Ghena Dimitrova: La Forza del Destino, Estrasburgo 1972 .Artigo de Hugo Santos no blog de Ópera e Ballet.
Ghena Dimitorva
A carreira de um cantor lírico pode processar-se de modo diverso. Intérpretes há cuja estreia em papeis de destaque os guinda, quase instantaneamente, à mais fúlgida constelação operática. Inversamente, existem aqueles que após um discreto dealbar, vão solidificando a sua posição, por vezes, aguardando aquela oportunidade que transmute irreversivelmente o seu percurso, tal como sucedeu a Montserrat Caballé a 20 de Abril de 1965, ao substituir Marilyn Horne no papel-titular da ópera Lucrezia Borgia de Donizetti, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, facto que a alcandorou inequivocamente ao primeiro plano da Lírica mundial. Encontramos, ainda, profissionais cuja óptima impressão inicial, consubstanciada quer por participações vitoriosas em prestigiados concursos de canto, quer por exibições de elevado nível, ainda que reconhecidas, não logrou surtir o efeito mobilizador espectável, deixando uma impressão algo contraproducente. Tal terá sido o caso do soprano búlgaro Ghena Dimitrova.
A carreira de um cantor lírico pode processar-se de modo diverso. Intérpretes há cuja estreia em papeis de destaque os guinda, quase instantaneamente, à mais fúlgida constelação operática. Inversamente, existem aqueles que após um discreto dealbar, vão solidificando a sua posição, por vezes, aguardando aquela oportunidade que transmute irreversivelmente o seu percurso, tal como sucedeu a Montserrat Caballé a 20 de Abril de 1965, ao substituir Marilyn Horne no papel-titular da ópera Lucrezia Borgia de Donizetti, no Carnegie Hall, em Nova Iorque, facto que a alcandorou inequivocamente ao primeiro plano da Lírica mundial. Encontramos, ainda, profissionais cuja óptima impressão inicial, consubstanciada quer por participações vitoriosas em prestigiados concursos de canto, quer por exibições de elevado nível, ainda que reconhecidas, não logrou surtir o efeito mobilizador espectável, deixando uma impressão algo contraproducente. Tal terá sido o caso do soprano búlgaro Ghena Dimitrova.
Nascida a 6 de Maio de 1941, ingressou no Conservatório de Sófia onde teve oportunidade de estudar Canto com o barítono Christo Brambarov. A 27 de Dezembro de 1967, na Ópera de Sófia, a incapacidade quase concomitante de dois sopranos em afrontar o mortífero papel de Abigaille na ópera Nabucco de Giuseppe Verdi confere-lhe a oportunidade de se estrear profissionalmente num papel de destaque. Sem qualquer tipo de preparação, Dimitrova ultrapassa, galhardamente, o desafio ao qual se havia proposto. Nos três anos subsequentes, torna-se presença assídua no principal palco lírico do seu país-natal assumindo, para lá da princesa babilónia (personagem que se viria a revelar absolutamente emblemática na carreira da cantora), papeis tão díspares como Emma na ópera Khovanshchina de Modest Mussorgsky e Leonora em Il Trovatore de Giuseppe Verdi. Em Maio de 1970, a vitória alcançada na quarta edição do Concurso Internacional para Jovens Cantores Líricos, levado a cabo na Ópera de Sófia, confere-lhe a atribuição de uma bolsa de aperfeiçoamento vocal em Itália. No país transalpino, Dimitrova ingressa na Academia do Teatro Alla Scalla, instituição na qual estuda com Renato Pastorino, Enza Ferrari, Margherita Carosio e Gina Cigna.
