Madama Butterfly: ficção ou personagem real? Artigo de Henrique Marques Porto no blog de Ópera e Ballet.
Madame Butterfly, a Cio-Cio-San da famosa ópera de Puccini, vem comovendo platéias em todo o mundo desde sua segunda estréia em 1907. A primeira, em 1904, foi um fiasco, como já nos contou o saudoso Oscar Peixoto (Aqui): “O diretor de cena resolveu inovar criando efeitos sonoros especiais para dar mais colorido ao intermezzo do segundo ato. Pretendia que quando os pássaros chilreassem no ambiente japonês do palco, outros respondessem de vários pontos do teatro. Para isso, distribuíra pelas galerias alguns funcionários, munidos de instrumentos que imitavam o pio de passarinhos no momento adequado. Mas o efeito foi bem menos poético do que se esperava. Segundo o depoimento da soprano que fez o papel principal, Rosina Storchio, “graças a uma imprevista colaboração do público, de todos os lados ergueram-se cantos de galos, ladrar de cães, mugidos de vacas e zurros de asnos, como se naquela madrugada estivesse despertando a própria arca de Noé”.
Feitas as revisões -Puccini escreveu
mais quatro versões da ópera depois do fracasso inicial- e tomadas precauções
contra possíveis excessos de “criatividade” dos encenadores, Madame Butterfly transformou-se em um
sucesso absoluto de público e há mais de um século tem presença regular nos
repertórios de todos os teatros de ópera do mundo, marcando recordes de
representação. Definitivamente o drama da jovem gueixa não cansa o
público.
No entanto, há décadas se faz uma
pergunta: Cio-Cio-San é um personagem
de ficção ou teria existido realmente?
Em 12 de março de 1959, a Folha da
Noite (periódico do Grupo Folha) reproduziu pequena matéria publicada pela
revista italiana "Musica
d'Oggi":
“ROMA (FOLHAS) - Em artigo publicado
na revista "Musica d'Oggi", um critico musical japonês, Duiti Miyasawa, oferece
novos elementos sobre a possivel origem da "Madame Butterfly" da ópera de
Puccini. Sobre os "matrimônios temporários" entre gueixas e oficiais de navios
estrangeiros visitantes, que eram tolerados em fins do seculo passado, foram
escritas duas historias que se tornaram famosas: "Madame Chrysantheme", de
Pierre Loti, e "Madame Butterfly", de John Luther Long e David Belasco. Em
entrevista concedida a uma revista japonesa, a irmã de Long, cujo marido era
missionario no Japão, afirmou ter sido ela quem contava a verdadeira historia ao
seu irmão. Este, posteriormente, contara a uma atriz japonesa que a verdadeira
Cio-Cio-san sobrevivera à sua
tentativa de suicídio.
Tomisaburo Kuraba, filho de Glover |
Esses fatos foram confirmados pelo
diretor e secretario do Museu de Nagasaki. Declarou ele que o verdadeiro nome de
"Madame Butterfly" era Tsuru Yamamura. Nascera ela em Osaka, em 1º de
janeiro de 1851, e morrera em Toquio, em 23 de março de 1899. Seu filho, Tom
Glover (ou Tomisaburo Kuraba) foi levado para Nagasaki por seu pai,
um rico comerciante inglês, e tornou-se aluno da irmã de John Luther Long. De
acordo ainda com as afirmações do diretor do Museu de Nagasaki, Tsuru e Glover
viviam naquela cidade, onde ela era sempre vista com um manto no qual havia o
desenho de uma borboleta (butterfly), simbolo de sua familia.
Entretanto, essa versão é contraditada pelo historiador K. Watanabe, de Nagasaki. Afirma ele que o emblema da borboleta era usado por todas as gueixas. Apresenta o historiador outra gueixa, chamada Daté, como a possivel "Madame Butterfly" da vida real.”
Entretanto, essa versão é contraditada pelo historiador K. Watanabe, de Nagasaki. Afirma ele que o emblema da borboleta era usado por todas as gueixas. Apresenta o historiador outra gueixa, chamada Daté, como a possivel "Madame Butterfly" da vida real.”
O maestro Salvatore Ruberti, italiano
naturalizado brasileiro e um nome de grande importância para a história da ópera
no Brasil, apresentou outra versão em artigo publicado em 1950 no “Diário da
Noite”, do Rio de Janeiro.
