"O CREPÚSCULO DOS DEUSES" - BELA MONTAGEM EM SÃO PAULO. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Nova produção do Municipal paulistano dá sequência ao projeto do “Anel brasileiro”
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Der Ring des Nibelungen (O Anel do Nibelungo) é um festival cênico em um prólogo e três jornadas, totalizando então quatro dramas musicais (daí o popular termo Tetralogia), gestado durante 26 anos (1848-1874) pelo compositor alemão Wilhelm Richard Wagner, sobre seu próprio libreto, com base na mitologia nórdica e na Canção dos Nibelungos (Das Nibelungenlied).
Depois de levar à cena, em novembro do ano passado, a primeira jornada do ciclo do Anel, Die Walküre (A Valquíria), o Theatro Municipal de São Paulo monta neste agosto de 2012 (récitas até dia 25) a terceira jornada da Tetralogia, Götterdämmerung (O Crepúsculo dos Deuses), o quarto e derradeiro drama musical da série. Curiosamente, o libreto desta ópera foi o primeiro a ser escrito por Wagner.
No final da terceira ópera do ciclo, Siegfried (ainda não encenada no projeto paulistano), o personagem título desperta Brünnhilde do longo sono imposto por Wotan no último ato de A Valquíria. A trama de O Crepúsculo dos Deuses começa logo após este despertar. Trocando juras de amor, o herói Siegfried despede-se de sua amada em busca de novas aventuras, não sem antes entregar-lhe o anel do nibelungo (cujo poder ambos desconhecem) como símbolo do amor que os une.
O herói chega ao castelo de Gunther, às margens do Reno, onde por intermédio do ardiloso Hagen, meio-irmão de Gunther e filho do nibelungo Alberich, toma uma poção que o faz esquecer Brünnhilde e se apaixonar por Gutrune, irmã de Gunther. Hagen faz crer ter a melhor das intenções, ou seja, conseguir bons consortes para seus irmãos. No entanto, seu principal objetivo é trazer para o castelo o anel forjado por seu pai ainda na primeira ópera do ciclo (O Ouro do Reno). Após selar um pacto de fraternidade com Gunther, e sob o efeito da poção, Siegfried vai buscar Brünnhilde, para que Gunther possa desposá-la.
A valquíria Waltraute visita sua irmã, agora uma mortal, e tenta convencê-la a devolver o anel às ninfas do Reno, mas Brünnhilde nega-se a fazê-lo, pois a joia representa o amor que a une a Siegfried. Esta cena é frequentemente interpretada como a última tentativa de Wotan de interferir no rumo dos acontecimentos. Quando Siegfried regressa à rocha de Brünnhilde, sem se lembrar de sua amada, usa o Tarnhelm (elmo mágico) para ter as formas de Gunther, de forma que a ex-valquíria acredite que foi Gunther quem a resgatou de sua rocha, ganhando assim o direito de desposá-la.
Neste momento, o herói arranca-lhe o anel que lhe dera. Ao chegar ao castelo, e ver Siegfried, agora com sua real aparência, ser anunciado como noivo de Gutrune, Brünnhilde o acusa de traição. Ainda sob o efeito da poção, o neto de Wotan jura desconhecer Brünnhilde e se retira. Hagen não perde tempo e convence Gunther e Brünnhilde a se vingarem de Siegfried.
As ninfas do Reno alertam Siegfried de que a posse do anel o levará à morte e tentam convencê-lo a devolver a joia às águas do Reno, mas sua tentativa não logra êxito. Hagen dá a Siegfried uma poção que cancela o efeito da primeira beberagem. Ele conta suas aventuras para Gunther e seus homens e, agora lembrando-se de sua verdadeira amada, enaltece seu amor por Brünnhilde, agora esposa de Gunther, para o espanto de todos.
Hagen mata Siegfried. O corpo do herói é levado ao castelo, onde Gunther também é morto por Hagen após confrontá-lo. O corpo de Siegfried é queimado, e chegamos à derradeira cena da autoimolação de Brünnhilde, quando ela, depois de pôr o anel em seu dedo, lança-se à fogueira para morrer junto de seu amado. O Reno transborda e o anel finalmente volta para as profundezas do rio, enquanto o Valhalla arde em chamas. A redenção pelo amor marca o fim da era dos deuses e o começo da era dos homens.
Em O Crepúsculo dos Deuses, Wagner recapitula musicalmente toda a saga do Anel. Os incontáveis leitmotive (motivos condutores) distribuídos pelas três primeiras óperas são aqui retomados, juntando-se a novos motivos musicais, numa teia a um só tempo intrincada e precisa, que reveste magistralmente o drama até a cena final. Ao longo do ciclo, o compositor utiliza mais de oitenta motivos condutores.