Em Junho de 1972, a assunção do papel de Amelia na ópera Un Ballo in Maschera de Verdi alça-a ao pódio do prestigiado Concurso Internacional "Toti Dal Monte" de Treviso. No final desse mesmo ano, exibe-se, no respectivo Teatro Comunale, junto dos demais vencedores do certame (o tenor Ottavio Garaventa, os barítonos Giuliano Bernardi e Antonio Salvadori e o meio-soprano Christina Anghelakova) na obra que a havia consagrado meses antes. O sucesso obtido abre-lhe, de modo imediato, as portas do Teatro Régio de Parma onde Dimitrova tem a oportunidade de enfrentar, porventura, a mais temível das "tribos" operáticas italianas. Ladeada pelo jovem Jose Carreras, Piero Cappuccilli e Mirna Pecile, sob a direcção de Giuseppe Patanè, o soprano é ovacionado, sem reservas, pelo exigente público parmesão. Pese embora o percurso, aparentemente, ascendente trilhado pela intérprete, os triunfos aqui relatados não terão encontrado eco junto dos teatros líricos de maior nomeada. De facto, logo após a frutuosa participação no concurso ocorrido em Treviso, Dimitrova estreia-se, com Jean Brazzi e Pali Marinov, na Tosca de Giacomo Puccini no Grand Theatre de Tours (França). Logo de seguida, encontra-se em Bordéus num novo papel - a Aida de Giuseppe Verdi - ladeada por Peter Gougaloff e Irina Arkhipova. Em Março de 1974, interpreta novamente a princesa etíope, desta feita, em Las Palmas, integrando um elenco composto por Carlo Bergonzi, Christina Anghelakova, Giampiero Mastromei, Paolo Washington e Giovanni Foiani, dirigidos por Michelangelo Veltri. Em Abril, regressa a um palco italiano, alternando a sua Abigaille com Elena Suliotis no Teatro Massimo de Palermo. Cornell MacNeil e Boris Christoff eram os destacados intérpretes masculinos.
Em Setembro desse mesmo ano, dá-se a conhecer ao público sul-americano num exigente recital no paradigmático Teatro Colón de Buenos Aires. Regressa a Itália, designadamente, a Treviso para a Minnie da ópera La Fanciulla del West de Giacomo Puccini, ombreando com Renato Francesconi e Giangiacomo Guelfi (Novembro de 1974). Em Junho de 1975, o soprano búlgaro desloca-se a Saragoça para um Andrea Chenier de Umberto Giordano com Placido Domingo e Vicente Sardinero. A época estival que ora principiava seria, contudo, pontuada por uma expansão de latitudes sul-americanas. Em Caracas reencontra Domingo e Cappuccilli em dois títulos da produção verdiana: Ernani (ainda com Jerome Hines em Don Ruy) e Un Ballo in Maschera (Barbara Conrad assumia Ulrica). Em Outubro, tem lugar uma incursão inicial na cena lírica brasileira: o Teatro Municipal de São Paulo acolhe a sua Aida, juntamente com Francisco Lazaro, Maria Luisa Nave, Garbis Boyagian, Mario Rinaudo e Carlo Del Bosco, sob a égide de Giuseppe Morelli. Cerca de um mês depois, a estreia nas temporadas do Gran Teatre del Liceu, em Barcelona, faz-se por intermédio da Amelia de Un Ballo in Maschera com Giorgio Casellato-Lamberti, Renato Bruson e Adriana Stamenova. Escassas semanas mais tarde, leva a sua Maddalena de Coigny da ópera Andrea Chenier à Cidade do México. Tornando ao Velho Continente, afronta, pela primeira vez, uma das personagens que a celebrizaria: a gélida princesa Turandot, na ópera homónima de Puccini. O Teatro Comunale de Treviso abrigava um novel triunfo de Ghena Dimitrova, rodeada por Piero Visconti, Rita Talarico e Giancarlo Luccardi. Os primeiros meses de 1976 transcorrem em França: no mês de Fevereiro encarrega-se da Leonora de Il Trovatore em Avignon com Peter Gougaloff, Stoyan Popov e Michele Vilma; em Março, uma outra Leonora - a da ópera La Forza del Destino - aguardava-a em Angers junto a Renato Francesconi e Lorenzo Saccomani. Finalmente, Abril vê-a no papel de Floria Tosca, desta feita, em Rouen, dividindo o palco com o Cavaradossi de Giorgio Merighi. A cidade de Caracas acolhia-a em Maio para uma produção de La Fanciulla del West (Nicola Martinucci interpretava Dick Johnson e Louis Quilico o xerife Jack Rance) e uma outra de Tosca (com Ruben Dominguez e, novamente, Quilico). O público gaulês testemunhou o regresso de Dimitrova, designadamente, a Marselha, em Outubro de 1976, com um Ernani no qual avultavam Nunzio Todisco, Franco Bordoni e Georg Pappas, com direcção orquestral a cargo de Carlo Felice Cillario. Em Barcelona, encarrega-se do papel-titular na ópera Manon Lescaut de Puccini, ladeada por Francisco Lazaro e Attilio D'Orazi. O soprano concluía o ano volvendo a determinadas "origens" com a Amelia de Un Ballo in Maschera, em Treviso, desta feita, integrando um elenco formado por Vincenzo Bello, Antonio Salvadori, Nicoletta Ciliento e Alida Ferrarini, dirigidos por Carlo Franci.
