RAINHAS DO RING. ARTIGO DE FREDERICO TOSCANO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Como disse Alan Riding no seu guia, a ópera é inseparável do culto às divas. Ao longo dos
séculos, alguns cantores de voz excepcional e temperamento forte passaram a
personificar a paixão e o drama da ópera. Os fãs sempre perceberam isso com
entusiasmo, veneração e, até mesmo, histeria. As grandes estrelas do momento
ganhavam apelidos e era natural haver rivalidade pública entre elas. Talvez a
mais famosa – e mais recente – é a de Maria Callas (1923-1977)
e Renata Tebaldi (1922-2004). Faíscas eram
trocadas frequentemente e estimuladas pelos seus vassalos. Na revista
Time, em 1956, por exemplo, Callas comparou sua voz ao champanhe e a de
Tebaldi à Coca-Cola.
Indo ao início do século XX, encontramos outra
rivalidade em Londres: a soprano australiana Dame Nellie Melba
(1861-1931) batia de frente com a italiana Luisa Tetrazzini
(1871-1941) por coisas como, por exemplo, ela ter sido chamada mais vezes ao
palco da Royal Opera para receber aplausos.
Voltando mais na linha do tempo, temos a Paris da
metade do século XIX como palco de combate entre a mezzo-soprano francesa
Rosine Stoltz (1815-1903), amante do diretor da Opéra,
e a belga Julie Dorus-Gras (1805-1893), banida dos palcos por
influência da inimiga.
Mas é no século XVIII que vamos encontrar uma
eletrizante história, que é o foco deste post. O ring musical mais
famoso do período 1726-28 estava na Londres dominada pela paixão sobre a ópera
italiana e onde Georg Friedrich Händel (1685-1759) se
consolidava, em minha opinião, como o maior compositor de óperas do Barroco.
Com prestígio e talento, Händel conseguiu reunir
no seu palco duas lendas do canto da época: a soprano parmesã Francesca
Cuzzoni (1696-1778) e a mezzo-soprano veneziana Faustina
Bordoni (1697-1781), contratadas pela Royal Academy of Music, que
cinicamente explorava essa rivalidade ao envolver as rivais em papéis que
provocariam conflitos, no palco e fora dele.
Esse clima, mesmo gerando muita dor de cabeça para o
compositor, na tentativa de se dedicar aos dois lados, permitiu a produção de
obras-primas eternas para a história da música. A capacidade extraordinária
dessas intérpretes no domínio de certos recursos vocais foi fundamental para o
compositor liberar sua criatividade e aplicar toda sua carga artística nos
papéis que moldava especialmente para suas divas.
Seria o embate entre Cuzzoni e Bordoni a primeira grande
rivalidade na ópera? Possivelmente. O terreno dessa arena foi semeado durante
outra guerra entre o próprio Händel e seu concorrente direto: o compositor
italiano Giovanni Battista Bononcini (1670-1747), que estava em
conflito com a direção do teatro no qual apresentava suas óperas.
Em meados de 1722, Händel tinha acabado de compor
Ottone, re di Germania, mas tentava atrair uma soprano de renome
internacional para garantir o sucesso retumbante de sua nova ópera. Finalmente,
soube que logo a famosa Francesca Cuzzoni chegaria a Londres. Isso foi
suficiente para ele reescrever parte da obra e dar à grande estrela as melhores
chances de brilhar – o que aconteceu na sua estréia em janeiro de 1723, no
King’s Theater.
Cuzzoni, considerada por vários pesquisadores
como a primeira prima-dona da ópera, era uma “veneziana baixinha e feia como o
diabo” – frisa Lauro Machado Coelho – e de temperamento típico de sua categoria
(vaidosa e arrogante), mas que “tinha um ninho inteiro de rouxinóis dentro da
barriga”, como dizia Händel. Relatos de sua aparência física destacam seus olhos
redondos, seu nariz grande e um gordo pescoço. Rodolfo Celletti, especialista em
Belcanto, destacou “a ressonância, a homogeneidade, o timbre doce e
tocante” da cantora, além do seu belo “fraseado no estilo languido-elegíaco e no
patético” e da “extensão notável”, sendo, segundo ele, “provavelmente, a
primeira cantora italiana com características de soprano agudo”.
