Uma nota sobre a história da música de Carpeaux. Artigo de Fernando Randau no blog de Ópera e Ballet.
É inevitável: quem quiser começar a ler sobre a
história da música, no Brasil, irá encontrar, em algum momento, o livro de Otto
Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música, publicado pela primeira
vez em 1958. Mais recentemente, a obra foi relançada sob o nada modesto título
de O Livro de Ouro da História da Música. De todo modo, o conteúdo é o
mesmo.
Não será possível exagerar a influência desse
livro até hoje na formação de muitos músicos e melômanos do país. Dada a
raridade por muitos anos de outras publicações do gênero entre nós, Carpeaux foi
quem primeiro apresentou um extenso número de informações sobre a história da
música, gêneros e composições – da Idade Média até o momento em que o autor
escrevia. Isso sem falar nas menções à música brasileira, plenamente inserida no
contexto ocidental, que vão do período colonial até Guarnieri. É uma
popularidade que, portanto, não surpreende.
Contudo, é igualmente inevitável perceber que o
livro divide opiniões intensamente. Já tive oportunidade de conhecer tanto
amantes fiéis como detratores ardorosos, esses últimos detendo o mérito das
críticas mais precisas. Para eles, a obra é datada e, sendo atualmente fácil
encontrar títulos equivalentes muito superiores em informação e detalhes,
Uma Nova História da Música pode ir para os sebos e ficar por lá. Se
ganha muito mais com a leitura de Roland de Candé ou Palisca e, sobretudo, não
se é influenciado por opiniões disparatadas que se apresentam como definitivas –
porque se há algo que Carpeaux consegue ter é opinião, por vezes peculiares,
sobre absolutamente toda a música composta. Aos seus admiradores resta resignar
e admitir que o apreciam pelo mesmo motivo que gostam de uma gravação de alguma
obra sem demasiadas considerações – por ter sido a primeira que ouviram.
De fato, as idiossincrasias de Carpeaux são
várias. Desconsidera o valor musical de obras e compositores por motivos
extra-musicais, evidenciando seu amadorismo. E esse é o maior trunfo das
acusações contra o austríaco: ele não é um músico – aliás, é bastante duvidoso
que tenha escutado absolutamente tudo o que cita com propriedade. É, certamente,
um erudito, conseguindo expor o imenso painel da música ocidental com aparente
facilidade; porém, na hora de comentar aspectos individuais de obras específicas
pode incomodar profundamente alguns melômanos mais experientes: Vivaldi é
“limitado” e Mendelssohn é “acadêmico” – no pior sentido do termo –, logo,
superficial. Tchaikovsky também é frívolo, sendo que algumas de suas obras podem
mesmo ser prejudiciais à educação do gosto musical – e dizer que o compositor
era “sexualmente anormal” não ajuda. Mahler é ambíguo, pois por um lado compôs o
ótimo Das Lied von der Erde, mas, por outro, suas sinfonias, “síntese
imperfeita entre tradição e modernidade”, são cheias de recursos exagerados e se
tornaram completamente obsoletas. Shostakovich e Prokofiev, por sua vez, merecem
a crítica de epígonos do romantismo, incapazes de darem um salto maior na
composição, independente da censura soviética. Richard Strauss e Puccini?
Talentosos, mas, infelizmente, oportunistas. Sibelius? Triste que suas sinfonias
dividam os palcos com as de Brahms.
Então, Carpeaux é mesmo ilegível e irrelevante
para conhecer a história da música? Creio que não. Reconheço que sou dos que tem
apreço sentimental ao livro, uma vez que foi uma acessível porta de entrada para
compreender o contexto de tudo aquilo que eu começava a ouvir, espécie de
primeiro amigo num assunto tão absolutamente novo. De fato: não é livro para um
estudo mais acadêmico, para músicos ou musicólogos, pelo motivo mais óbvio:
Uma Nova História da Música não se pretende ir além do ensaio. Aquele
que procure uma obra autenticamente historiográfica sobre a música ocidental
terá mais sucesso na leitura de Charles Rosen ou dos Massin. Quando a obra de
Carpeaux surgiu ela preencheu um vácuo que demorou a receber companhias por
outras obras. Não foi sua intenção ser referência em história da música na
educação musical no país. Se ele se tornou isso, deve-se menos a seus propósitos
pessoais do que às nossas deficiências editoriais. Deficiências essas, aliás,
que persistem até hoje ao não corrigirem erros estranhos de traduções do alemão
para o português – sobre isso, vejam-se alguns títulos das cantatas de Bach
mencionados. Custa-me crer que os erros são autoria de um austríaco que morava
já há vinte anos no Brasil.
Daí que na sua virtude – ser ensaio acessível –
reside também aquilo que faz despertar as maiores críticas. Ora, um ensaio de
Carpeaux pode ser muitas coisas, mas certamente não é imparcial – no melhor
sentido que esse termo possa ter – o bastante ao apresentar sua perspectiva
conforme um manual. Veja-se sua preferência nítida pela música alemã, algo
inescapável para um homem que nasceu na Viena do começo do século tendo
testemunhado a crise que desencadeou nas vanguardas modernas.
Evidentemente, pode-se pensar que ao se conhecer
o tema num ensaio tão parcial (ou errado, se preferir), permeado de
lugares-comuns, não se irá terminar comprometendo esse mesmo conhecimento para
sempre. Aqui, sou otimista o suficiente para crer que isso acontecerá apenas ao
jovem melômano que não seguir em frente – e acaso não siga, Carpeaux não merece
a culpa. Gosto de pensar no caso do oratório Christus am Ölberge, que
para nosso autor era uma das piores partituras de Beethoven o que, porém, não
abalou minha vontade de conhecer a obra, absolutamente (“como será um Beethoven
ruim?”, eu pensava).
É verdade que já podemos contar com outras
publicações mais embasadas, mas a presença de seu livro numa biblioteca não
desmerece a ninguém. De fato, sua admirável síntese não escapa às suas
circunstâncias em diversos momentos, mas, ainda assim ele disserta sobre o
“espírito do tempo” que permeia a história da música como grande conhecedor da
tradição ocidental em suas outras manifestações – filosofia, literatura,
história, etc. Essa abertura de horizontes não é, e nem poderia ser, enganosa.
Fernando Randau
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