ONDE ESTÁ, AFINAL, O ELITISMO DA ÓPERA NO BRASIL? ARTIGO DE MURILO NEVES NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.


Entre as discussões sobre a realidade da ópera no país, paira sempre a questão de um suposto elitismo. Há os que defendem que ele existe, há os que defendem que não. Mas cada vez fica mais difícil identificar onde estaria, afinal, esse elitismo. O ingresso de uma ópera no Brasil é não só muito barato em relação ao gênero no resto do mundo, mas é barato em relação a qualquer entretenimento por aqui tido como popular, como o cinema. O acesso aos espaços onde se faz ópera já superou há muito o estigma “lugar de rico” (códigos de vestimenta e afins), e se não atrai mais o público leigo é por barreira da mídia, não por elitismo. A ópera como profissão pode ser considerada elitista pelo fato de que os estudos, em geral, são caros, e a aposta em uma realização profissional é muito arriscada. Mas o estudo começa muitas vezes em projetos sociais, e quem já esteve em uma universidade de música sabe que boa parte de seus alunos vem desses projetos, ou dependeu deles em algum momento. Quem está no meio pode constatar que grande parte dos membros das orquestras, dos membros dos corais e mesmo dos cantores solistas não vem da elite. Quem frequenta óperas regularmente pode atestar que o público em geral há muito já deixou o estereótipo de “velhos ricos”. O fato de ser normalmente em língua estrangeira talvez também ajude o estigma, mas as legendas presentes há décadas nos teatros de ópera a deixam tão elitista como um filme legendado. Pode-se pensar que a arte em si é elitista por apresentar uma música que não é “popular” (o que inclusive causa um de seus maiores dilemas hoje: qual o melhor termo para definir a música que se contrapõe a “popular”?) Mas a música clássica (ou erudita, ou de concerto, ou “impopular”) é tão acessível hoje como qualquer outra, e se não é mais oferecida ou mais presente, repito, é mais por parte da postura da mídia do que de qualquer postura do meio.

Quem é inflexível quanto ao suposto elitismo da ópera normalmente não cederá a nenhum dos argumentos apresentados. E se remeterá, muito provavelmente, mais à sua origem, sua história, seu imaginário, que à realidade atual. Em geral são pessoas que não são do meio, não são consumidoras, sequer apreciadoras. Falam da ópera com o distanciamento natural de quem fala de algo que não gosta, não defende e não tem na verdade nenhum interesse para além da iconoclastia. Mas para os amantes e fazedores de ópera, o que fica do suposto elitismo que possa nos incomodar? 

Foi-se o tempo (se é que houve) em que os teatros de ópera ficavam vazios. Nos principais teatros do país as récitas costumam estar bastante cheias, quando não lotadas — particularmente quando são apresentados títulos do repertório tradicional. Muitas vezes esgotam-se antes da estreia, e a procura por ingressos por vezes poderia garantir mais pelo menos algumas récitas lotadas. Os lugares que ficam vazios em apresentações que constam como esgotadas nas bilheterias, fato corriqueiro que tanto irrita os frequentadores, é reflexo da lógica de produção, em que o contrato de patrocínio impõe cotas (por vezes muito grandes) de convites que acabam não sendo utilizados. Se um teatro apresenta um número determinado de récitas e elas esgotam antes da estreia, isso é sucesso. Se no ano seguinte faz-se o mesmo número de récitas e elas esgotam igualmente, é consolidação. Se anos e anos a fio isso acontece e o teatro não oferece um número maior de récitas, é falta de visão. A impressão que fica é que o meio se acomoda a um ciclo que parece satisfatório, que garante o mínimo e dá alguma ilusão de estabilidade, mas não se expande, não cresce, e mais comemora o sucesso do que dele se alimenta. 

