"LULU" GANHA ÓTIMA MONTAGEM EM MANAUS. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

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Apesar de alguns poucos excessos, encenação ousada e elenco homogêneo garantem o triunfo da ópera de Berg.


Lulu é uma ópera em um prólogo, três atos e oito cenas de Alban Berg, sobre libreto do próprio compositor, com base em duas peças do dramaturgo alemão Frank Wedekind: Erdgeist (O Espírito da Terra) e Die Büchse der Pandora (A Caixa de Pandora).  Escrita entre 1929 e 1935 e deixada incompleta, a obra estreou em 1937, sendo apresentada somente até o segundo ato.
Apenas em 1979, após a morte da viúva de Berg (que relutava em autorizar o complemento da partitura), o também austríaco Friedrich Cerha musicou o terceiro ato e a ópera pôde enfim estrear completa, naquele mesmo ano, no Opéra, de Paris.

Lulu é, ainda hoje, bastante moderna e arrojada, seja pelo aspecto musical, seja pelo seu conteúdo dramático.  A trama conta a história de uma bela e sedutora mulher de passado obscuro.  Sobre este passado, ficamos sabendo somente de informações esparsas e, por vezes, desencontradas.  Protegida desde seus 12 ou 13 anos pelo Dr. Schön, o dono de um jornal, Lulu casa-se três vezes e vê morrer cada um de seus maridos, sendo o próprio Schön o último deles, assassinado por ela (os dois primeiros morreram de ataque cardíaco e suicídio).
Dona de uma sexualidade quase elétrica, a protagonista não só atrai os homens (e também uma condessa lésbica), como os enfeitiça com sua beleza e sensualidade, levando todos (inclusive ela mesma) à ruína e à degradação.  Sempre tendo amantes, ela vive entre a sociedade (Schön, Alwa, Condessa Geschwitz) e a marginalidade (Schigolch, Atleta, o Marquês traficante de escravas brancas).  Em meio à luxúria e à promiscuidade, sua decadência até a prostituição, incluindo a transmissão de uma DST a Alwa, é nada mais do que a consequência de uma vida inconsequente e libertina, que vai de encontro à moral hipócrita vigente até os nossos dias.

Lulu é, ao mesmo tempo, algoz e vítima.  Conquista os homens para usá-los; é cruel ao ponto de dominar Schön psicologicamente; parece fria e calculista quando revela a Alwa que a mãe deste (a primeira esposa de Schön) fora envenenada por ela.  Por outro lado, desde criança é usada pelos homens, cobiçada por eles, que não querem, ou não sabem, entendê-la nem amá-la, mas tentam tirar o melhor proveito de sua companhia, seja sexual, financeira, ou simplesmente o prazer de poder exibir à sociedade uma mulher com a sua beleza.  Como integrante desse mundo sórdido, onde pululam ameaças, chantagens e violência, Lulu parece não ter olhos nem sensibilidade para perceber que a única que, talvez, e apenas talvez, a tenha amado de verdade, seja a Condessa.

Abrindo o XVI Festival Amazonas de Ópera, a encenação assinada pelo diretor argentino Gustavo Tambascio para o Teatro Amazonas tem excessos, como ambientar a ação no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro (os dois primeiros atos), em Petrópolis (3° ato, cena 1) e em Manaus (3° ato, cena 2), quando o libreto é preciso quanto à localização da trama, sendo Paris citada nominalmente por alguns personagens e ninguém imaginar uma figura marcante como Jack, o Estripador, em outro lugar que não seja Londres.  Além disso, é no mínimo estranho e apelativo colocar uma passista de escola de samba em meio às feras do circo que são usadas como figurantes por toda a ópera.  Ou seja, uma atitude forçada e desnecessária, apenas para justificar a concepção do diretor, segundo a qual os acontecimentos da trama ocorrem durante o Carnaval.

Se, no entanto, fizermos um esforço para desconsiderar tais excessos, de resto a encenação de Tambascio é bastante ousada, mas apropriada, com cenas que simulam o ato sexual e ainda masturbação feminina e masculina, chegando mesmo à simulação de orgasmos (de Lulu, enquanto se masturba no primeiro ato; e de Alwa, no segundo ato, ao fazer sexo com a protagonista), mas tudo adequado ao contexto da trama, sem exageros, e sem abrir mão do humor nos momentos oportunos.  O trabalho de direção dos solistas é muito bem feito, e todos, sem exceção, têm ótima interpretação cênica.
Os cenários de Leonardo Ceolin (do Ateliê La Tintota) são simples (para não perder o hábito de todos os cenários de ópera produzidos no Brasil), mas funcionais, em especial aqueles do terceiro ato.  É bonito o efeito da chuva na cena final.  Também a cargo do Ateliê La Tintota, é muito bem construído o vídeo (filme mudo) exibido durante o interlúdio do segundo ato, conforme previsto no libreto.

