70 ANOS DE MARTHA ARGERICH. ARTIGO DE LEONARDO T. OLIVEIRA NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Martha Argerich nos anos 70
A pianista argentina Martha
Argerich (1941-) completa hoje, 5 de junho de 2011, 70 anos. Quem
diria… Se existissem vereditos no assunto, ninguém teria medo de reconhecê-la
como a mais forte candidata à maior pianista da atualidade, e isso merece que
falemos ao menos rapidamente do seu estilo e de algumas de suas melhores
gravações.
Êxitos e influências
Seus maiores êxitos foram conquistados ainda
jovem: em 1957, com 16 anos, ela venceu dois dos concursos de piano mais
tradicionais da Europa, o Concurso Internacional de Música de Genebra e o Concurso Internacional
Ferruccio Busoni, em um intervalo de apenas três semanas. Em 1965, aos 24,
venceu o Concurso Internacional Frederic Chopin em Varsóvia (deixando
nosso Arthur Moreira Lima em segundo lugar naquele ano), talvez o grande marco
da sua proeminência internacional. Desde então, se estabeleceu como a artista de
renome que conhecemos hoje.
Entre os pianistas de sua geração – como Alfred
Brendel, Maurizio Pollini, Vladimir Ashkenazy, Daniel Barenboim e mesmo nosso
Nelson Freire -, ela parece aquela que melhor representa algumas das qualidades
que as gerações atuais de pianistas virtuoses procuram desenvolver: um toque
ágil e claro, cuja expressividade muitas vezes se dá antes pela procura por
diversidade de timbres do que propriamente pelo volume, e contrastes – esses sim
– incisivos, um spin arrebatador e andamentos extremos. Acredito que
essa atualidade de sua personalidade, além de ser fruto de uma feliz adequação à
linguagem e às expectativas do nosso tempo, é também uma influência que ela
própria passou a representar com o decorrer dos anos. Não por acaso, com
características tão modernas que facilmente tornam outros pianistas
ultrapassados e chatos, ela é a paixão platônica de muitos diletantes
imberbes.
Sua maior influência é certamente o pianista
austríaco Friedrich Gulda, seu professor por mais de um ano ainda nos anos 50, e
o italiano Arturo Benedetti Michelangeli, a quem procurou nos anos 60 para
algumas aulas em um momento de crise artística pessoal. Nos anos 80, reconheceu
que se sentia muito sozinha no palco e desde então praticamente deixou de se
apresentar em público como pianista solo, passando a ser acompanhada por outros
solistas em música de câmara ou orquestras em concertos.
E pra valer a conversa, cinco gravações
recomendadas:
1. Liszt: Sonata para Piano em Si menor & Rapsódia Húngara No. 6 em Ré bemol maior
Schumann: Sonata para Piano No. 2 em Sol menor Op. 22
Brahms: 2 Rapsódias Op. 79
1971 (Deutsche Grammophon)
A grande Sonata
em Si menor de Liszt parece ter sido escrita pra Martha: com a
liberdade de um domínio técnico absoluto, ela uniu os arcos dessa obra
monumental em uma interpretação sólida, redonda, eloquente. Não falta ritmo na
primeira exposição sincopada do tema que domina toda a obra, não falta
intimidade na seção correspondente ao andamento lento, não falta clareza nem
convicção à fuga, e o principal: não falta verve de ferver o sangue nessa
gravação que em plenos anos 70 se tornou antológica. Gravação obrigatória e
complementar à de Emil Gilels. De quebra, a Rapsódia Húngara No. 6 de
Liszt pra descontrair, a irregular Sonata para Piano No. 2 de Schumann
e as duas viscerais rapsódias de Brahms – compositor que ela gravou tão
pouco.
Um trecho da primeira parte da Sonata em Si
menor de Liszt, em que os limites do virtuosismo parecem antes um limite
físico do som distinguível do que um limite da capacidade da Martha:
2. Chopin: Prelúdios, 3 Mazurkas Op. 59
& Scherzo No. 3 em Dó sustenido menor Op. 39
1961-1977 (Deutsche Grammophon)
1961-1977 (Deutsche Grammophon)
Martha raramente ousou um repertório inusitado,
preferindo enfrentar a via tradicional do repertório pianístico padrão. Nessa
prerrogativa, é uma especialista em Chopin. Essas gravações lançadas em 1977
mostraram um Chopin muito diferente do habitual, semelhante talvez apenas ao de
Sviatoslav Richter em alguns aspectos: com uma sonoridade ainda algo
impressionista em alguns momentos, mas sempre rápido, enérgico, incisivo. Assim
a integral dos prelúdios – tanto os vinte e quatro do Op. 28, como o Op. 45 e o
Op. póstumo – se tornou uma controversa referência, especialmente pela rapidez
dos andamentos. O resultado, além da novidade, reforça a unidade do conjunto e
rende momentos selvagens como este (do Prelúdio Op. 28 No. 18):
3. Ravel: Concerto para Piano em Sol
maior, Gaspard de la Nuit & Sonatine
com Claudio Abbado & Filarmônica de Berlim
1967-1975 (Deutsche Grammophon)
com Claudio Abbado & Filarmônica de Berlim
1967-1975 (Deutsche Grammophon)
Por mais que tenham sido poucas, é impossível não
pensar nas aulas de Martha com Arturo Benedetti Michelangeli ao ouvir seu Ravel:
a técnica pra uma sonoridade contemplativa, mas entrecortada por digressões e
intervenções das influências sempre diversas que Ravel incorporava em suas
obras, teve em Michelangeli um expoente, tanto pela sua própria gravação do
Concerto para Piano em Sol maior com Sergiu Celibidache, como por sua
interpretação referencial de Debussy, compositor francês análogo à técnica
pianística de Ravel no que se convenciona chamar de Impressionismo musical.
