Verdi, leitor de Shakespeare: I. Macbeth . Artigo de Fernando Randau no blog de Ópera e Ballet.
Quem tiver a curiosidade de conhecer óperas baseadas nos
trabalhos de William Shakespeare deve lidar com o fato de que nada menos do que
vinte e três de seus trabalhos já foram musicados – e não ficarei surpreso se
essa conta estiver defasada. Compositores dos mais românticos, sobretudo,
idolatravam o inglês, e talvez uma obra tão interessante dessa época como o
Roméo et Julliete (1839) de Berlioz, com sua forma peculiar – uma
sinfonia dramática? Uma suíte coral? Uma cantata? –, seja significativa de como
era um desafio converter obras de teatro excepcionais em música. Por que, então,
a insistência em compor para peças tão complexas se é sabido de antemão que “não
vai ficar a mesma coisa”? Creio que o mesmo Berlioz, que como já vimos aqui teve
uma relação intensa com a obra do poeta inglês, responde em suas memórias:
Ao cair de improviso sobre mim, Shakespeare me fulminou; ao abrir-me o céu
da arte com um fragor sublime, seu relâmpago iluminou para suas profundezas
remotas. Reconheci a verdadeira grandeza, a verdadeira beleza, a verdadeira
verdade dramática. Uau.
Desse modo, o século XIX foi instado a recuperar Shakespeare,
ainda que fosse dentro de sua visão peculiarmente ególatra e melodramática. No
que se segue, quero chamar atenção para outro compositor que tinha o mesmo
entusiasmo por Shakespeare, ainda que com certeza de modo mais sereno, e, por
que não dizer, calculista: Giuseppe Verdi. Tendo escrito três óperas a partir de
seu ídolo – Macbeth, Otello e Falstaff –, todas
extraordinárias, Verdi fez bem mais do que se aproveitar de grandes histórias.
Em verdade, podemos dizer que o italiano encontrou em Shakespeare um impulso
estético decisivo para sua carreira.
O Projeto Macbeth
Quando Verdi se viu acusado de não conhecer Shakespeare por um
crítico de Macbeth, respondeu que sua ópera podia não ter sido bem
sucedida na adaptação, era verdade, mas não admitia ouvir que não conhecia o
autor, uma vez que desde a mais tenra juventude lia e relia as peças dele com
muito entusiasmo. De fato, o italiano tinha em sua biblioteca duas traduções
diferentes das obras completas de Shakespeare para o italiano – com seu fraco
inglês, ele era incapaz de ler no original. Como veremos, certamente isso o
influenciou, uma vez que seu interesse era sobretudo na dramaturgia, e não na
poesia. Numa carta para seu editor, Ricordi, dirá ainda que considerava o Bardo
um realista assim como ele mesmo – realismo por inspiração, em sua expressão,
enquanto que Verdi se via como um realista por “planejamento”.
E por que Macbeth, cujo enredo não é lá dos mais
simples? De todas as peças de Shakespeare que Verdi adorava, Macbeth e
Rei Lear eram suas preferidas, e foram as primeiras que ele cogitou para
se tornarem óperas. Já devidamente célebre na Itália da década de 1840, Verdi já
havia recebido propostas para compor em cima de um libreto de Amleto
(sic) e A Tempestade, mas delicadamente recusou. Devido ao ritmo de
trabalho intenso, em que praticamente compunha uma ópera por ano, sem contar os
ensaios e as alterações para distintos públicos que tinha de fazer, o compositor
italiano terminou seriamente doente e teve que parar – “febre gástrica”, segundo
o médico. É nesse momento de pausa que Verdi pôde pensar nos rumos que queria
para sua carreira, que até então se destacava como legítimo representante dos
ideais do Risorgimento, com obras que destacavam, não necessariamente de modo
sutil, o desejo italiano de liberdade e unidade – Nabucco (1842), I
Lombardi (1843), etc.