Thomas Glover e Tsuru Awayiva, que
era chamada "Madame Butterfly" ou
"Cio-Cio-San"
|
“Entre
1860 e 1870, Nagasaki, mais do que outra cidade japonesa, era o paraíso dos
estrangeiros: haviam belas mulheres, vinhos excelentes, festas grandiosas. O
dinheiro corria a rodo, porquanto florescia o tráfico de armas que os europeus
importavam em grande quantidade. Entre os estrangeiros mais ricos havia um
comerciante inglês, Thomas Glover, que levara consigo, de Osaka, uma belíssima
geisha, O-Tsu-ru, filha de um samurai, Jasube Naganishi, de Tokada, o qual
abandonando a espada e os preconceitos fundara a “Away Tea House”, casa que teve
grande fortuna. Glover e O-Tsu-ru, segundo Chimanaqui e outros estudiosos
japoneses, casaram de acordo com o rito religioso local e a cerimônia se passou
como na ópera de Puccini, num pavilhão que dominava a Baía de Nagasaki. Daquela
união nasceu um pequeno e os três se transferiram para um magnífico palacete
onde O-Tsu-ru recebia, com grande luxo, as maiores personalidades japonesas e os
estrangeiros mais influentes de passagem por Nagasaki. Em suma, era um “salão
literário” em que se misturavam duas culturas, a ocidental e a
oriental.
O-Tsu-ru,
que tinha completando o seu nome com o acrescentar-lhe Awayiva, do nome da casa
de chá fundada pelo pai, tornou-se O-Tsu-ru Awayiva e tomou para emblema de sua
casa uma borboleta.
Nas
recepções ela vestia sempre um luxuoso “kimono” com grandes borboletas em
vistosas cores nas mangas. Por isso, os estrangeiros, aos quais era difícil
pronunciar o seu complicado nome preferiam chamá-la “Madame Butterfly”. E também
Madame Butterfly tornou-se para os japoneses: O-cho-san.
No
cimo da colina que tem a seus pés o porto de Nagasaki, depois da morte da
Puccini, foi elevado um monumento para celebrar a dolorosa Madame Butterfly e o
musicista genial.
E
o embaixador do Japão na Itália, no dia em que o corpo de Puccini era trasladado
da clínica de Bruxelas, mandou depositar sobre o esquife uma enorme coroa de
crisântemos, com uma fita em que havia os dizeres: ‘Em memória de Butterfly’. Poesia
da Arte e da Vida!”
Não
terá sido por acaso a homenagem do embaixador japonês. Afinal, personagens de
ficção não mandam flores, ainda que isso seja possível em ópera.
Mas,
na verdade, Thomas Glover não teve apenas um filho –no caso uma única filha com
Tsuru, sua esposa. De um romance com uma desconhecida moça, também japonesa,
Glover teve um filho chamado Tomisaburo Kuraba, cuja paternidade ele assumiu, e
que frequentou sua casa como um membro da família. Sabe-se pouco sobre sua mãe.
Seria esta outra e esquecida jovem a verdadeira “Madame Butterfly”?
Talvez.
Esses
relatos, todos bem documentados, sugerem que as histórias de duas mulheres se
combinaram na criação da Cio-Cio-San,
da ópera de Puccini -a ex-gueixa Tsuru, esposa de Thomas Glover, que viveu
confortavelmente e sem dramas pungentes, e que usava o símbolo da borboleta, e a
misteriosa mãe de seu segundo filho, que pode ser a gueixa Daté mencionada pelo hostoriador
Watanabe, de Nagasaki.
O edifício em estilo oriental da Mansão Glover, com a Baía de Nagasaki ao fundo. |
A
mansão construída por Thomas Glover numa colina diante do porto de Nagasaki é
hoje um museu. É composta por duas construções, uma em estilo ocidental, outra
em estilo oriental. É este cenário real que tem inspirado desde sempre os
diretores nas encenações de Madame
Butterfly. Em seus jardins existem duas estátuas. Uma em homenagem a Giacomo
Puccini, com uma borboleta pousada num ombro. A outra é um monumento à Madame Butterfly, que evoca a soprano
japonesa Tamaki Miura no papel que a tornou famosa.
Verdadeira ou obra de ficção,
Butterfly é um poderoso personagem, único na história da ópera. Se você não for até
ela, ela chegará até você, porque expressa os sentimentos mais simples, aqueles
que afetam de algum modo todas as pessoas. Emociona e vai continuar emocionando
o público por muitos e muitos anos.
Henrique Marques Porto
Comentários
Postar um comentário