Nesse território desafiador, Martha produziu um de seus álbuns mais maduros. O
concerto para piano soa contagiante, como deve ser, com a multiplicidade de
cores e de ritmos dos seus movimentos externos, de influência basca, espanhola e
jazzística, e a simplicidade desconcertante do movimento central. Martha, que
não tem o volume de som de um Gilels ou de um Horowitz, cria sua atmosfera
expressiva pela riqueza de nuances. Isso e sua capacidade técnica que parece sem
limites renderam igualmente uma Gaspard de la Nuit impressionante. De
quebra, o álbum traz a irônica Sonatine do compositor. Martha ainda
gravou La Valse para dois pianos com Nelson Freire e as Valses
nobles et sentimentales de Ravel, lançadas em outros álbuns.
4. J. S. Bach: Toccata em Fá sustenido
menor BWV 910, Partita No. 2 em Dó menor BWV 826 & Suíte Inglesa No. 3 em Lá
menor BWV 807
1980 (Deutsche Grammophon)
1980 (Deutsche Grammophon)
Nas convocações dos nossos
11 álbuns favoritos no ano passado, acompanhando a lista de Dunga para a
Copa do Mundo, Bruno Gripp elegeu este um
dos seus CDs favoritos. E eu só não o elegi na minha lista pra não ser
repetitivo. Em meio a citações obsessivas a Glenn Gould de um lado ou a Dinu
Lipatti de outro, o Bach da Martha é uma surpresa, e só não é mais promovido
porque este CDzinho foi uma de suas únicas gravações do compositor. Ela
acompanhou mais recentemete Mischa Maisky em transcrições para violoncelo das
sonatas para viola da gamba e cravo, e voltou a tocar a Partita No. 2,
presente neste CD, no Carnegie Hall em 2000 e no Verbier Festival
em 2008. Mas o que há nessas interpretações – uma agilidade inacreditável
que explora uma sonoridade toda staccata em emulação ao cravo,
instrumento original das obras, e a velha riqueza de nuances que pinta de uma
cor cada plano sonoro (que em Bach são muitos) – nos faz, como Bruno já dizia no
seu post, implorar pra que saiam mais interpretações de Bach. Essa tal agilidade
se prova mais pertinente quando ouvimos como ela articula os ornamentos no
estilo do fraseado barroco (trecho da Courante, terceira peça da
Partita No. 2):
5. Prokofiev: Concerto para Piano No. 1
em Ré bemol maior Op. 10 & Concerto para Piano No. 3 em Dó maior Op.
26
Bartók: Concerto para Piano No. 3 em Mi maior Sz. 119
com Charles Dutoit & Orchestre Symphonique de Montréal
1997 (EMI Classics)
Bartók: Concerto para Piano No. 3 em Mi maior Sz. 119
com Charles Dutoit & Orchestre Symphonique de Montréal
1997 (EMI Classics)
O Concerto para Piano No. 3 de Prokofiev é uma
das obras mais difíceis já escritas para piano. Mas Martha reconhecidamente não
o considera tão difícil assim… Ela já o havia gravado com Abbado no fim dos anos
60, e voltou a ele neste CD de 1997. Alguns a criticam de, em anos mais
recentes, não apresentar a mesma bravura da juventude, o que não é uma crítica
ao seu condicionamento físico, que continua seguro, mas talvez à sua “química
musical” de hoje em dia. Este CD, em contraposição a isso, prova o quanto Martha
ainda tem a oferecer – e nem faria sentido supor o contrário. Além do entusiasmo
inconfundível que imprime nos concertos de Prokofiev e de Bartók, há aqui uma
irreverência, uma intimidade com o virtuosismo que as obras exigem, que rende
uma série de momentos surpreendentes de pura naturalidade, semelhantes mesmo a
improvisos. Seu entendimento com Charles Dutoit é de longa data: foram casados
entre 1969 e 1973 e passavam horas discutindo música em meio a partituras. O
maneirismo a que se dão direito nessas gravações legitima a interpretação da
modernidade dessas obras. Um notório ponto negativo, segundo o próprio David
Hurwitz comentando o outro álbum da EMI fruto desse encontro, é que a
gravação do piano no trabalho da engenharia de som parece não estar em um volume
muito bom em relação à orquestra… Mas pelos inéditos concertos no. 1 de
Prokofiev e no. 3 de Bartók na discografia da Martha este álbum continua sendo
essencial.
Poderíamos acrescentar seu Rachmaninoff, seu
Schumann, suas colaborações com Rostropovich, Kremer e Maisky, mas que esses
cinco álbuns – um The Essential Martha - já entusiasmem o seu
reconhecimento e mesmo a divulguem e incentivem entre os desavisados.
Leonardo T. Oliveira
Fonte: http://euterpe.blog.br/
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