Testemunhos de época não faltam. O renomado
flautista e compositor Johann Joachim Quantz (1697-1773)
descreveu seu estilo de cantar como “inocente e tocante, e seus ornamentos
dominavam a alma de cada ouvinte, por sua expressão comovente e suave”. O
castrato Giovanni Battista Mancini (1714-1800) registrou que “seu poder
de conduzir, manter, aumentar e diminuir suas notas a completava em sua
arte”.
A interação de Händel com Cuzzoni não era nada
fácil, por serem ambos geniosos e autoritários. Isso é bem ilustrado no famoso
episódio do ensaio de Ottone em que Francesca recusou-se a cantar a
ária “Falsa immagine” por julgá-la inadequada para a sua voz – alguns dizem que
ela não teria aceitado porque o número já havia sido composto para outra
cantora, que seria Maria Maddalena Salvai (1690-1731), e porque a achou
demasiado simples para seu nível. A questão é que Händel havia gostado
particularmente dessa ária e estava ansioso para constatar seu impacto. Segundo
o primeiro biógrafo do compositor, John Mainwaring (1735–1807), com seu pesado
sotaque germânico o compositor teria advertido em francês:
Oh, madame! Eu sei muito bem que você é uma
verdadeira diaba, mas eu tenho a honra de lhe anunciar que eu sou o próprio
Belzebu, o chefe dos demônios!
Agarrando-a no colo, levou-a até a janela aberta
e ameaçou atirá-la na rua. Diante do risco, Cuzzoni cedeu – e Händel tinha
razão, pois “Falsa imaginne” (magnificamente cantada no clipe
abaixo, embora em produção moderna), com seus ritmos pontuados e seus
recursos que situam a voz no registro agudo, privilegiava o que havia de mais
leve e de mais gracioso no timbre da soprano.
O apogeu da arte de Händel aconteceu em Giulio Cesare
in Egitto. Aqui ele inseriu sua inspiração mais refinada em toda a extensa
partitura. Além do papel-título dedicado ao seu castrato favorito, o também
temperamental Francesco Bernardi (1686-1758), conhecido
como Senesino, Händel lapidou o papel de Cleópatra especialmente para
Cuzzoni. Nessa ópera, os intérpretes tinham o dobro de árias em relação à
anterior, ou seja: tinham duas vezes mais oportunidades de brilhar aos olhos do
público – que não poupou aplausos às gargantas de ouro em sua estréia, em
fevereiro de 1724. Cuzzoni teve uma das melhores chances de expor seu canto
hipnótico em “Piangerò la sorte mia” (vídeo abaixo, com um
registro impecável).
A popularidade de Cuzzoni junto ao público só
aumentava a sua vaidade insolente de ser vista como uma rival insuportável e
indesejável. Mesmo desprovida de qualquer beleza física e tida como teimosa,
ingrata e caprichosa, a parmigiana agia certa de que possuía todos os
requisitos de beleza, arte e genialidade, tendo a fidelidade do público como seu
direito natural.
Londres tinha sua parcela de culpa ao alimentar a
arrogância de Cuzzoni, pois sempre a tratou como celebridade internacional desde
a sua chegada, de modo que as londrinas até adotaram o estilo de seus vestidos e
duelos eram travados pelo direito de acompanhá-la. Sua voz anestesiava as
plateias com árias sublimes, como as de Rodelinda, regina de’
Langobardi (áudio abaixo).