Se há algo de elitista na ópera no Brasil, para mim é isso. O maior traço de elitismo no nosso meio, no final das contas, é algo tão simples como determinante: o modo de produção. E esse é tão arraigado, tão estabelecido, tão normalizado, que fica até difícil questionar. Ano após ano, temporada após temporada, os teatros produzem um punhado de óperas que são ensaiadas por aproximadamente um mês, apresentadas meia dúzia de vezes e logo são totalmente descartadas. Com muita sorte são recicladas, por eventualidades quase miraculosas são repetidas uma vez em outra temporada ou em outro teatro. Mas a absoluta maioria é feita para ser apresentada meia dúzia de vezes, assistida por no máximo quinze mil pessoas, boa parte das quais convidadas dos patrocinadores, dos artistas ou das instituições, e simplesmente deixam de existir. Centenas de milhares, quando não um milhão, quando não alguns milhões de reais são investidos em um único projeto que não tem em si nenhuma continuidade. Cenários e figurinos são confeccionados, a equipe criativa trabalha por meses em seus projetos, os cantores gastam um bom tempo anterior aos ensaios preparando seus papéis, para quando tudo finalmente ficar pronto ser apresentado cinco, seis vezes (ou menos) e todo esse trabalho ser simplesmente descartado. 

Essa particularidade da ópera é coisa que não se vê em nenhuma outra forma de arte. O gênero que mais se aproxima da ópera pela sua natureza (a linguagem e a complexidade técnica) é o teatro musical. Como um gênero estabelecido no mercado cultural brasileiro (e essa realidade é coisas de poucas décadas), há musicais de todos os tamanhos, de todos os formatos. Se considerarmos que a produção operística alternativa, embora muito bem-vinda, ainda é tímida, a comparação deve ser feita com as grandes produções do teatro musical. Ninguém imagina que uma produtora pense e invista em uma grande produção para fazer uma temporada de menos de dois ou três meses, e que ao final dessa temporada ela não vá ser levada a outras cidades. Se uma grande produção de teatro musical não tem uma vida longa, certamente não será por acreditarem os envolvidos que o que fizeram já é suficiente, ou por preferirem partir para uma nova produção do que estender a vida útil da que já está pronta (opções que, em qualquer caso, não são excludentes). 

Há muitos anos se fala, em mesas redondas, congressos e publicações, que uma das soluções para as dificuldades da ópera no país é a co-produção. Seja em um projeto que já começa compartilhado ou em acordos de empréstimo, aluguel ou troca de produções entre teatros, é uma forma bastante óbvia de reduzir custos e aumentar o volume de trabalho para os artistas e de entretenimento para o público. No entanto, em mais de trinta anos frequentando e observando a ópera no país, conto nos dedos das mãos as vezes em que vi algum desses casos acontecer entre teatros do país. Como conto nos dedos das mãos as vezes em que vi um teatro repetir uma produção própria, algo que parece também bastante óbvio como solução para reduzir custos e oferecer mais títulos por temporada. O que leva o meio a crer que um espetáculo bem-sucedido em sua meia dúzia de récitas não deve ser reapresentado na temporada seguinte? Ou pior, o que leva o meio a achar razoável que se produza, alguns anos depois, uma nova versão (com os altos custos envolvidos) de um mesmo título apresentado, enquanto cenários e figurinos de uma produção relativamente recente e apresentada pouquíssimas vezes apodrecem em algum depósito? 

Nos maiores teatros de ópera do mundo, onde se produz ópera abundante e regularmente, a repetição de produções é a regra. Ano após ano, nos anúncios das temporadas, as novas produções são anunciadas como exceções, e não o contrário. Grandes casas de ópera apresentam orgulhosamente suas produções repetidas como repertório, como um tesouro, como capital cultural já testado e aprovado. Algumas casas apresentam as mesmas produções de um título por décadas a fio. Não sendo mais novidade, as produções amadurecem, se consolidam, dialogam com a passagem do tempo, por vezes tornam-se mesmo obsoletas, e eventualmente são substituídas. Tornam-se clássicas, históricas, viram cartões postais, viram DVDs, por vezes uma mesma produção tem registros comercializados com elencos diferentes, produzidos em diferentes temporadas. Por aqui, onde a continuidade da ópera como fenômeno inserido no imaginário cultural está sempre na gangorra, aposta-se sempre em novidades descartáveis, e a repetição (ou ainda a sobrevida) de produções é que é a exceção.

