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"VILLA-LOBOS - VOZES DO BRASIL" CD CALÍOPE. ARTIGO DE ÉRICO DE ALMEIDA MANGARAVITE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Gravação do conjunto Calíope
chega ao mercado, trazendo arranjos de temas folclóricos e peças originais do
compositor Heitor Villa-Lobos.
Villa-Lobos era muito mentiroso. Os leitores
podem pensar que o crítico perdeu o juízo; afinal, que negócio é esse? Falar mal
de nosso maior compositor! Na realidade, foi a pesquisadora Flávia Camargo Toni
que assim se referiu ao Villa, ao proferir uma conferência em 1987. O motivo
desta polêmica citação no presente artigo será explicado mais
adiante.
Importa-nos agora que o conjunto vocal Calíope, formado por cerca de
30 cantores profissionais, lançou o CD Villa-Lobos – Vozes do Brasil –
obra coral profana. São 17 faixas com composições para vozes
desacompanhadas, em diversas formações. Há obras destinadas ao Orfeão dos
Professores, coro criado na década de 1930 por Villa-Lobos e formado por cerca
de 250 professores da então capital federal, o Rio de Janeiro, e também
composições originais, com destinatários diversos.
Ao contrário do que se
imagina, Villa-Lobos não era um ardoroso defensor da música popular. Muito pelo
contrário: um de seus objetivos era, justamente, combater a mediocridade de
certos gêneros musicais apreciados pela população, por meio da divulgação e do
ensino do canto coral, implantado nas escolas com a chancela do governo.
Palavras do compositor: “sei bem que o gosto e a opinião pública não se
impõem, mas educam-se.”
.
Nesse sentido, diversas faixas do disco
têm clara inspiração popular, mas distanciam-se da simplicidade por intermédio
da sofisticação dos arranjos. E aqui, fica claro o motivo de citarmos a polêmica
frase da pesquisadora: Villa-Lobos menciona nas partituras algumas fontes que
são, no mínimo, suspeitas. A divertida Jaquibau seria baseada
em um certo “tema dos negros Mina, à época da escravidão no Estado de
Minas”. Outra obra, Xangô, é descrita como “gênero de
macumba de época passada, recolhido no Rio de Janeiro e ambientado por Heitor
Villa-Lobos”. Além de Xangô, há outras três composições de caráter
semelhante: Estrela é Lua Nova, Bazzum e
Na Bahia Tem. Em que pesem as dúvidas acerca da veracidade das
fontes informadas pelo compositor, são obras de clara inspiração na música
afro-brasileira.
O Calíope interpreta com louvável competência tais
obras, que possuem diversas onomatopeias e variações rítmicas que poderiam
complicar a vida de um coro menos preparado. Outras faixas têm origens
distintas: Remeiro de São Francisco seria derivada de um
“canto dos mestiços do Rio São Francisco” e conta com um belíssimo solo
para soprano, interpretado por Lina Mendes, que já ostenta em seu currículo
algumas grandes atuações (como o papel de Gilda, no Rigoletto do Municipal de
São Paulo em 2011). Vira é baseada em um tema popular português
(ainda que Villa se afaste consideravelmente da melodia original). As
Costureiras é definida como uma “embolada”, tema de inspiração
nordestina, que em nada se assemelha com a embolada moderna, caracterizada pelo
improviso dos cantadores, acompanhados por instrumentos de percussão.
Papai Curumiassu inspira-se em uma “canção de rede dos caboclos
do Pará” e traz um pungente solo para barítono. Canide
Ioune-Sabath baseia-se em um tema indígena colhido no longínquo século
XVI. O Calíope dá conta do recado, abordando com leveza as obras, não as fazendo
soar acadêmicas demais.
Todas as composições mencionadas são das décadas de
1920 e 1930. Agradáveis de se ouvir e bem interpretadas, constituem um programa
interessante para coro. Contudo, o melhor do disco está nas obras compostas nas
décadas seguintes. A célebre Invocação em Defesa da Pátria, com
texto de Manuel Bandeira, estreou em 1943, em meio à comoção popular causada
pelo embarque dos pracinhas da FEB rumo aos campos de batalha europeus. O
arranjo puramente vocal escolhido é muitíssimo bem interpretado pelo Calíope, e
valoriza sobremaneira a composição, uma vez que o arranjo com orquestra (gravado
pelo próprio Villa-Lobos) soa pesado demais.
Com texto de outro grande poeta,
José (1944), para coro masculino a 4 vozes, é baseada no poema
“E agora José ?” de Carlos Drummond de Andrade. Uma das faixas mais atraentes do
disco, nota-se na gravação a homogeneidade dos timbres dos coristas, bem como a
atenção constante à afinação. As Duas Lendas Ameríndias em
Nheegatu, cantadas em uma língua franca criada pelos jesuítas a partir
do vocabulário tupinambá, são obras da década de 1950, que revelam o compositor
em sua fase mais madura.
Por fim, duas obras-primas: o arranjo vocal para a
Fuga da Bachianas Brasileiras nº 8 traz as mais belas melodias
do disco. Segundo Carlos Paula Barros, é seu caráter “acentuadamente
nacional que traduz a modinha brasileira, apaixonada e sentimental”
que torna a composição tão bela. A seguir, a Bachianas Brasileiras
nº 9, composição rica no uso de técnicas contrapontísticas, em que a
inspiração nas obras de Bach e o uso de temas brasileiros se confundem.
O
grupo Calíope comprova que possui mestria mais que suficiente para encarar obras
desafiadoras sem vacilar. São registros de grande valor, visto que são raras as
gravações deste repertório. Um lançamento mais que recomendável: indispensável
para os admiradores de Heitor Villa-Lobos.
Érico de Almeida
Mangaravite
FICHA TÉCNICA:
Villa-Lobos
– Vozes do Brasil – Obra Coral
Profana
Calíope
Regência: Julio
Moretzsohn
Selo: A Casa
Discos
Crítica publicada no Caderno
Pensar, do jornal A Gazeta (ES), em 03.11.2012, com adaptações.
Fonte: http://www.movimento.com/
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