Europa renasce no Scala. Artigo de Frederico Toscano no Blog de Ópera e Ballet

O antecessor do atual Teatro alla Scala, uma das mais tradicionais casas de óperas do mundo, foi destruído num incêndio em 1776.

Interior do Regio Ducale Teatro ("Il Teatrino"), em 1747, situado ao lado do Regio Ducale Palazzo, em Milão, na região da Lombardia/Itália

No amanhecer de 25 de fevereiro de 1776, enquanto no Regio Ducale Palazzo se festejava a última noite do carnaval, a atmosfera de diversão foi quebrada por um grito, que soou agudo pelos elegantes salões: “Al fuoco!” – o teatro estava queimando. Conta-se que os brentadori (espécie de bombeiros da época, cujo nome deriva de brenta, que significa “balde”), vindos da Piazza dei Mercanti, nada puderam fazer contra a potência do fogo. Pessoas que estavam na missa do Duomo também correram para ajudar, mas, em poucas horas, nada restou.


Local do antigo Regio Ducale Teatro, na Via Rastrelli, centro de Milão

Até 1776, na Via Rastrelli, no centro de Milão, ao lado do Regio Ducale Palazzo (atual Palazzo Reale), encontrava-se o Regio Ducale Teatro.

Construído em 1717, o Teatrino (como era chamado) surgia sobre as cinzas de um antigo teatro conhecido como Salone Margherita – em homenagem a Margarete von Habsburg (1584-1611), princesa austríaca que ali passou em viagem para se casar com o espanhol Felipe III (1578-1621), em Madri, tornando-se rainha de Espanha, Portugal, Nápoles e Sicília. Este teatro estava situado onde, em 1598, foi edificado o primeiro teatro milanês.


O casal Ferdinand de Áustria e Beatrice d'Este: incêndio passional?

Pouco após o incêndio, circularam boatos de que o arquiduque Ferdinand von Habsburg-Este (1754-1806), então governador austríaco da Lombardia, era o culpado. Suspeitava-se que sua esposa, a princesa Maria Beatrice Ricciarda d’Este (1750-1829), tinha um caso com um jovem nobre milanês. O arquiduque teria, então, interceptado uma carta secreta da esposa para o amante combinando um encontro no palco do teatro, que estava vazio. No horário marcado, Ferdinand teria fechado o teatro e mandado incendiar o prédio. O jovem que morreu no incêndio não era, porém, o alvo desejado, mas um amigo seu que estava escondido no palco para pregar uma peça na princesa.


Os milaneses aclamaram o jovem Mozart: "Viva il maestrino!"

Muitos falaram que esses rumores não tinham fundamento – até porque o arquiduque tinha meios mais seguros e menos cruéis de eliminar tal incômodo… Outros diziam que estavam contentes com a destruição do teatro, porque assim não haveria mais tanto barulho à noite… Foi no Teatrino, aliás, que o jovem Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) estreou três óperas suas: Mitridate, Rè di Ponto; Ascanio in Alba e Lucio Silla.

Naquela época, Milão fazia parte do Império Austríaco e, graças à imperatriz Maria Theresia von Habsburg (1717-1780), a sociedade milanesa, que estava restabelecendo sua dignidade intelectual e política depois da dominação espanhola, decidiu construir um teatro de ópera ainda maior e mais belo.


Maria Theresia, a madrinha do Scala

Noventa membros da nobreza milanesa se organizaram rapidamente como palchettisti (cada proprietário podia arrendar o mesmo palco segundo o seu gosto e ornamentar o parapeito com o brasão da família), cuidando das despesas da construção, que chegaram a cerca de um milhão de libras milanesas.


O inspirado Piermarini

Em 15 de julho de 1776, a imperatriz colocou à disposição a área de uma igreja que estava em ruínas. Dois anos depois do incêndio do Teatrino, o novo (e atual) Scala foi inaugurado. O projeto de Giuseppe Piermarini (1734-1808) lhe proporcionou excelente acústica e os recursos cenográficos mais modernos da época.


Brasão da família Scala

A igreja desconsagrada e demolida se chamava Santa Maria della Scala e tinha sido construída em 1381 por iniciativa de Beatrice Regina della Scala (1331-1384), que era filha da família governante de Verona (também conhecida como de Scalis ou Scaligeri) e se casou com Bernabò Visconti (1323-1385), tornando-se matriarca do poderoso clã milanês. Essa é a origem do atual nome do teatro.