No mês de Abril de 1977, Ghena Dimitrova desloca-se a Valência para uma Tosca com Placido Domingo, Attilio D'Orazi e o maestro Alberto Zedda. De retorno ao continente americano, aguardava-a um duplo compromisso na capital venezuelana: Santuzza na ópera Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni, contracenando com Nicola Martinucci e Richard Fredricks e a protagonista em Manon Lescaut de Puccini. Algumas semanas mais tarde, em Buenos Aires, encarna Turandot no prestigiado Teatro Colón, novamente com Nicola Martinucci. Em Novembro, depara-mo-nos com o soprano búlgaro em Nice, local onde interpreta, pela primeira vez, um dos mais representativos papeis do seu reportório: Gioconda na ópera homónima de Amilcare Ponchielli, liderando um elenco formado por Ottavio Garaventa, Franco Bordoni, Michele Vilma e Agostino Ferrin, sob direcção de António de Almeida. O ano de 1978 inicia-se, igualmente, em solo gálico, designadamente, em Avignon, com um Don Carlo onde avultam Gianfranco Cecchele, Bonaldo Giaiotti, Bianca Berini, Stoyan Popov e Gérard Serkoyan. Entre os meses de Março e Maio, oscilando entre os continentes europeu e sul-americano, desloca-se à Cidade do México para uma produção da ópera Nabucco encimada por intérpretes búlgaros e regressa a França para um Macbeth em Marselha com Matteo Manuguerra, Pierre Thau e Beniamino Prior. Após incursão inaugural pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro com Turandot, ladeada por Ruben Dominguez e Maria Lúcia Godoy, apresenta-se em Espanha, retornando, respectivamente, a Valência (Manon Lescaut com Renato Francesconi e Antonio Blancas) e Las Palmas (Nabucco, circundada por Juan Pons, Paul Plishka e Luis Lima). O Verão desse ano seria marcado por uma produção da ópera Don Carlo no Teatro Colón. A distribuição abarcava nomes como Nicola Martinucci, Matteo Manuguerra, Nicolai Ghiuselev, Irina Bogachova e William Wildermann, sob a égide de Francesco Molinari-Pradelli.
Em determinado momento, a exigente rotina exercitada por Ghena Dimitrova ao longo desta fase inicial principiou a suscitar uma vaga de interesse no meio musical germânico. De facto, novas perspectivas abriam-se em Novembro de 1978 com a estreia do soprano em Hamburgo com a Leonora de Il Trovatore integrada num elenco formado por Juan Lloveras, Vicente Sardinero e Ruza Baldani, com direcção a cargo de Nello Santi. Após apresentações em Bari na ópera Un Ballo in Maschera com Ottavio Garaventa, Piero Cappuccilli e Lella Stamos, no mês de Janeiro, Tosca em Rouen junto a Nicola Martinucci e Kari Nurmela (Fevereiro) e um Ernani em Las Palmas protagonizado por Francisco Lazaro, Wassilli Janulako e Nicolai Ghiuselev (Março de 1979), Dimitrova é convidada a estrear-se na Ópera do Estado da Baviera, em Munique. A 13 de Maio exibe-se enquanto Elisabetta di Valois na ópera Don Carlo de Giuseppe Verdi. Novamente com Nello Santi no elmo, o elenco contemplava ainda Carlo Cossutta, Renato Bruson e Lorenzo Gaetani. O sucesso alcançado habilita-a, cerca de um mês depois, a um regresso a este mesmo palco, desta feita, na ópera Tosca com os demais vértices do trio protagonista assegurados por Benito Maresca e Leif Roar. O Estio é dividido entre o Rio de Janeiro (Il Trovatore com Ruben Dominguez, Benito di Bella e Bianca Berini) e Ravenna (partilhando o palco com Renato Bruson e Bonaldo Giaiotti na ópera Nabucco). Seria precisamente com este mesmo título que o soprano búlgaro encerraria o ano, em Avignon, com Kostas Paskalis, Salvatore Fisichella e, uma vez mais, Giaiotti.
