Crítica da cultura de massa ou da cultura da performance? Artigo de Leonardo T.Oliveira no Blog de Ópera e Ballet.
Neste mês os críticos de música ganharam uma
catártica oportunidade de fazerem justiça com as próprias mãos: o violinista e
maestro pop star André Rieu anunciou uma série de shows no Brasil. E mais: os
três shows inicialmente agendados para o Ginásio do Ibirapuera em São Paulo
aumentaram para dezoito desde a procura massiva por ingressos (que vão
de R$140,00 pra cima). Nesse meio tempo sobrou paulada para exorcizar os
demônios desse fruto espúrio do show biz, que empresta trechos do
repertório clássico em arranjos glamourosos para um espetáculo de gala de grande
produção visual e coreográfica, etc., como muitos conhecem. Leonardo Martinelli para a Revista Concerto, por exemplo,
cura um câncer na comunidade musical ao expor o poder descaracterizador do
abuso de estereótipos musicais e teatrais de André Rieu, a mediocridade de
reduzir músicas clássicas e populares a um mesmo arranjo “paquidérmico” que
esmaga uma riqueza estilística, e a agridoce ilusão de quem justifica abordagens
levianas da música clássica como uma verossímil porta de entrada para um
amadurecimento a longo prazo do ouvinte.
Um passo adiante
Mas terça-feira meu quase xará Leandro Oliveira
deu um surpreendente
passo adiante nesta discussão escrevendo para o blog da
Dicta&Contradicta. Ele identifica muito corretamente uma
oposição que ganha tons salvíficos tanto na crítica do Martinelli como de
outros: a de fazer o claro serviço de separar a grande arte da
cultura de massa. Ou seja, André Rieu é um
entertainer, e o ouvinte – ouvindo-o ou não, gostando dele ou não – que
jamais se deixe confundir entre a derivativa cultura de massa e a verdadeira
grande arte.
Essa distinção da crítica mostra tocar em um
sério nervo ideológico. Pois além de se criticar um entertainer como
André Rieu por seus clichês e apelos baratos, não se costuma eximi-lo de uma
condenação final: André Rieu é uma aviltação ao patrimônio da música dos grandes
compositores – é uma ofensa à grande arte.
E é aqui que o Leandro pergunta: será que essa
separação entre grande arte e cultura de massa é suficiente para essa condenação
do entertainer? O pianista sensacionalista Lang Lang, por exemplo, é
plenamente aceito dentro das próprias cercas da grande arte – com contratos com
grandes gravadoras especializadas, títulos acadêmicos honoris causa,
masterclasses, convites de honra de sociedades culturais, etc. –, mas ele
próprio, segundo o Leandro, também não passa de um entertainer, com as
devidas proporções, como o André Rieu! Ou seja: o critério de separação entre
grande arte e cultura de massa não é capaz de explicar os sucessos vulgares
presentes tanto na grande arte como na cultura de massa, então como
será capaz de condená-los com base apenas nessa separação? Por isso, ao invés
dessa separação, outro critério parece mais óbvio: o da cultura da
performance. Tanto André Rieu como Lang Lang sabem fazer o que o
público quer ver, e contra isso não há refúgio, pois se trata de um processo
aleatório que o próprio meio da grande arte – ainda que se arrogue possuir
defensores com critérios objetivos – não impede.
Essas são questões inquietantes tanto para o
papel da crítica como para a nossa ideia da construção de prestígio de um
artista. Mas eu gostaria de acrescentar algumas ressalvas.
Meus dois centavos
Primeiro é preciso dizer que, se a crítica tem o
papel de ensinar o leitor a aplicar critérios que revelem os sentidos de uma
obra-de-arte, um critério que afira valores de grande arte à parte de suas
falsificações é muito útil. Nesse sentido, é um bem humanitário contar com
textos como o do Martinelli, que ensinam o leitor que há critérios coerentes de
se aferir o que sejam clichês, e que ao ultrapassá-los o leitor ganha uma nova
dimensão de referências no mundo e uma nova capacidade discriminatória da
riqueza de sentidos durante a sua contemplação. Por isso sim, André Rieu, além
de ser um entertainer, age frequentemente como um falsificador da
grande arte e essa é uma lição possível e positiva – independentemente da
decisão do leitor em continuar a ouvi-lo ou a gostar dele (pois há uma liberdade
saudável entre o plano dos critérios e valores e o plano pessoal).
