"OTELLO" , PROVA DE FOGO PARA TENORES - CRÍTICA DE ÉRICO DE ALMEIDA MANGARAVITE
Quando a ópera Otello estreou no Scala de Milão, em 1887, a orquestra do teatro italiano contava com um jovem e entusiasmado violoncelista, que no ano anterior iniciara sua carreira paralela como regente.
Ao fim da récita, o rapaz correu para casa e acordou a mãe aos berros, com as seguintes palavras: “é uma obra-prima! Ajoelhe-se e diga Viva Verdi!”.
Ninguém deveria acordar a própria mãe desse jeito, mas o fato é que o rapaz, chamado Arturo Toscanini, anos depois abandonaria a carreira de instrumentista para se tornar um dos mais aclamados regentes de toda a história. Otello, por sua vez, se tornaria uma das óperas mais encenadas em todo o mundo.
Uma vez encenada, seu sucesso depende fundamentalmente da atuação do protagonista. O papel é considerado dificílimo: diversos tenores de renome evitaram interpretá-lo na íntegra. Caruso, Corelli e Björling morreram sem tê-lo feito. Bergonzi tentou a proeza em um concerto nada memorável, aos 76 (!) anos de idade. Carreras limitou-se a cantar alguns trechos em recitais. Pavarotti deixou-nos um registro irregular, gravado em estúdio. Dentre os mais bem sucedidos, temos Placido Domingo, que geralmente optava por transpor certos trechos para tons mais graves, a fim de cantá-los com maior facilidade, e o mítico Mario Del Monaco, tenor não muito adepto de sutilezas interpretativas, que cantou o papel mais de 200 vezes (consta que teria sido sepultado, por vontade expressa, trajado como Otello).
O DVD recém-lançado pelo selo The Metropolitan Opera (do teatro homônimo), gravado ao vivo em uma única récita no dia 25 de setembro de 1978, conta com o canadense Jon Vickers no papel principal. Gravações assim têm suas desvantagens: mesmo as pequenas falhas não podem ser corrigidas em estúdio sem que isso soe artificial e não há como se fazer uma montagem, selecionando os melhores trechos de diferentes apresentações (prática comum em DVDs de ópera). Porém, o resultado é um retrato mais fiel daquilo que se vê no teatro.
Limitações
Na presente gravação, são nítidas as limitações do grande tenor canadense. Seu domínio do idioma italiano deixa a desejar: nota-se o sotaque carregado, certos erros de pronúncia e até frases incompreensíveis. Ademais, Vickers, que não possuía grande extensão na zona mais aguda da voz, grita ou falha em algumas passagens.
O artista, porém, supera tais limitações ao interpretar o papel com todas as nuances dramáticas necessárias: no 1º ato, o personagem é viril e ao mesmo tempo sereno em seu dueto de amor com a esposa, Desdemona; no 2º ato, ao ser instigado pelo vilão Iago e passar a crer que é traído pela consorte, Otello torna-se um homem à beira da ruína. Nos dois últimos atos, o protagonista é um homem em frangalhos, a pálida sombra do grande comandante militar que um dia foi.
Além de bom ator, Vickers se destaca vocalmente em diversos trechos. A frase “è il fazzoletto ch’io le diedi; pegno primo d’amor” (final do 2º ato) é cantada vagarosamente, em um sussurro, como se fosse a derradeira tentativa de retardar a inevitável tragédia que se abaterá sobre o protagonista. Em “Dio mi potevi scagliar” (início do 3º ato) nota-se o lirismo, o refinamento e a habilidade técnica do tenor, que observa fielmente a difícil dinâmica musical exigida pelo compositor. Na grande cena com coro do 3º ato, Vickers canta certas frases dirigidas a Desdemona “sottovoce”, exatamente como consta da partitura, alternando-as com frases cantadas em volume regular dirigidas aos demais presentes em cena: o efeito é impressionante.
Som e imagem bastante razoáveis para os padrões da época, as mais que satisfatórias atuações de Cornell MacNeil como Iago e Renata Scotto como Desdemona (além de um muito jovem James Morris no pequeno papel de Lodovico), boa presença do coro e da orquestra e excelente regência de James Levine tornam o DVD indispensável para quem aprecia essa obra-prima. Só não acorde ninguém após assistir.
Personalidade forte
Temperamental, Vickers era célebre por suas discussões com cantores, regentes e diretores. Tais entreveros deviam-se ao extremo profissionalismo do cantor, bastante exigente tanto com si mesmo quanto com os que o cercavam. Em outra produção de Otello, xingou em um ensaio o regente Zubin Mehta ao perceber que o regente indiano não estudara apropriadamente a partitura. Mehta alegou que estava com a agenda cheia e não pudera se dedicar integralmente à obra. Vickers foi embora do ensaio, não sem antes dizer: “só me chame de volta quando tiver aprendido a partitura.”
DVD Otello – Ópera de Giuseppe Verdi
Jon Vickers, Renata Scotto, Cornell MacNeil, Metropolitan Opera, James Levine
Preço médio: R$ 70. Importado. Cantado em italiano. Legendas em inglês.
Érico de Almeida Mangaravite.
Fonte: http://www.movimento.com/
Ainda não assisti nem ouvi Otello.
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