A GRANDE ARTE DE RENÉE FLEMING ENCANTA O RIO. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Uma das maiores cantoras do planeta, soprano norte-americana conquista o público carioca em recital impecável.
Neste domingo, 4 de novembro, pouco mais de dois mil felizardos tiveram a oportunidade única de ouvir, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, uma das maiores cantoras líricas do mundo, a soprano norte-americana Renée Fleming, que encerrou a temporada 2012 da Série O Globo/Dell’Arte Concertos Internacionais com um recital inesquecível no palco da casa que deveria montar decentemente (mas não monta) óperas com encenação completa para o público carioca.
Falar de Renée Fleming é, ao mesmo tempo, fácil e difícil. Fácil porque todas aquelas qualidades técnicas que, através das gravações, imaginamos que ela possui estão realmente lá, impecáveis, formidáveis, transbordantes; e difícil porque qualquer coisa que se diga sobre uma artista deste calibre, presença constante nos principais palcos do mundo e que agora nos honra com sua presença, nunca será novidade.
La Fleming tem uma voz divina, encantadora e apaixonante, recheada de predicados: um timbre de beleza única, técnica imaculada, projeção invejável em todas as regiões (dos graves sonoros aos agudos retumbantes), riqueza infinita de fraseado, e tudo o mais de positivo que se quiser dizer sobre ela e que lhe permite valorizar cada nota de qualquer peça sobre a qual se debruça. É também importante registrar que, ao contrário de muitas outras divas e divos que só cantaram no Brasil quando já estavam no ocaso vocal, Renée, aos 53 anos, encontra-se no auge de sua capacidade artística, e é uma belíssima mulher, de presença cativante, que domina maravilhosamente a sua arte e a oferece ao público como quem oferece a vida.
Na noite deste domingo, seu recital começou com seis canções, todas lindamente interpretadas: três de Claude Debussy sobre poemas de Paul Verlaine (Green, Il pleure dans mon coeur e Chevaux des bois, que integram as Ariettes Oubliées); e mais três de Joseph Canteloube do ciclo Chants d’Auvergne (Baïlèro, Malurous qu’o uno fenno e La Delaïssado, com textos na língua occitana). Merecem destaque a doçura empregada pela soprano em Baïlèro e o lamento doído de La Delaïssado.
Em seguida, a soprano interpretou duas peças de Erich Wolfgang Korngold. Começou com Frag mich Oft (Pergunto-me frequentemente), da opereta pastiche Walzer aus Wien (Valsas de Viena) – que na verdade é uma obra de Johann Strauss II arranjada por Korngold nos anos 30. Em seguida, ofereceu a célebre Glück, das mir verlieb, popularmente conhecida com a Canção de Marietta, da ópera Die tote Stadt (A Cidade Morta). Ambas foram interpretadas magnificamente pela Fleming, com requintes de expressividade.
Depois do intervalo, o recital, que já estava ótimo, conseguiu ficar ainda mais atraente. A diva norte-americana começou atacando três canções de Richard Strauss: Ständchen (Serenata), Morgen (Amanhã) e Zueignung (Dedicação), todas interpretadas com apuro e elevado senso de estilo. E chegamos então a um dos pontos altos da noite: Renée Fleming incorporou Desdemona e, do Otello, de Giuseppe Verdi, interpretou maravilhosamente a Canção do Salgueiro (que já ouvíramos na versão de Rossini com Joyce DiDonato neste mesmo ano) e a sentida Ave Maria.
Na sequência, diminuindo a tensão dramática, La Fleming ofereceu duas árias da pouco conhecida La Bohème, de Ruggero Leoncavallo, em que Mimì e Musette descrevem, respectivamente, uma à outra: Musette svaria sulla bocca viva e Mimì Pinson, la biondinetta, ambas interpretadas com adequadas leveza e vivacidade.
A diva do Metropolitan encerrou o programa oficial da noite com a bela e conhecida ária Io son l’umile ancella, da ópera Adriana Lecouvreur, de Francesco Cilea. Aqui, a protagonista manifesta a sua condição de serva da arte, ou como ela mesma diz, “do Gênio criador”. E o que é Renée Fleming senão também uma serva da arte abençoada pelo Gênio criador? A interpretação, claro, foi intensa e brilhante.