Mas e quanto a julgá-lo uma ofensa à grande arte?
A crítica está autorizada a tomar essas dores em relação ao encruzamento da
cultura de entretenimento na grande arte? Leandro acusa essa intolerância de um
vício academicista, pois o que o próprio exemplo do Lang Lang revela é que a
divisão entre grande arte e cultura de massa não funcionou sequer para defender
a própria grande arte de entertainers. E mais: o exemplo mostra mesmo
que, se entertainers transitam fazendo sucesso entre todos os níveis de
arte manipulando a cultura da performance, então é claro que para muitas pessoas
é interessante que a grande arte não seja uma grande responsabilidade, mas um
entretenimento mesmo. Diante da “hipocrisia” da grande arte de abrigar um Lang
Lang e diante do processo natural do seu cânone alcançar o entretenimento, qual
ainda seria o sentido em se pensar em uma grande arte pura a ser defendida como
uma instituição singular?
André Rieu e Lang Lang
Bom, existe algo que me incomoda muito no
primeiro passo desse argumento: a comparação entre André Rieu e Lang Lang, com a
qual muitos leitores do texto concordaram. É verdade que Lang Lang já apareceu
em concertos a céu aberto em que fez muito barulho em execuções sujas e
insolentes; mas essas atividades filantrópicas de gosto duvidoso foram paralelas
à sua carreira de concertista. Por mais que ele possa ser questionável como
intérprete, não se enganem os desavisados: ele é um músico honesto. Já
o mesmo não se pode dizer com segurança sobre André Rieu, e não falo sobre formatos
tradicionais ou despojados de apresentação musical, falo de música, que é o
que pode nos auxiliar agora.
Mas afinal, como é possível fazer esse importante
julgamento de dizer se um músico é honesto ou não? Para responder esta pergunta
aplicaremos o conceito de proposta musical e sua
realização.
Proposta e realização
Lang Lang senta-se ao piano tendo anunciado um
programa que diz quais peças de quais compositores ele se propõe a interpretar.
Na relação entre a proposta e a realização da sua execução, ele pode ficar
aquém da proposta caso omita a sua realização, ou além caso a
exagere. Mas não há engano algum nisso, porque a sua proposta, anunciada no
programa da sua execução, garante ser clara e acessível desde o início, o que
serve como princípio comum para o trabalho de qualquer crítico.
André Rieu tem a apresentação de um espetáculo
mais abrangente, da qual a música faz apenas parte. Mas a sua proposta musical,
antes mesmo da sua realização, já passa por algumas escolhas singulares. Ao
selecionar trechos de música clássica e popular e anunciá-las como “Beethoven”,
“Michael Jackson”, etc. para a execução nos arranjos da sua orquestra, ele forma
um repertório que, no que diz respeito à música clássica, se projeta a
“modernizar” ou “despojar” o gênero, ao mesmo tempo em que propõe reabilitar o
seu suposto encanto gala-chique original para o público trazendo-o para a
ambiência de gala criada no palco. Como proposta isso já é problemático, pois o
fundamento tanto daquilo que é sacrificado como daquilo que é pretensamente
reabilitado na música clássica é muito duvidoso: será que Beethoven (entre
outros exemplos muito diversos mas de tratamento idêntico) precisa ser picotado
e embalado na orquestra do Ray Conniff pra se tornar moderno e despojado? E o
seu encanto gala-chique será mesmo uma interpretação com fundamento?
Então vem a realização dessa proposta. O
“Strauss” ou o “Ravel” anunciados passam por montagens e seleções que os
descaracterizam e deixam suas obras mais curtas, a instrumentação e os ritmos
são radicalmente mudados para o tom do espetáculo – ou seja, algo
necessariamente mais próximo de estereótipos galantes –, e a interpretação em
si, se alguém se importa em avaliar, é interessadamente afetada.
Desonestidade
Bom, toda essa realização musical poderia ser uma
escolha consciente e por isso coerente, a qual poderíamos criticar mas não
condenar. Mas é aí que entra o dado da proposta: a realização dessa proposta
coloca em prática uma intervenção radical demais sobre o repertório anunciado.
Por que radical DEMAIS? Porque a imagem dada pela proposta de “modernizar” ou
“despojar” a música clássica reabilitando o seu encanto gala-chique passa, na
realização, por uma adulteração do material selecionado, e aí vêm as
consequências: por Deus que o ouvinte exposto à proposta ainda está sujeito a
acreditar estar ouvindo Beethoven e música clássica mesmo (e não é por menos).