Igreja de Santa Maria della Scala, que estava em ruínas e foi demolida para a construção do novo teatro

Para a inauguração do Scala, uma ópera nova foi encomendada a Christoph Willibald Gluck (1714-1787). Mas, ocupado com a composição de Armide e de Iphigénie en Tauride, o mestre alemão não pôde aceitar. Transferiu o encargo para o seu amigo italiano Antonio Salieri (1750-1825), que tinha 28 anos e consolidara seu prestígio com as óperas La Calamità de’ Cuori, La Finta Scema e Daliso e Delmita.


Salieri substituiu Gluck na inauguração do Scala

A direção do novo teatro não se opôs à idéia de confiar a ópera inaugural ao Kappelmeister da corte vienense – um italiano, ainda por cima. Aliás, esse contrato coincide com a fase em que, descontente com a decisão de Joseph II (1741-1790) de priorizar o singspiel, Salieri se desvinculara do Nationaltheater austríaco – ele considerava a língua alemã totalmente inadequada para a ópera. L’Europa Riconosciuta, com libreto de Mattia Verazi (1730-1794), foi cantada em 3 de agosto de 1778, abrindo oficialmente as portas do Nuovo Regio Ducale Teatro alla Scala, seu nome completo.


Planta original do Scala

Verazi foi um libretista importante da fase de transição entre o período barroco e o clássico. Em Stuttgart, tinha trabalhado com Niccolò Jommelli (1714-1774), representante do chamado nuovo stile napoletano, de características tipicamente pré-clássicas. Discípulo de Ranieri de’ Calzabigi (1714-1795), libretista de Orfeo ed Euridice de Gluck, Verazi estava perfeitamente identificado com os ideais reformistas, que o norteiam na redação do texto de Europa, cheio de oportunidades para o compositor. A bela ária de Asterio no segundo ato, por exemplo, agradou particularmente ao público da estréia.


Anúncio da ópera inaugural

No enredo, Europa, filha de Agenore, rei de Tiro, tinha sido prometida ao príncipe Isseo, mas é seqüestrada por Asterio, rei de Creta, e são inúteis os esforços dos seus irmãos para libertá-la. Sem esperança de recuperá-la, Agenore nomeia a sobrinha Semele sua sucessora, com a condição de que ela só se casará depois de ter vingado o seqüestro da prima, mandando matar o primeiro estrangeiro que passasse pelo reino. Quando Agenore morre, Asterio tenta conquistar Tiro, mas sua frota é destruída por uma tempestade. Ele sobrevive com a mulher e o filho. São aprisionados por Egisto que, com sua morte, espera conseguir a mão de Semele. O senado reconhece Europa, casada com Asterio e mãe de seu filho. Ela abdica do trono em troca da salvação do seu marido. Semele casa-se com Isseo, e esta manda prender e executar o Egisto.


Botta, o temido

O Scala passou por uma grande reforma de 2002 a 2004 – sua terceira inauguração na história (a segunda foi em 1946, logo após a Segunda Guerra). Os preservacionistas temiam que detalhes históricos fossem prejudicados pelo projeto do arquiteto suíço Mario Botta (1943-). No entanto, a companhia de ópera se impressionou com as melhorias na estrutura e na qualidade do som, que foi realçada quando os pesados tapetes vermelhos foram removidos do salão. O palco foi totalmente reconstruído e a coxia, ampliada, passou a permitir maiores produções. Os assentos ganharam monitores para libreto eletrônico, permitindo ao público acompanhar a ópera em inglês e italiano, além do idioma original.


Muti no Scala: defensor do resgate de tesouros adormecidos

O Scala foi reaberto em 7 de dezembro de 2004 com a ressurreição de sua ópera inaugural: L’Europa Riconosciuta, conduzida pelo regente napolitano Riccardo Muti (1941-), 226 anos depois de sua estréia.

Muti afirmou em aula magna para uma platéia de mais de mil estudantes que L’Europa Riconosciuta contém páginas esplêndidas. Explicou que o enredo não é dos mais fascinantes, mas a música é de primeira ordem: há momentos de forte comoção e grande virtuosismo. As árias das duas sopranos (Europa e Semele) chegam a alturas impressionantes (Fá sustenido) – vídeo abaixo; as acrobacias vocais que são impostas aos cantores vão além do limite humano.

L’Europa Riconosciuta: “Quando più irato freme” (Semele, Atto II, Scena XII):



As partes que, na época, eram interpretadas por castrati (hoje soprano e meio-soprano) são, por outro lado, mais lineares, enquanto o tenor tem um papel de vilão. Algumas páginas do coro são dignas, segundo Muti, de Die Zauberflöte, de Mozart. O regente salientou que, na música de Salieri, sente-se o calor italiano; sente-se a influência das escolas bolonhesa e veneziana. “Imaginemos a pintura de Veneza”, comentou Muti, “Tiepolo, Canaletto, Bellotto… Céus claros, figuras iluminadas encontramos no compositor – que tinha gosto pela melodia; habilidade de utilizar a orquestra com leveza; um sentido lúcido para o teatro. A ópera se abre com o clarão de um relâmpago, pois a música simula uma tempestade”.