Mas não dava para ficar nisso para sempre. Verdi era
inteligente demais para saber que não podia assentar sua vida em ser porta voz
de um ideal – uma glória, sem dúvida, contudo provisória, que já havia
sacrificado muitos talentos. Ciente de que seu sucesso estava muito no fato de
que encarnava uma ambição local, mirou seus esforços em ir além, criar uma obra
de alcance universal. E Shakespeare lhe pareceu ser perfeito para tanto. Então a
oportunidade encontrou a vontade e em carta para Lanari, seu empresário, o
compositor avisa que tem uma nova ideia para ópera, cujo argumento não será “nem
político, nem religioso: é fantástico”. Era a vez de Macbeth.
Nunca antes Verdi foi tão detalhista na preparação de uma ópera, tendo cuidado até com os elementos da encenação, já que fazia muita questão de uma reprodução convincente do século XI escocês. Chegou mesmo a fazer a exigência de que os cantores fossem bons atores – e isso no ottocento era uma grande exigência –, sugerindo igualmente que Lady Macbeth fosse feia (!), já que a soprano cogitada, Eugenia Tadolini, apesar de ótima cantora, era demasiado bonita e a Lady deveria ser pérfida em toda a expressão. Destaque ainda para os conselhos aos cantores, como o de que nas cenas principais (dueto entre Macbeth e esposa e a cena do sonambulismo) não deveriam ser cantadas, mas sim “atuadas e declamadas com uma voz muito sombria e velada”. Quase um ensaio para a Gesamtkunstwerk, não fosse o fato de que Verdi era completamente inábil com as palavras. Então o libreto ficou a cargo de Piave, a quem começou pedindo “versos fortes e concisos”. Nosso compositor terminou sendo tão duro em seu perfeccionismo que chegou ao cúmulo de preterir alguns trechos de Piave, sem consultá-lo, pela reescritura de Andrea Maffei, como na cena do sonambulismo de Lady Macbeth.
Bem, de fato o trabalho de Piave não é lá grande coisa, não se
comparado ao de Boito muitos anos depois, que incorporou muito bem a poesia de
Shakespeare. Quem gosta da peça e não está imerso no mundo operístico, sobretudo
da tradição italiana, tem tudo para detestar o resultado. Os cortes são
relevantes, com Duncan e Fleance mudos e personagens como Ross, Lennoz, Porter e
Donalbain sumariamente cortados, além da considerável irrelevância de MacDuff.
Contudo, não creio que o inverso disso seja verdadeiro – um amante de ópera tem
tudo para apreciá-la, basta que ele não vá esperando árias românticas. Sem
sofridos desencontros amorosos e sem papel relevante para tenor, Verdi se
concentra na relação entre Macbeth e sua esposa e dele com as bruxas, que de
três se tornam um coro feminino significativo. Mas a maior diferença que um fã
da peça notaria é que Macbeth não é tão hesitante e a profecia é o suficiente
para ele se tornar um assassino. Sua parceira de crime ainda dá o seu empurrão,
mas a clássica frase clichê é inevitável: nada que se compare ao original.
Macbeth estreou em 14 de março de 1847. Teve algum
sucesso, mas é certo que não suscitou a comoção que outras óperas de Verdi
haviam causado: não havia nenhum pathos nacionalista ali. Insatisfeito,
o compositor perfeccionista passará anos com o desejo de revisar a obra, que
considera, segundo a dedicatória de uma cópia da partitura para o sogro e
patrono Antonio Barezzi, “a mais relevante de suas óperas”. Quase vinte anos
depois, em 1865, quando já era outro, Verdi vê a possibilidade de re-estrear em
Paris por insistência de seu editor nessa cidade, Escudier. Nessa ocasião,
admite o imprescindível ballet que o público francês sempre queria, entre
diversas alterações, e cogita mesmo incluir Hécate, a deusa das trevas.
Por outro lado, Escudier projeta um papel mais relevante para
tenor na ópera e pede para Verdi colocar mais presença de MacDuff, cogitando
mesmo que este cante um trechinho em “Il brindisi” para brindar a rainha – o que
é bem inadequado e o compositor conseguiu driblar. Traços marcantes de seu
estilo de anos anteriores, como as cabalettas, são cortados e dão lugar a um
material visivelmente mais substancioso. Primeiro, “Trionfai!” dá lugar ao
monólogo “La luce langue”. Eis a cabaletta de 1847:
É, não é o tipo de música que se espera ouvir numa das mais
sombrias tragédias de Shakespeare. E aqui, sua substituta:
Notte desiata provvida veliNoite desejada, vela
providencialmente
La man colpevole che feriráSobre a mão culpada que
ferirá
Nuovo delitto!…È necessario!Um novo crime! … É
necessário!