Depois a imagem da proposta vai além da apresentação, pois o sucesso sustentado
pela indústria cultural garante a publicidade do artista, e a ópera e a música
de concerto representadas à mão pela realização dessas figuras em evidência
passam a ser difundidas por clichês descaracterizadores, ou seja, por coisas que
elas simplesmente não são (basta ver de longe a presença massiva do artista em
estantes de CD de música clássica em qualquer loja).
“Ilude quem pode e se engana quem quer” não é
algo muito ético, mas então o que fazer, vamos prender o André Rieu por ser
desonesto, por ter uma proposta musical ruim e uma realização enganosa?! Calma,
a questão é: André Rieu e Lang Lang são muito diferentes, porque André Rieu é um
artista com sérios problemas naquilo que representa como proposta e como
realização musical – não à toa é sua desonestidade musical que inspira a
frequente acusação da sua desonestidade comercial –, enquanto o Lang Lang, por
mais criticável, não adultera o paradigma daquilo pelo que ele se passa.
Crítica nele
E é por essa diferença entre os dois que, na
minha opinião, sim: a crítica faz bem em ensinar a separar grande arte de
cultura de massa, com o que o Leandro concorda, mas ela também está autorizada a
revelar e a julgar a desonestidade dessas falsificações musicais, porque a
descaracterização do repertório original por elas emprestado é uma realidade, e
a crítica colabora quando oferece ao leitor ferramentas pra essa aferição.
Então não é que a cultura de entretenimento seja
proibida pela crítica de emprestar suas referências da grande arte – as pessoas
podem “se divertir” com a grande arte o quanto quiserem, o alcance da crítica
ainda se restringe apenas a ensinar critérios a quem se interesse por eles,
independentemente da conduta pessoal dos leitores. O problema para a crítica que
faz uso da separação entre grande arte e cultura de massa está em casos de
desonestidade musical que ela tem em mãos, como o caso do André Rieu, e que ela
sente ser uma demanda por esclarecimento (e por expiação?, claro). Enquanto
isso, propostas mistas ou francamente de entretenimento são plenamente possíveis
de serem feitas de maneira honesta com a grande arte: a incorporação de
coreografia e mesmo de ambientações e acústicas alegóricas no DVD do Yo-Yo Ma das suítes para cello solo de Bach é uma
proposta clara e honesta, o empréstimo
dos Punch Brothers de repertório clássico pra ocasiões e instrumentos
populares também, etc.
Portanto, a crítica acusar e julgar os prejuízos
da desonestidade de uma falsificação da grande arte, usando-se da separação de
grande arte e de cultura de entretenimento, não significa um totalitarismo com a
presença da grande arte em meios de entretenimento nem uma doutrinação, porque a
crítica não funciona assim. Significa apenas a contextualização que agradecemos
ser possível demonstrar.
A entidade da grande arte
Mas já que estamos aqui, teve outra coisa que
também me incomodou. Digamos que Lang Lang fosse mesmo um exclusivo
entertainer da música clássica recebendo diplomas e contratos com
gravadoras sérias: isso significaria que a grande arte ou os críticos que atuam
em defesa de uma aferição madura dos seus valores são ingênuos, hipócritas ou
idealistas? Não! Significaria que o tal entertainer estaria sendo
acolhido por lugares cujos critérios pra essa aferição de valores da grande
arte, a qual eles representassem, estariam mal adequados – daí até mesmo a
necessidade ainda maior do crítico disponibilizar os critérios que ajudem os
interessados em explorar as qualidades da grande arte com maior profundidade.
Até porque esse entertainer jamais deixaria de ser passível de crítica
apenas por ser um pianista clássico e não um André Rieu! Não teria sido a
crítica distraída com André Rieu que teria levado Lang Lang aos espaços
insuspeitos da própria grande arte, e sim apenas a falta da crítica a ele. É por
isso que a ironia não fecha: Lang Lang só seria uma “ameaça” dentro da grande
arte se fosse um mero entertainer desonesto. Não sendo, ele é apenas no
máximo um pianista menos sofisticado, o que não é uma ameaça à grande arte.
Leonardo T. Oliveira
Fonte: http://euterpe.blog.br/
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