Winckelmann: semeador do neoclassicismo

O tema se baseia na mitologia, alinhado com o neoclassicismo. Era o momento em que Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) – historiador helenista e primeiro a estabelecer distinções entre arte grega, greco-romana e romana, o que seria decisivo para o surgimento e ascensão do neoclassicismo durante o século XVIII – visitava a Itália (1755) e enaltecia a beleza das formas clássicas.

Salieri se inspirou nos elementos mitológicos para investir em cabaletas e árias (no vídeo abaixo está uma de grande efeito), visando entreter e agradar o público – que era bem diferente… O Scala tinha 3.600 lugares; hoje, com as reformas, são 2.030. Na platéia sem poltronas estavam o povo e os terríveis gozadores, que se divertiam zombando de tudo. Os cavalheiros e damas ficavam nos camarotes: comiam e jogavam os restos para baixo, de onde vinham xingamentos e brigas. Era acima de tudo uma festa, que também incluía música. Sabe-se que a estréia foi um sucesso. O arquiteto Piermarini, no entanto, foi elogiado por uns e criticado por outros.

L’Europa Riconosciuta: “Ah lo sento il suo tormento” (Europa, Atto II, Scena III):




Anúncio para reinauguração

Reabrir o Scala com L’Europa Riconosciuta não foi apenas uma escolha simbólica para Muti. Ele esperava que aquela experiência servisse de caixa de ressonância para que musicistas e musicólogos redescobrissem Salieri, aclamado em vida e arruinado, após sua morte, pela maledicência – alvo da lenda de ter envenenado Mozart. O maestro fez questão de sublinhar que Salieri desempenhou um papel importante na história da música e seria uma falha grave não reconhecê-lo. Quando vivo, teve um sucesso impressionante: de 1784 a 1791, em Viena, houve 163 apresentações de suas óperas – e pouco mais de 60 para Mozart. Gluck comentou que, ao saber que Salieri havia composto a ópera Les Danaïdes, o dramaturgo francês Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799) o tratou como uma divindade. Foi ainda professor de Ludwig van Beethoven (1770-1827), Franz Peter Schubert (1797-1828) e Franz Liszt (1811-1886).


Fachada do Scala, o templo mundial da ópera

O tópico final da aula de Muti não podia deixar de ser outro: Mozart versus Salieri. Afirmou, assim, o maestro que Salieri foi confrontado, em Viena, com um gigante: Mozart, “na presença do qual qualquer figura desaparece”, disse Muti. “Mas o fato de Mozart ser Mozart não significa que Salieri fosse um compositor medíocre” – complementou o regente. Lembrou que Mozart não era nenhum santo e que gostava de debochar de Gluck, Salieri e qualquer um que julgasse inferior. Em Così Fan Tutte, Mozart chamou o tema do final de Europa e o transformou numa marcha militar, o que representou uma rasteira em Salieri, segundo Muti (vídeos abaixo).

L’Europa Riconosciuta: “A regnar su questa fede” (Tutti, Atto II, Scena XIII):



Così Fan Tutte: “Bella vita militar!” (Soldati, Atto I, Scena V):



“Como sempre acontece, porém, em vida o gênio não é compreendido e Mozart [salientou Muti] desmascarou os limites do homem, o que incomodava a aristocracia”. Salieri, ao contrário, dobrava os joelhos para a autoridade constituída, procurando satisfazer sua platéia. Um dos seus limites, segundo o maestro, era a ter “respiração curta” – não sendo capaz de aprofundar suas idéias musicais.


Sophia Loren e Giorgio Armani na reabertura do Scala

Enfim, a reinauguração do Scala foi um sucesso, além de despertar a bela Europa do sono de mais de dois séculos – por iniciativa inspirada e heróica de Muti. A atriz Sophia Loren (1934-), o estilista Giorgio Armani (1934-) e a então prefeita de São Paulo, senadora Marta Suplicy (1945-), entre outras autoridades e celebridades, estiveram presentes na cerimônia. Os ingressos para esse momento ímpar e extremamente concorrido chegaram a ser vendidos por dois mil euros, cada um! No vídeo abaixo está outra passagem de grande beleza na ópera: o quinteto “Del soglio se mira perduta la speme”, no final do primeiro ato.

Frederico Toscano



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