Em Janeiro de 1980, Dimitrova encontra-se novamente em Munique. O seu estatuto principia a consolidar-se por intermédio de récitas das óperas Don Carlo (com Simon Estes, Wolfgang Brendel e Livia Budai) e Un Ballo in Maschera (Jose Carreras interpretava o monarca sueco). No mês seguinte, estabelece-se em França, reduto reiteradamente frequentado, com a ópera Tosca: primeiramente, em Orleans junto a Jose Todaro e Lajos Miller e, poucos dias mais tarde, em Rouen com Ottavio Garaventa em Cavaradossi. Volve a terras germânicas, em Abril, para um Nabucco na Deutsche Oper am Rhein (Dusseldorf) com Anthony Baldwin, Peter Meven e William Holley, sob a direcção de Alberto Erede. No mês de Maio, em Munique, interpreta a Leonora de La Forza del Destino ombreando com Veriano Luchetti e Wolfgang Brendel; em Junho, após um Don Carlo em Marselha com Giacomo Aragall, Giorgio Zancanaro, Bonaldo Giaiotti e Sandra Browne, retorna a Hamburgo com a Abigaille da ópera Nabucco e à capital bávara em apresentações adicionais de La Forza del Destino.
O percurso firme e paulatino trilhado por Dimitrova deparar-se-ia com um momento charneira a 10 de Julho de 1980 num dos mais tradicionais e emblemáticos palcos mundiais: a Arena de Verona. A ópera era La Gioconda, o elenco reunia colossos da magnitude de Luciano Pavarotti e Piero Cappuccilli, em torno dos quais gravitavam nomes de sólida estatura como Maria Luisa Nave, Bonaldo Giaiotti e Patricia Payne. O maestro Anton Guadagno ocupava o pódio. Emergindo gloriosamente de um elenco em supremo estado de graça, o soprano estabelecia-se definitivamente entre os mais notáveis intérpretes do firmamento lírico, inequivocamente aclamada por um delirante público rendido a um instrumento de proporções, aparentemente, inexauríveis na massiva capacidade impactante e admirável arsenal técnico. Convertando-se, quase instantaneamente, numa dilecta do público veronês, o nome de Ghena Dimitrova não tardaria a encabeçar sucessivas temporadas em alguns dos mais prestigiados teatros líricos mundiais, designadamente, a Ópera de Viena (Setembro de 1983, após um circunscrito conjunto de discretas aparições entre 1978 e 1979), o Teatro Alla Scala (Dezembro de 1983), o londrino Covent Garden (Julho de 1985) ou, nos estertores da década, o Metropolitan de Nova Iorque (Dezembro de 1987), obrigatoriamente, em papeis de elevada exigência técnico-dramática. O soprano búlgaro viria a falecer na cidade italiana de Milão a 11 de Junho de 2005.
No período imediatamente anterior à vitória obtida no concurso de Treviso, Ghena Dimitrova havia iniciado um périplo pelos mais diversos palcos líricos franceses interpretando a desditosa Leonora di Vargas da ópera La Forza del Destino de Giuseppe Verdi, empresa que haveria de estender-se por cerca de um ano. Será precisamente numa destas récitas em particular que o Memória de Ópera deter-se-á, por intermédio de uma preservação efectuada ao vivo na Ópera Nacional do Reno, em Estrasburgo, a 7 de Maio de 1972. A intérprete em destaque patenteia já uma voz perfeitamente modelada, caracterizada por um acentuado contraste tímbrico entre graves corpóreos e uma região aguda de um poderio fulgurante. Não obstante a assimetria observada, o soprano sucede na manutenção de uma homogeneidade de emissão e um notável domínio do espectro dinâmico a que acresce um insuspeito lirismo na abordagem do fraseado, aspecto que, numa fase posterior, acabaria por claudicar ante o metal vocálico que se apoderaria inapelavelmente do portentoso instrumento.
Hugo Santos
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