio de Lillas Pastia no  ato II. Nesse particular há de se reconhecer a excelente contribuição cênica e vocal do soprano "leggero" Raquel Paulin, brilhante em suas intervenções; do mezzo soprano Andreia Souza; e acentuadamente do barítono Johnny França como Dancaire completado por Jean Willian (tenor; Remendado) em ótimos desempenhos cênicos. 

O Zuniga de Sérgio Righini satisfez plenamente e o Morales de Guilherme  Rosa muito bem vocal e cenicamente. Marcio Louzada completou o cast como Lillas Pastia. O Coro Lírico Municipal preparado por Erika Hindrikson, cumpriu largamente as suas competências. 

Escrito por Marco Antônio Seta em 05 de maio de 2024, às 21,55
Jornalista inscrito sob nº 61.909 MTB - SP
Licenciado em Artes Visuais pela UNICASTELO, em São Paulo
Diplomado em piano, história da música, harmonia e contraponto pelo Conservatório Dramático e Musical "Dr. Carlos de Campos", em Tatuí, SP 

Comentários

  1. Como sempre, aprecio muito os comentários do Marco Antônio.
    Assisti no dia 04/05 e acho difícil superar essa montagem primorosa.
    Obrigada pelo texto, Marco, ele vem acrescentar conhecimento da obra composta por Bizet.

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  2. Faltou falar da bela regência de Roberto Minczuk,que extraiu sons pianíssimos, trouxe uma uniformidade em todos os compassos, foi uma direção musical primorosa, luxuosa.Um espetáculo que não se cansa de assistir, foi elencos incríveis . São Paulo agradece . Não tem o que falar mal, todos saem do teatro sorrindo e gratos pela arte.

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  3. Mario Sancigolo Jr.8 de maio de 2024 às 18:17

    Fui ontem, 7/5 ver a Carmen. Encenação primorosa e cenários belos. Que seja apresentada novamente em 2025, sesquicentenário da ópera.

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  4. Ana Maria S. Dias Carvalho8 de maio de 2024 às 18:33

    Marco Antônio Seta, crítico de ópera, mais uma vez fez um trabalho primoroso de análise crítica da famosa ópera Carmen, de Bizet.
    Sua crítica é tão minuciosa e autêntica que ao ler a mesma, parece que estamos assistindo novamente a ópera Carmen. Após assistí-la, leiam com atenção e vcs sentirão o prazer e deleite do trabalho deste excelente crítico que é o Sr. Marco Antônio Seta.

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