Os figurinos de Rosa Magalhães são de boa qualidade e totalmente integrados à concepção de Tambascio.  A luz de Fábio Retti é correta e os bailarinos do Corpo de Dança da Amazônia cumprem adequadamente o seu papel, representando os animais do circo do prólogo e funcionando como figurantes nos atos subsequentes.
Na récita de 22 de abril (a segunda), a Amazonas Filarmônica, encorpada pela Amazonas Band, esteve muito bem sob a direção de Luiz Fernando Malheiro.  Em que pese um ou outro deslize ao longo de uma partitura bastante complexa, a interpretação geral foi de bom nível e bastante satisfatória.  Méritos também para o maestro, Diretor Artístico do FAO, tanto pela condução segura, quanto pela simples escolha de Lulu para integrar o Festival deste ano.

O elenco de solistas é bastante homogêneo e, na boa acústica do Teatro Amazonas, contribui muito para o bom resultado final da montagem.  O baixo Roberto Paulo (um criado), a mezzosoprano Elaine Martorano (uma decoradora), a soprano Tamar Freitas (uma garota de 15 anos) e a mezzo Andreia Souza (a mãe da tal garota de 15 anos), não comprometeram em suas pequenas partes.  Estiveram bem o barítono Vinícius Atique (um jornalista), o baixo Murilo Neves (um banqueiro, um diretor de teatro e outros papéis mudos), e a mezzo Carolina Faria, que interpretou uma camareira, um valete e, especialmente, um estudante, com ótima desenvoltura.
Muito bem estiveram o baixo Pepes do Valle, como um Schigolch ora sério, mas quase sempre engraçado, e ainda os tenores Flavio  Leite (um negro e, em especial, o Pintor) e Gilberto  Chaves (o Príncipe, um mordomo e o Marquês).  Ótimas performances destacaram os trabalhos do tenor Juremir Vieira (um Alwa bastante expressivo e lírico), do barítono Eduardo Amir (um Atleta cômico, bastante musical e de voz muito bem projetada, além de um Domador insinuante) e do baixo-barítono holandês Matteo de Monti (um Jack, o Estripador, frio na medida, e um Dr. Schön adequadamente atormentado e bastante convincente).

Não há como não dar destaque especial ao excelente trabalho de duas alemãs.  A mezzosoprano Ulrika Tenstam encarnou com enorme propriedade a Condessa Geschwitz, emprestando desejo e emoção a uma das personagens mais interessantes da trama.  Dona de uma voz muito bem projetada e de um belo timbre escuro, Tenstam tirou de letra a interpretação da nobre lésbica apaixonada por Lulu, e foi bastante expressiva nos versos que encerram a ópera.

A excelente soprano Anke Berndt foi o destaque máximo da produção.  Dona de amplos recursos vocais, capaz de atingir os superagudos sem dificuldades, soube valorizar cada nuance da complexa personagem-título.  Lulu pode ser compreendida, dentre outras possibilidades, como um animal indomável, que captura sua presa, tira dela o máximo possível para saciar a sua “fome” e, quando esta presa não lhe tem mais serventia, deixa-a em frangalhos.  A intensa interpretação de Berndt, em que cada gesto e cada olhar não são desprovidos de um significado importante, alcança seu ponto mais alto no final do segundo ato, no belo dueto de amor com Alwa (muito bem acompanhada por Juremir Vieira), e em toda a cena final, na qual a personagem já vive como prostituta até ser assassinada por Jack.  Uma performance marcante.
Por tudo o que foi dito acima, não é difícil concluir que Lulu foi um grande acerto, principalmente quando é fácil perceber que a produção é o fruto de um trabalho árduo e executado por todos com profissionalismo e dedicação.

Pena que o público, pouco acostumado à música do século XX, tenha reagido com frieza aos dois primeiros atos e somente no fim da ópera tenha demonstrado mais entusiasmo ao aplaudir os cantores, menos por verdadeira empolgação que pela praxe do final de uma noite na ópera.  Mas isso é até natural e a única maneira de mudar esse comportamento é sempre oferecer música moderna ao público, como o fez a direção do FAO na edição deste ano.

Para 2013, a notícia que corre é que o Festival pretende apresentar Parsifal, em comemoração aos 200 anos de nascimento de Wagner.  Difícil imaginar outro teatro brasileiro capaz de levar à cena lírica a última ópera do gênio alemão.  A se confirmar a notícia, corramos todos a Manaus.
PS: segundo informações de funcionários do Teatro Amazonas, desde a estréia de Lulu não havia um programa de sala oficial do Festival para ser vendido ao público.  De acordo com os funcionários, o mesmo fora encomendado, mas não chegou a tempo das duas primeiras récitas por atraso da gráfica.  Havia apenas uma espécie de folder com o resumo dos argumentos das óperas do Festival, que sequer citava os nomes dos cantores.  Falha imperdoável.

Leonardo Marques
Formado em Letras com pós-graduação em Língua Italiana. Frequentador assíduo de concertos e óperas. Participou de cursos particulares sobre ópera.

Fonte:  http://www.movimento.com/

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