A NONA SINFONIA, DE BEETHOVEN , PELA OFES. CRÍTICA DE ÉRICO DE ALMEIDA MANGARAVITE.

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Telefones celulares podem ser irritantes. Quando surgiram as primeiras campainhas monofônicas, o mercado foi inundado por aparelhos que tocavam, com qualidade duvidosa, diversas melodias clássicas.

Beethoven talvez tenha sido a maior vítima dessa indústria: os primeiros acordes da Quinta Sinfonia, o início da despretensiosa bagatela para piano Pour Elise (já massacrada diariamente pelos caminhões de gás e teclas de espera musical dos aparelhos de telefonia fixa) e o principal tema da Nona Sinfonia repentinamente inundaram elevadores, salas de reunião, cinemas e outros ambientes dos mais variados. Inábeis donos de celulares demoravam preciosos segundos até se darem conta que eram os seus próprios aparelhos que soavam insistentemente, incomodando os demais presentes.
O leitor mais atento certamente percebeu que mencionamos aqui “o principal tema”, e não “a” Nona Sinfonia. Tal menção é proposital: se a telefonia móvel colaborou para a divulgação de alguns excertos da música clássica (não obstante a questão da baixa qualidade sonora), popularizou ainda mais uma imprecisão histórica – a ideia de que a Sinfonia nº 9 de Beethoven limita-se apenas ao mais famoso trecho do último movimento (conhecido como “Ode à Alegria”).
O melhor local para se exterminar essa imprecisão é a sala de concertos. Lá, a sinfonia é executada em sua íntegra por orquestra, coro e vozes solistas. Na estreia da obra, em 1824, Beethoven empregou um número de instrumentistas maior do que o usual à época – teriam sido utilizados cerca de cem músicos (profissionais e amadores, agrupados em apenas dois ensaios), fora os cantores. Nesse sentido, percebe-se que a Nona Sinfonia do mestre alemão é uma obra compatível com as grandes ocasiões.
O CONCERTO
Foi com esse espírito de grande ocasião que a Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES), contando com cerca de 60 instrumentistas, apresentou, em 12 de novembro, a Nona Sinfonia. Além da orquestra, foram empregados quatro solistas e três coros amadores (Coro de Câmara de Vitória, Camerata Ifes e Coral Arcelor Mittal Tubarão, preparados respectivamente pelos regentes Cláudio Modesto, Heraldo Filho e Adolfo Alves), somando cerca de 70 vozes.
Todos os 417 lugares do Teatro Carlos Gomes foram vendidos, ainda que uma ou outra cadeira tenha permanecido vazia. Eis a prova que música clássica, quando bem feita e bem divulgada, tem público certo – os concertos nesse teatro lotam com frequência.
Note-se que o número de instrumentistas esteve aquém do recomendável para uma obra de tamanha grandiosidade. De fato, as dimensões do palco não são as ideais – os artistas ficaram mal acomodados, quase não havia espaço entre as estantes. Esse problema, ao que tudo indica, será resolvido com a conclusão de um novo centro cultural na capital espírito-santense, o chamado “Cais das Artes”, mais adequado para receber espetáculos de grande porte. Resta saber se os investimentos na orquestra estarão à altura do novo palco e, por que não dizer, do crescente público local interessado nesse tipo de expressão artística. A classe política deve ficar atenta…
Quanto à performance, no cômputo geral, foi bastante satisfatória. No primeiro movimento (Allegro ma non troppo, um poco maestoso), a orquestra se saiu muito bem nos compassos iniciais da abertura, executando com clareza as frases musicais introdutórias (um bom presságio do que viria, em termos técnicos). Marcante a apresentação do primeiro tema. Ainda era visível, porém, alguma tensão entre os músicos: em certos momentos, nos quais a massa orquestral deveria se fazer presente com maior vigor, a intensidade sonora ficou abaixo do desejável. Essa carência de volume poderia ter sido sanada caso as cordas fossem mais numerosas (solução inviável, devido ao diminuto tamanho do palco).
Felizmente, a tensão foi reduzida no segundo movimento (Molto vivace – Presto), em que a orquestra se mostrou mais segura e desenvolta. Por sinal, o pequeno e simpático trio foi um dos pontos altos da execução. Tivemos uma bela mostra das potencialidades desse conjunto musical, que ostenta em seu currículo execuções de todas as sinfonias de Beethoven.