Ovacionada, La Fleming concedeu quatro números extras. O “bis” começou com uma tocante versão da Canção da Lua (Mĕsíčku na nebi hlubokém), da ópera Rusalka, de Antonín Dvořák; e seguiu com a popular O mio babbino caro, do Gianni Schicchi, de Puccini. Cada vez mais aplaudida, a soprano atacou de Summertime, da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin, que recebeu interpretação memorável, rica em nuances e coloridos (Renée cantou a verdadeira ária da ópera, e não o arranjo sem graça que Jessye Norman cantara há dois anos).
Numa tentativa de aproximação maior com o público, que já estava mais do que cativado, e desculpando-se pela dicção falha em português (apesar de que, como bem observou a compositora Cirlei de Hollanda depois do recital, suas terminações em “ão” soaram bastante satisfatórias, ao contrário de tentativas frustradas de outros artistas estrangeiros quando se metem a cantar na nossa língua), a soprano encerrou definitivamente seu recital entoando a canção Azulão, de Jayme Ovalle sobre letra de Manuel Bandeira.
Foi uma daquelas noites para ficar gravada para sempre na memória, em que a diva norte-americana nos transportou para as alturas da arte de alto nível, sempre muito bem acompanhada pelo piano de Gerald Martin Moore.
Não posso encerrar sem uma constatação negativa, não sobre Renée, claro, que está acima dessas trivialidades de nossa terra, mas observem só: o que têm em comum as óperas das quais Fleming interpretou árias neste recital (Die tote Stadt, Otello, La Bohème de Leoncavallo, Adriana Lecouvreur, Gianni Schicchi do Trittico de Puccini, Rusalka e Porgy and Bess)?
Menção honrosa para quem respondeu: “são obras que sequer são cogitadas para serem levadas completas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro”. Dá vergonha, não dá? Eu teria vergonha se fosse da produção e Renée, ao chegar ao Rio, por acaso perguntasse sobre nossas temporadas de ópera. Não saberia onde enfiar a cara…
Leonardo Marques
Fonte http://www.movimento.com/
Neste domingo, 4 de novembro, pouco mais de dois mil felizardos tiveram a oportunidade única de ouvir, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, uma das maiores cantoras líricas do mundo, a soprano norte-americana Renée Fleming, que encerrou a temporada 2012 da Série O Globo/Dell’Arte Concertos Internacionais com um recital inesquecível no palco da casa que deveria montar decentemente (mas não monta) óperas com encenação completa para o público carioca.
Falar de Renée Fleming é, ao mesmo tempo, fácil e difícil. Fácil porque todas aquelas qualidades técnicas que, através das gravações, imaginamos que ela possui estão realmente lá, impecáveis, formidáveis, transbordantes; e difícil porque qualquer coisa que se diga sobre uma artista deste calibre, presença constante nos principais palcos do mundo e que agora nos honra com sua presença, nunca será novidade.
La Fleming tem uma voz divina, encantadora e apaixonante, recheada de predicados: um timbre de beleza única, técnica imaculada, projeção invejável em todas as regiões (dos graves sonoros aos agudos retumbantes), riqueza infinita de fraseado, e tudo o mais de positivo que se quiser dizer sobre ela e que lhe permite valorizar cada nota de qualquer peça sobre a qual se debruça. É também importante registrar que, ao contrário de muitas outras divas e divos que só cantaram no Brasil quando já estavam no ocaso vocal, Renée, aos 53 anos, encontra-se no auge de sua capacidade artística, e é uma belíssima mulher, de presença cativante, que domina maravilhosamente a sua arte e a oferece ao público como quem oferece a vida.
Na noite deste domingo, seu recital começou com seis canções, todas lindamente interpretadas: três de Claude Debussy sobre poemas de Paul Verlaine (Green, Il pleure dans mon coeur e Chevaux des bois, que integram as Ariettes Oubliées); e mais três de Joseph Canteloube do ciclo Chants d’Auvergne (Baïlèro, Malurous qu’o uno fenno e La Delaïssado, com textos na língua occitana). Merecem destaque a doçura empregada pela soprano em Baïlèro e o lamento doído de La Delaïssado.