Händel:
Rodelinda, regina de’ Langobardi
Aria
(Rodelinda): “Ombre, piante, urne funeste” [seleção]
Eis que, para complicar a situação, a direção do
teatro trouxe da Itália, com o salário impressionante de 2 mil libras, a
respeitada Faustina Bordoni, chamada de La Nuova Sirena (“A Nova
Sereia”), com quem Cuzzoni (“A Velha Sereia”, para seus rivais) definitivamente
entraria em rota de colisão. O primeiro contato profissional, e pouco amistoso,
de ambas aconteceu na ópera Ariodante de Carlo Francesco Pollarolo
(1653-1723), em 1716, ainda em Veneza.
Em março de 1726, um jornal de Londres já
espetava: “a célebre cantora Faustina está pronta para partir de Veneza e
demolir La Cuzzoni”. De fato, não tardou até que as duas prima-donas se
odiassem. Sobre Bordoni, Quantz comentou que, em sua maturidade, ela estendeu
seus limites vocais para os graves e possuía o que os italianos chamam de “canto
granito” – firme e delineado. Sua execução era articulada e brilhante, com
capacidade de pronunciar as palavras rápida e distintamente. Com sua natureza
pacífica e cordial, Faustina poderia, naturalmente, ter mantido boas relações
com uma eventual concorrente, mas a malícia e a inveja genuínas de Cuzzoni a
faziam ignorar o fato de que suas qualidades poderiam ser exploradas para
complementar o que as diferenciavam entre si.
Lauro M. Coelho ressalta em sua pesquisa que as qualidades de Cuzzoni desenvolveram, na obra
de Händel, um tipo de ária para soprano de fôlego e fantasia muito mais amplos
do que qualquer coisa que, na época, tivesse sido criada por Bononcini ou
Nicola Antonio Porpora (1686-1768), outro compositor rival.
Heroínas como Cleópatra ou Rodelinda não eram apenas perfeitas partituras
musicais, mas, unindo a “volúpia da sedutora à profundidade real do sentimento”,
eram personagens de carne e osso, mulheres “multidimensionais”, como disse o
pesquisador. Contando com outro ídolo dos palcos como Bordoni, as possibilidades
psicológicas se abriram ainda mais para Händel. Celletti, em sua bíblia do Belcanto, informa que Faustina “já tinha,
ao chegar a Londres, dez anos de carreira, durante os quais (…) afirmara-se como
o principal expoente, no campo feminino, do stile brillante”.
Ressaltou, ainda, sua “elegância e extraordinária agilidade”, notabilizando-se
especialmente pela rapidez de execução dos vocalises e trinados.
Com grandes olhos negros, cabelos esplêndidos,
uma doçura fascinante de expressão e de maneiras refinadas, Faustina eclipsava a
rival na aparência, na beleza do corpo e na nobreza de postura. Händel ousava
envolver ambas nas mesmas óperas e, praticamente, contava as notas para evitar
mostrar qualquer preferência por uma das divas.
Händel já tinha começado a musicar seu
Alessandro, quando soube que Bordoni estava para chegar. Com isso,
interrompeu tudo e encomendou uma revisão do libreto. Considerado o melhor
momento da ópera, a cena em que Rossane e Lisaura ouvem Alessandro conversando
com cada uma delas, separadamente, exibe bem a ironia do compositor, pois, logo
em seguida, cada uma surpreende o protagonista citando as melodias que ele
estava cantando para a sua rival. Bordoni estava no seu auge em “Brilla
nell’alma”, que deu liberdade ao seu tom brilhante e ágil (áudio
abaixo).
Händel:
Alessandro
Aria (Rossane):
“Brilla nell’alma un non inteso ancor” [seleção]
Ainda em Alessandro, as duas rivais se
unem, ao menos na ópera, para cantar o dueto “Placa l’alma, quieta il petto”.
Nada de rivalidade aqui. Händel conseguiu uma trégua com árdua
negociação (áudio abaixo).