Antes do terceiro movimento, o coro subiu ao palco por entradas laterais. Tal opção, mais uma vez, se explica pelo tamanho acanhado do espaço – o ideal seria que o coro estivesse acomodado em cadeiras, desde o início da execução. Entretanto, não há espaço para tais assentos no palco. Pelo menos os solistas (que também entraram nesse momento) puderam se sentar em cadeiras postas à frente da orquestra.
A interrupção foi curta, mas parte do público se dispersou, provocando ruídos que perduraram por alguns minutos já durante a execução do movimento seguinte: guloseimas como balas e bombons foram abertas e máquinas fotográficas foram ligadas (afinal, as tias, os primos, os irmãos, os amigos e os conhecidos de alguns poderiam estar no coro). Felizmente, ao longo de toda a noite, só ouvimos um (!) celular tocar…
Mesmo com esses pequenos incidentes, presenciamos uma bonita execução do terceiro movimento (Adagio molto e cantabile), sem dúvida uma das mais belas passagens escritas pelo compositor. Perfeita a escolha dos andamentos pelo regente, preparando o cenário para o movimento seguinte. Destacaram-se ainda as trompas (que ao longo da noite cometeram pouquíssimas falhas), soando muito correto o trecho virtuosístico para a quarta trompa.
E foi com marcante presença sonora que o movimento final (Presto – Allegro assai) irrompeu, em uma massiva e bem articulada introdução. Houve um ligeiro desencontro entre as cordas e as madeiras na exposição orquestral que leva ao tema da “Ode à Alegria”: tal lapso foi rapidamente corrigido pelo regente. No ápice desse trecho, a orquestra soou bastante vigorosa, deixando de lado qualquer inibição que porventura houvesse restado dos movimentos iniciais. E eis que chegamos ao ponto crucial da obra, o momento em que a voz humana se faz ouvida, pela primeira vez, em uma sinfonia composta por um grande mestre: são as palavras escritas por Beethoven que antecederão o poema de Schiller.
O baixo-barítono Lício Bruno brindou a todos com uma voz dotada de bastante potência, confortável nas notas graves e que correu facilmente pelo teatro. Interpretou com inteligência o texto e mostrou perfeito domínio da pronúncia do idioma alemão. O tenor Flávio Leite saiu-se bem no seu solo (“alla marcia”) e mostrou boa sonoridade, principalmente nos conjuntos; o soprano lírico Carla Domingues cantou com afinação correta, mesmo nas notas mais agudas, emitidas com segurança; por fim, ainda que sua parte seja a menos privilegiada pelo compositor dentre as quatro vozes solistas, o mezzo-soprano Luciana Bueno mostrou possuir voz de rara beleza tímbrica, destacando-se entre os cantores que atuaram no concerto.
Já desde sua primeira intervenção, o bem ensaiado coro – considerando o fato de ter sido formado predominantemente por amadores – exibiu-se de modo correto: bom volume, afinação satisfatória na maior parte do tempo e pronúncia adequada. Boa postura em cena, tendo os integrantes cantado com desenvoltura, focados na interpretação da obra, sem se prenderem excessivamente na leitura das partituras.
A orquestra superou-se no quarto movimento, tocando com lirismo os trechos mais calmos e com bravura as passagens mais virtuosísticas. Destaque para os instrumentos de percussão, vibrantes e audíveis na medida certa, sem exageros. Excelente a regência de Helder Trefzger: sem recorrer a gestos desnecessários, conduziu com segurança os instrumentistas, marcando com nitidez os andamentos e indicando com clareza as entradas, inclusive dos cantores solistas.
Bela escolha dos tempi, em especial no segundo e terceiro movimentos; precisão na regência da coda que encerra a sinfonia (prestissimo), executada sem quaisquer atropelos ou sonoridades confusas. Não se pode ignorar que esse regente tem levado a orquestra a alçar voos antes inimagináveis, prezando pela formação de um sólido repertório: além do ciclo com as sinfonias completas de Beethoven, já foram apresentadas pela OFES quatro sinfonias de Mendelssohn, três de Schubert, duas de Schumann e as quatro de Brahms, dentre outras obras.
Ao final, o público aplaudiu calorosamente os intérpretes, com destaque especial para a orquestra e para o regente. Uma belíssima apresentação, que nos faz aguardar com ansiedade o próximo espetáculo (“Um Réquiem Alemão”, de Brahms, no final de novembro).
Érico de Almeida Mangaravite

FONTE: http://www.movimento.com/

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