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IDOMENEO : A REVELAÇÃO (E PROVAÇÃO!) DE MOZART . ARTIGO DE FREDERICO TOSCANO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.



   Por mais que eu ouça ou assista Idomeneo, Re di Creta (KV 366), não consigo saciar minha sede sobre essa ópera. É como se nela já se pudesse sentir lampejos da produção mais distante de Mozart. Grande Missa em Dó Menor, Don Giovanni, La Clemenza di Tito, Requiem e outras obras que viriam pela frente parecem estar semeadas em Idomeneo. Meu primeiro contato com essa ópera foi na gravação de Sir Colin Davis pela Philips, que comprei no início da década de 90.

Álbum de Idomeneo por Davis/Philips
No início, parecia algo muito sisudo e solene. Fui acordando para Idomeneo a partir do registro em vídeo do Metropolitan Opera de Nova York com Pavarotti, Cotrubas, Behrens, Stade e Levine pela Deutsche Grammophon, ainda em VHS quando conheci (felizmente foi relançado em DVD).

DVD de Idomeneo por Levine/DG
A primeira paixão foi a ária Fuor del mar, algo inevitável pela beleza que extravasa dessa prova de fogo para tenores. Depois, pelo mesmo caráter, veio D’Oreste, d’Aiace (vídeo abaixo). E assim a coisa foi fluindo… Chegaram as gravações de Pritchard (Decca), Böhm (DG), Harnoncourt (Teldec), Gardiner (Archiv), Schmidt-Isserstedt (EMI) e Jacobs (HM)…
Hoje, em pleno janeiro de 2011, quase 20 anos de apreciação de Idomeneo, volto ao velho e valioso álbum da Complete Mozart Edition (Davis/Philips) e me emociono com a regência impecável, a qualidade dos cantores e instrumentistas – como Francisco Araiza em Accogli, o re del mar (cavatina con coro, áudio abaixo) – e, especialmente, pela capacidade de Mozart em compor algo que assimilou a elevada beleza das óperas de Gluck e a musicalidade da tradicional opera seria italiana.
Podemos dizer que Mozart sintetizou esses dois estilos e injetou no eixo de Idomeneo toda a potência do seu talento. Isso tudo não podia deixar de resultar na considerada primeira obra-prima mozartiana por muitos estudiosos do compositor, como Stanley Sadie – embora eu a considere como a segunda desse nível, sendo Mitridate, Re di Ponto (KV 87) o primeiro grande milagre operístico de Mozart. Sim, porque até Hasse – o compositor de óperas reverenciado na Itália da época – se rendeu a Mitridade em sua estréia, e ao compositor de 14 anos de idade. No vídeo abaixo, Yvonne Kenny canta a primeira ária de Aspasia em Mitridate.
Voltando a Idomeneo, no livro O Diálogo Musical, Harnoncourt considera esta como a ópera mais bem documentada de todos os tempos – tudo era exaustivamente descrito por Mozart ao pai, que havia ficado em Salzburg (Mozart resolveu partir cedo para concluir a composição em Munique). Sente-se o romper das garras do antigo para um novo mundo operístico. Para isso contribuíram dois fatores determinantes:
1) o desesperado desejo de Mozart em compor ópera, quando se encontrava sufocado (como ele mesmo considerava) em Salzburg, debaixo da capa vermelha do arcebispo-chefe – que tratava a música como algo meramente funcional, mesmo sendo violinista; e
2) ter Mozart à disposição para sua nova ópera a considerada melhor orquestra do mundo: a Orquestra de Mannheim, criada em 1720 pelo grande Eleitor Palatino Karl III Philipp (foto abaixo) – é por essas atitudes que certas criaturas realmente não vieram ao mundo por acaso! Com essa rica orquestra, finalmente Mozart usaria o clarinete numa ópera! Ele poderia usar ainda quatro trompas, além do flautim e do trombone!

Karl III Philipp, Eleitor Palatino
Aqui vale a pena mais um parêntese: o poder da Orquestra de Mannheim era tal que gerou uma escola de músicos e compositores (Stamitz, Cannabich) e estes lançaram uma série de idéias inovadoras para a música orquestral de sua época, entre elas: o chamado Crescendo de Mannheim – um crescendo desenvolvido por toda a orquestra – assim como o decrescendo; e a Grande Pausa de Mannheim – quando todo o motor orquestral pára por um instante em silêncio total e retorna com todo vigor em seguida. Mozart experimentou notadamente o Crescendo de Mannheim em sua Sinfonia Concertante para cordas (KV 364), como se pode ouvir no áudio abaixo. Haydn também se inspirou na Escola de Mannheim para escrever suas Sinfonias Parisienses – meu ciclo favorito nesse grande mestre.
Apesar da empolgação de Mozart com Idomeneo, nem tudo colaborou com o pequeno gênio, então com 24 anos. Dois grandes obstáculos tiveram que ser contornados:
1) o limitado libretista, que enviava para Mozart textos que o faziam suar frio de tão ruins, segundo o exigente compositor (é famoso o caso da palavra rinvigorir, que irritou Mozart profundamente); e
2) os cantores previamente impostos: vaidosos e muito aquém da impiedosa pena mozartiana – em especial, o velho tenor Anton Raaff, com quem Mozart ainda tinha paciência por ser antigo amigo. Del Prato, o castrato que estreou Idamante, também não conseguiu dar conta do recado.
No primeiro caso, Mozart não agüentou o baixo nível do libreto e decidiu ele mesmo fazer correções à revelia do libretista – que nunca aceitava as sugestões do compositor (e de qualquer ser vivo). Mozart chegou a fazer mais de cem (!!!) correções no texto, segundo Harnoncourt.
No outro ninho de espinhos, o compositor fez bastante ginástica. Além de ter adaptado inúmeras vezes as árias para agradar às gargantas nada-humildes, ele teve que compor novas peças de exibição para os cantores, que competiam entre si sobre o número de momentos exclusivos no palco. Mozart teve, por exemplo, que aliviar a fúria musical em Fuor del mar – originalmente cheia de ornamentações e longos desfiladeiros ameaçadores para o cantor – e torná-la “cantável” ao cansado Raaff. No vídeo e áudio abaixo, podemos conferir as duas versões da ária: a primeira é a completa (notável interpretação!); a segunda, reduzida (ainda assim, Plácido Domingo quase naufraga!).
Anos depois, Mozart reapresentou Idomeneo em Viena (1786), num concerto privado para a família Auersperg (foto abaixo), após reduzir estrofes, escrever novos números, transformar Idamante em tenor e até mesmo atender a um nobre que queria se exibir ao violino, compondo mais uma ária: Non temer, amato bene, como solo desse instrumento, o KV 490 (dois números antes de Le Nozze di Figaro), com trecho em áudio abaixo.

Palácio Auersperg, em Viena, onde Idomeneo foi reapresentado em 1786
Para completar a saga, como o estilo francês era muito apreciado pela corte de Mannheim, Mozart teve que compor um balé para o final da ópera, que recebeu o KV 367.
Uma curiosidade: Idomeneo estreou em 1781, no Cuvilliès-Theatre em Munique (foto abaixo), decorado pelo mestre do rococó François de Cuvilliés, que deu nome ao belo teatro. Sua estatura era inversamente proporcional ao seu talento, pois Cuvilliés era anão!

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