Händel:
Alessandro
Duetto (Rossane & Lisaura): “Placa
l’alma, quieta il petto”
A necessidade de escrever árias que valorizassem
as vozes das duas cantoras é a melhor qualidade e o maior problema do
Alessandro: por um lado, há páginas de incrível beleza; por outro, a
necessidade de dar a ambas um número igual de oportunidades para cantar faz com
que a ópera se alongue demasiadamente.
O mesmo aconteceu na composição de Admeto, re
di Tessaglia, de 1727. Händel escreveu a música com todo cuidado, pois lhe
interessava ser bem acolhido pelo público. Ele queria se tornar britânico e
aguardava a aprovação de seu pedido de naturalização. Todos vibraram com
Faustina em “Gelosia spietata Aletto” (áudio abaixo). Pouco
depois da estréia, o decreto foi assinado por George I
(1660-1727), transformando George Frideric Handel (sua nova assinatura)
em cidadão inglês.
Händel: Admeto,
re di Tessaglia
Aria (Alceste):
“Gelosia, spietata Aletto” [seleção]
A vida nos bastidores com as estrelas de Händel
nunca foi maçante: era freqüentemente irritante para o compositor. As rivais
italianas andavam irritadíssimas também com as críticas das quais eram alvos por
parte dos jornalistas moralizadores, que viam nelas instrumentos de perversão e
indecência. A tensão foi ao extremo, em abril de 1727, na estréia da ópera
Astianatte do ainda ativo Bononcini com as duas sereias no elenco.
A certa altura da ópera, as rivais partiram para
as vias de fato em pleno palco, diante da Princesa de Gales. A
platéia, turbulenta e agitadora, divertiu-se com o espetáculo circense das
grandes divas trocando insultos em italiano e estraçalhando a peruca uma da
outra, com direito a arranhões, até serem escoltadas para fora. Fãs invadiram o
palco, arremessaram cadeiras e quase colocaram o teatro abaixo. Toda temporada
de ópera foi suspensa devido ao incidente.
Semana depois da frustrada estréia de
Astianatte, Theophilus Cibber (1703-1758) estreava a
peça Contretemps, or The Rival Queens (Contratempo, ou As Rainhas
Rivais), explorando o episódio recente, que se tornara um prato cheio para os
falatórios da cidade: Faustina como Queen of Bologna e Cuzzoni era
a Princess of Modena. Apesar do vexame, talvez convencido de que toda
publicidade é bem-vinda, Händel manteve as duas cantoras na sua companhia, mas
as brigas entre as facções de fanáticos não eram mais tão intensas.
Em 1728, o surgimento da ballad opera na
Inglaterra provocou a derrocada da Royal Academy of Music, na qual Händel havia
ingressado como seu Master of the Orchestra, em 1719 (a atual
instituição de mesmo nome foi fundada em 1822). Com a crise sobre o King’s
Theatre, as duas rivais preferiram voltar para a Itália. Mais tarde, Cuzzoni
perdeu a voz, mas não a extravagância, que acabaria por levá-la a fugir diversas
vezes dos credores e cair por duas ocasiões na prisão. Acabaria na miséria,
fazendo botões para sobreviver. Bordoni, por outro lado, casou-se com o célebre
Johann Adolph Hasse (1699-1783) e atuou até 1751 em diversas
óperas do marido – e muito bem remunerada: ele ganhava 50 ducados por ópera e a
esposa, 3.300 para cantá-la!
Embora o comportamento das divas tenha sido
estressante para Händel, essas mulheres também contribuíram fortemente para o
desenvolvimento do seu estilo musical e o nível de qualidade de suas
obras-primas para o teatro. Relaciono, no espaço para comentários, uma lista
complementar com a participação de Cuzzoni e Bordoni em
óperas de Händel, todas apresentadas no King’s Theatre (Haymarket), em Londres.
Frederico Toscano
Fonte: http://euterpe.blog.br/
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