Seguindo a linha de sua produção de A Valquíria, na busca da criação de um “Anel brasileiro”, segundo suas próprias palavras, o diretor André Heller-Lopes mais uma vez consegue um resultado muito bom, ainda que com ressalvas, como na ópera anterior. Dentre os pontos fortes, destaco o belo efeito causado pelas procissões nordestina e vitoriana; a interessante aparição de Alberich no segundo ato, como se estivesse saindo de um filme; e a cena derradeira, com vários casais, inclusive homossexuais, se beijando. Ao contrário do que muitos temiam, não ficou nada vulgar. Por outro lado, o momento do transbordamento do Reno carece de uma marcação mais precisa, tudo parecendo meio solto; enquanto no segundo ato as marcações estão muito presas. Pequenos deslizes que podem ser repensados e melhor trabalhados até a apresentação do ciclo completo, prevista inicialmente para 2015.
Os cenários de Renato Theobaldo e Roberto Rolnik mantêm o nível da produção anterior, ambientando bem a ação, com destaque especial para a cena das Nornas, que causa um grande impacto visual. Os belos figurinos de Marcelo Marques e a boa luz de Fabio Retti complementam com competência a montagem.
Na récita de estreia, em 12 de agosto, o Coral Lírico, preparado por Mário Zaccaro, esteve bem em suas intervenções. A Orquestra Sinfônica Municipal, apesar de alguns deslizes, em especial um solo desastroso de trompa, esteve quase sempre bem, sob a sempre segura condução de Luiz Fernando Malheiro, nosso grande especialista em Wagner. Como já ocorrera em A Valquíria, orquestra e maestro foram ovacionados pelo público.
Dentre os solistas, não comprometeram como as ninfas do Reno as sopranos Maíra Lautert (Woglinde) e Flavia Fernandes (Wellgunde), bem como a mezzo Laura Aimbiré (Flosshilde). Já dentre as Nornas, o grande destaque foi a mezzo Lídia Schäffer (Primeira Norna), com uma voz bem projetada, de belo timbre e boa técnica. Outra mezzo, Keila de Moraes (Segunda Norna) não comprometeu, enquanto a Terceira Norna da soprano Janete Dornelas foi menos satisfatória.
Nada satisfatória foi a Gutrune da soprano Cláudia Riccitelli, vocalmente abaixo dos demais solistas, com problemas de projeção. Esteve bem o baixo Pepes do Valle como o nibelungo Alberich; e muito bem o barítono Leonardo Neiva como Gunther.
A mezzo Denise de Freitas, uma de nossas artistas mais completas, na sua única participação como a valquíria Waltraute, no final do primeiro ato, demonstrou sua expressividade ímpar e sua voz impecavelmente segura e bem projetada, numa cena marcante. O baixo norte-americano Gregory Reinhart foi um Hagen mesquinho e cruel, o verdadeiro filho do ódio, como convém. Sua voz poderosa, já conhecida desde A Valquíria, quando encarnou Hunding, esteve sempre em patamar elevado, em especial nos graves bastante sonoros.
A soprano Eliane Coelho foi uma Brünnhilde bastante expressiva, especialmente em sua cena derradeira, quando deu uma aula de como dominar um palco. Vocalmente, a solista oscilou, com momentos de melhor rendimento, como na cena com Siegfried ainda no prólogo e na cena final, e outros nem tanto, quando sua voz demonstrou algum cansaço. O tenor britânico John Daszak, que já havia cantado no Rio de Janeiro um memorável War Requiem, de Britten, foi um Siegfried bastante satisfatório, ainda que não perfeito, com voz bem projetada e ótima atuação cênica. Seus melhores momentos foram a cena com Brünnhilde no prólogo e a narrativa de seus atos heróicos no último ato.
Em 2011, quando A Valquíria encerrou sua temporada, o Theatro Municipal de São Paulo ainda não havia confirmado se apostaria ou não no ciclo completo do Anel do Nibelungo. Agora, sabemos que sim. O ciclo completo será apresentado, com previsão de conclusão para 2015. É gratificante acompanhar o crescimento de um teatro de ópera como o Municipal de São Paulo, que apenas pela escolha dos títulos de suas temporadas 2011 e 2012 demonstra ter um interessante e estimulante projeto artístico.
A próxima ópera que subirá ao palco do Municipal de São Paulo será Pelléas et Mélisande, de Debussy, a partir de 15 de setembro.

Leonardo Marques

Fonte: http://www.movimento.com/

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