O RECITAL DE RENÉE FELMING - IMPRESSÕES. CRÍTICA DE COMBA MARQUES PORTO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Meu
saudoso amigo Aloisio Teixeira diria que a soprano Renée Fleming foi econômica
na escolha das peças de sua apresentação no Rio de Janeiro. Econômica no sentido
de ter deixado de fora peças mais pujantes e, quiçá, mais complexas, notadamente
as do repertório operístico. Conheço um pouco de técnica vocal e de partituras
para soprano e acho que nada é fácil no terreno do canto lírico. Mesmo assim,
sou levada a considerar que tivemos, sim, uma apresentação light e de
certa forma até bem contida, se consideradas as obras de maior exigência
para o registro de soprano lírico que fazem parte do repertório da cantora.
Fleming privilegiou canções, aliás, de muito bom gosto, com as quais exibiu o
feitiço de seu belo timbre e a segurança de sua exímia técnica. O pouco de ópera
ficou para o fim e para o bis.
Renée Fleming Foto Internet
Da
plateia, um admirador gritou: - “sublime!” - ao fim da execução das peças do
americano Erich Korngold (1897-1957). Sim, sublime. E o mesmo eu diria quanto às
canções de Claude Debussy que abriram o programa, com destaque para o piano de
Gerald Martin Moore, por sinal, brilhante em todo o recital. Registre-se a
graciosa interpretação das canções do francês Joseph Canteloube (1879-1957).
Com
as três canções de Richard Strauss, Renée nos ofereceu o que é a sua
praia, no dizer dos cariocas. Se Strauss, o Richard, não fosse incluído no
programa, teríamos deixado de apreciar um dos pontos altos do seu repertório.
Invoque-se a Marechala, do Cavaleiro da Rosa, uma de suas mais significativas
interpretações. Pena
ela não ter cantado Mozart.
Renée Fleming Foto Internet
De
Verdi, ela nos brindou com Otello - a canção do Salgueiro seguida da Ave Maria.
Como na recente apresentação no MET, ela esteve esplêndida. Entretanto, não acho
que este trecho do 4º ato do Otello seja a melhor escolha para uma apresentação
isolada do contexto da ópera. Desdêmona conta a história de uma mulher que se
chamava Bárbara e amava um homem que a abandonou... O tom lamentoso do
andante marcado por Verdi para a canzone del Salce (partitura de
Otello, ed. G. Ricordi, 1944, Milão) é subitamente cortado quando Desdêmona,
apavorada, pressentindo a chegada de Otello, ouve um ruído. Emilia, sua
acompanhante, a tranquiliza: “é o vento...”. Desdêmona conclui a narrativa e
então ocorre o segundo e expressivo momento de tensão da cena: ela corre em
direção a Emilia e dela se despede num abraço sentido de quem antevê o próprio
fim. Este clima do desfecho da tragédia, tal como se anuncia na cena da
canzone del salce só será percebido num recital por quem bem conhece o
libreto.
Do
programa não constou Puccini, mas teve La Bohème de Leoncavallo (estreia
em 06 de maio de 1897, em Veneza) – uma ópera que quase ninguém conhece, ao
contrário de l Pagliacci, perene sucesso do compositor. As duas árias
levinhas apresentadas bem permitem entender porque La Bohème de Puccini
entrou para a galeria dos melodramas mais queridos do público, ópera das mais
encenadas em todo o mundo, desde sua estreia no Teatro Regio, em fevereiro de
1896, enquanto a obra de Leoncavallo, inspirada na mesma novela de Henri Murger
sobre a vida de jovens boêmios da Paris da primeira metade do século 19, caiu no
esquecimento.
Renée Fleming Foto Internet
No
concerto de Fleming, Puccini só apareceu no bis, com a previsível ária “Oh,
mio babbino caro”. Aos primeiros acordes do piano, veio da plateia um ohhh!
Eis uma peça do agrado unânime do público, das divas em seus recitais e das
principiantes em concursos de canto. O maestro Santiago Guerra, um dia, me
disse: “querida, oh mio babbino caro... essa ária curtinha... as
cantoras pensam que é fácil... Mas não é. Só devia ser incluída em recital para
ser muitíssimo bem cantada, para que Puccini, poverino, de onde esteja, não
fique zangado.” E a Fleming, como era de se esperar, cantou-a lindamente,
fazendo jus à escrita sublime do compositor.
O
Theatro Municipal não estava repleto, mas o público compenetrado recebeu a diva
com raro e respeitoso silêncio somente rompido com aplausos ao fim de cada
conjunto de árias ou canções de um mesmo compositor. Por sorte, pouca gente
gripada, quer dizer, poucas tosses. No mais, um ou outro toque assassino de
celular que, entretanto, não chegou a atingir os momentos de emissão cristalina
dos belos pianíssimos da Fleming. A propósito, seja dito, em alguns momentos a
audição das sutilezas sonoras das peças escolhidas restou prejudicada. Quem
sabe, a acústica do TM não seja mais a mesma depois da reforma? Há que se
investigar.
Quando
se vai ao teatro para assistir a um soprano do top da Fleming, já se
chega pensando no bis. Momento de relaxamento do artista e do público, o bis
pode ser o ponto alto do concerto. O bis da Fleming foi, em verdade, um
necessário complemento ao programa. Das quatro peças apresentadas, três eram
árias de óperas: a ária da Rusalka de Antonín Dvorák; a ária de Gianni Schicchi
de Puccini; “Summertime”, da ópera Porgy and Bess de George Gershwin, e a
pequena “Azulão” de Jayme Ovalle, letra de Manuel Bandeira – linda canção
brasileira que, como se fosse a única, virou clichê de bis das cantoras
estrangeiras que vêm parar em nossos costados.
O
bom foi que das quatro peças ofertadas por Renée no bis, eu acertei três, sendo
que “Summertime” foi mais um pedido telepaticamente atendido do que uma
previsão. As outras eram barbadas. Só perdi para a ária de Rusalka. Bobeei, pois
sabia que esta peça mora no coração da cantora, como ela explicou. Como tudo o
que Renée Fleming cantou, a ária de Rusalka soou linda e inesquecível.
Comba Marques Porto
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