O mesmo se dá com a cabaletta de Macbeth, “Vada in fiamme”, que
é substituída pelo dueto “Ora di morte” no fim do terceiro ato:
Ora di morte, ormai t’affretta!Hora de morte,
apressa-te!
Incancellabile il fato ha scritto:Indelevelmente o
escreveu o destino
L’impresa compiere deve il delittoa empresa deve
completar o delito
poichè col sangue si inaugurò. Vendetta!posto que
com sangue se iniciou. Vingança!
Horror. Macbeth e sua esposa deixam para trás amostrações de
dotes vocais e assumem um espírito muito mais próximo ao da peça: crimes e mais
crimes, assassinatos em sequência, um círculo vicioso de sangue derramado para
garantir o anterior e que consequentemente leva a outro até a liquidação de
ambos. Se no original vemos o declínio dos dois pela ambição, na ópera
acompanhamos um casal atroz desde o começo, mas igualmente ambicioso o
suficiente para dar prosseguimento aos assassinatos.
Ambas substituições não são somente mais interessantes como
música, mas também são dramaticamente mais consistentes. E o texto que vemos
aqui, devidamente aprovado por Verdi, é novamente de Piave, esse homem sem
rancores, que também melhorou visivelmente com o passar dos anos.
E a recepção pelo público dessa vez foi… um fiasco. Depois da
décima quinta apresentação saiu de cartaz. Não será a primeira vez que uma obra
de arte melhora na qualidade e perde popularidade, mas nesse caso o próprio
Verdi dirá que achou que tinha acertado, e que, aparentemente, não foi o caso.
Depois de 1874, Macbeth praticamente não subiu mais aos palcos, sendo
recuperada somente no século XX.
Stefano Russomano, musicólogo italiano, sugere que o
Macbeth foi um catalisador para o talento de Verdi da mesma maneira que
Idomeneo foi para Mozart, uma espécie de tomada de consciência das
potencialidades que até então apareciam latentes e que agora serão presentes em
toda a obra posterior; nesse caso, o controle total de Verdi sobre suas óperas –
e não fosse o fato de que ele não escrevia nada, seria possível dizer que o
italiano tinha um controle pleno de tudo. Mais ainda: com Macbeth, pela
primeira vez Verdi se deu conta de que escrever uma ópera era mais do que dar
música à estória no palco. Nas palavras acertadas do crítico Massimo Mila, a
ópera passou de um espetáculo comovedor para um “estudo da alma”. No próximo
post tratarei de dois consideráveis estudos desse
tipo: Othello e Falstaff.
Verdi chegou ainda a planejar com Salvatore Cammarano – autor do libreto de
Il Trovatore – uma ópera baseada em Rei Lear em 1850. Com o
mesmo perfeccionismo de Macbeth, a correspondência entre compositor e
libretista avança, alternando esperança e pessimismo. “Così intricciato”, dirá
Verdi, acertadamente, sobre a peça. Mas é sintomático que a vontade de Verdi em
fazer outra ópera a partir de Shakespeare tenha se fortalecido depois do sucesso
de Rigoletto (1851), a partir de uma peça de Victor Hugo, provavelmente
imaginando que estava pronto para o desafio como não estivera antes. Contudo,
Cammarano falece sem ter feito muita coisa, e seu substituto, Antonio Somma,
trabalha alguns anos para tão logo entregar a versão final e Verdi querer
discutir outro projeto, o que viria a se tornar Un ballo in maschera. Não
há muitos elementos para saber por que ele desistiu depois de tantos anos de
dedicação, exceto que não lhe parecia ser o momento para compor Rei Lear. Em
1865, ano em que Somma morre, Verdi garante em carta para a Condessa Maffei que,
cedo ou tarde, irá musicar a peça de Shakespeare. Estamos esperando até hoje.
Fernando Randau
Fonte:http://euterpe.blog.br/
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