Em seguida, a soprano interpretou duas peças de Erich Wolfgang Korngold. Começou com Frag mich Oft (Pergunto-me frequentemente), da opereta pastiche Walzer aus Wien (Valsas de Viena) – que na verdade é uma obra de Johann Strauss II arranjada por Korngold nos anos 30. Em seguida, ofereceu a célebre Glück, das mir verlieb, popularmente conhecida com a Canção de Marietta, da ópera Die tote Stadt (A Cidade Morta). Ambas foram interpretadas magnificamente pela Fleming, com requintes de expressividade.
Depois do intervalo, o recital, que já estava ótimo, conseguiu ficar ainda mais atraente. A diva norte-americana começou atacando três canções de Richard Strauss: Ständchen (Serenata), Morgen (Amanhã) e Zueignung (Dedicação), todas interpretadas com apuro e elevado senso de estilo. E chegamos então a um dos pontos altos da noite: Renée Fleming incorporou Desdemona e, do Otello, de Giuseppe Verdi, interpretou maravilhosamente a Canção do Salgueiro (que já ouvíramos na versão de Rossini com Joyce DiDonato neste mesmo ano) e a sentida Ave Maria.
Na sequência, diminuindo a tensão dramática, La Fleming ofereceu duas árias da pouco conhecida La Bohème, de Ruggero Leoncavallo, em que Mimì e Musette descrevem, respectivamente, uma à outra: Musette svaria sulla bocca viva e Mimì Pinson, la biondinetta, ambas interpretadas com adequadas leveza e vivacidade.
A diva do Metropolitan encerrou o programa oficial da noite com a bela e conhecida ária Io son l’umile ancella, da ópera Adriana Lecouvreur, de Francesco Cilea. Aqui, a protagonista manifesta a sua condição de serva da arte, ou como ela mesma diz, “do Gênio criador”. E o que é Renée Fleming senão também uma serva da arte abençoada pelo Gênio criador? A interpretação, claro, foi intensa e brilhante.
Ovacionada, La Fleming concedeu quatro números extras. O “bis” começou com uma tocante versão da Canção da Lua (Mĕsíčku na nebi hlubokém), da ópera Rusalka, de Antonín Dvořák; e seguiu com a popular O mio babbino caro, do Gianni Schicchi, de Puccini. Cada vez mais aplaudida, a soprano atacou de Summertime, da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin, que recebeu interpretação memorável, rica em nuances e coloridos (Renée cantou a verdadeira ária da ópera, e não o arranjo sem graça que Jessye Norman cantara há dois anos).
Numa tentativa de aproximação maior com o público, que já estava mais do que cativado, e desculpando-se pela dicção falha em português (apesar de que, como bem observou a compositora Cirlei de Hollanda depois do recital, suas terminações em “ão” soaram bastante satisfatórias, ao contrário de tentativas frustradas de outros artistas estrangeiros quando se metem a cantar na nossa língua), a soprano encerrou definitivamente seu recital entoando a canção Azulão, de Jayme Ovalle sobre letra de Manuel Bandeira.
Foi uma daquelas noites para ficar gravada para sempre na memória, em que a diva norte-americana nos transportou para as alturas da arte de alto nível, sempre muito bem acompanhada pelo piano de Gerald Martin Moore.
Não posso encerrar sem uma constatação negativa, não sobre Renée, claro, que está acima dessas trivialidades de nossa terra, mas observem só: o que têm em comum as óperas das quais Fleming interpretou árias neste recital (Die tote Stadt, Otello, La Bohème de Leoncavallo, Adriana Lecouvreur, Gianni Schicchi do Trittico de Puccini, Rusalka e Porgy and Bess)?
Menção honrosa para quem respondeu: “são obras que sequer são cogitadas para serem levadas completas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro”. Dá vergonha, não dá? Eu teria vergonha se fosse da produção e Renée, ao chegar ao Rio, por acaso perguntasse sobre nossas temporadas de ópera. Não saberia onde enfiar a cara…
Leonardo Marques
Fonte http://www.movimento.com/
Comentários
Postar um comentário