Há estudos que comprovam o retorno à economia que os investimentos via leis de incentivos geram, e eu sou grato por eles e os uso muito em minhas argumentações a favor do fomento não só da ópera mas da arte como um todo. Além do retorno financeiro em impostos diretos e indiretos, milhares de pessoas têm acesso a um gênero muito rico e significativo de arte, milhares de aficionados têm seu anseio de assistir óperas saciado, centenas de artistas têm seu trabalho fomentado. Mas mesmo se olharmos as necessidades do meio, tanto o profissional como o público, o ciclo normal da produção parece extremamente sub-aproveitado. Do trabalho longo e árduo da equipe criativa ficam as fotos oficiais e pequenos registros profissionais ou amadores; com sorte, tem uma transmissão ao vivo e fica disponível no YouTube. Para os cantores fica sempre a impressão de um processo interrompido, aquela sensação de que quando finalmente está tudo aprumado, termina. E para o público aficionado, ou mesmo para o público eventual, fica muitas vezes o desejo de poder rever um determinado espetáculo, em outro ano, em outra temporada (ou mesmo ter uma nova oportunidade para assistir a um espetáculo para o qual não conseguiu comprar ingressos). E ainda, embora para quem goste de e/ou trabalhe com ópera esse formato esteja razoavelmente satisfatório, é muito difícil defendê-lo perante todo o restante da população que não tem com ela qualquer relação. O número de pessoas atingidas com cada ação não parece proporcional ao tanto de investimento. 

Projetos de aproximação e formação de público levam a ópera ao público leigo, mas não cuidam de aumentar o número de oportunidades para o público já formado, ou mesmo de aumentar o número de récitas para comportar mais espectadores (afinal, a intenção da formação de plateia é formar cada vez mais consumidores). Assim como os projetos de formação de artistas, cada vez mais numerosos (e sempre muito bem-vindos) não dão conta de garantir trabalho para esses artistas quando finalmente chegam ao mercado. A impressão é que o olhar está sempre na possibilidade, na base, no futuro, nunca no hoje, no agora. Talvez pelo espírito do tempo, discute-se mais sobre como fazer a ópera chegar ao público, como fazer o público chegar à ópera, como formar os artistas, do que reflete-se como efetivamente estamos realizando a ópera, como a estamos inserindo no mercado cultural, qual o real lugar dela no espaço da cultura do país e qual o que gostaríamos que ela ocupasse.

E para mim a única maneira de mudar isso tudo é mudar a lógica de produção, torná-la menos pontual e mais duradoura. Encarar uma produção de ópera como um produto continuamente vendável, e não uma bem-sucedida eventualidade.

Murilo Neves

Comentários

  1. Que tristeza ler essa crítica e perceber uma falha tão significativa. Como não mencionar que ao piano estava o excelente pianista Leandro Roverso, com sua sonoridade refinada e expressiva? Estive na primeira fila e pude testemunhar a sensibilidade do trabalho realizado, inclusive com o uso de dois pianos.

    É realmente lamentável ver um artista desse nível ser ignorado em uma crítica. Além disso, não houve gravação alguma foi música ao vivo, feita com excelência.

    Fico profundamente incomodada ao ver um deslize tão grave, especialmente em um trabalho que merece reconhecimento e respeito.

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  2. Compare-se o preço do ingresso de uma ópera ao preço do ingresso para o show de qualquer uma dessas duplas sertanejas populares ou um festival de rock ou pop. Qual é mais "elitista"?

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