A MÚSICA DE CRISTINA ORTIZ. ARTIGO DE PATRÍCIA LUCIENE DE CARVALHO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Respirar, verbo que corresponde à
função de inspirar e expirar ar por meio do movimento dos pulmões, a
possibilitar a manutenção da vida. A humanidade está tão envolvida com seus
próprios assuntos que não cogita perder tempo com algo tão óbvio - vivo porque
respiro. Esta reflexão decorre da entrevista concedida pela pianista Cristina
Ortiz ao programa "Música na Cabeça" (parceria entre o Jornal Estado
de São Paulo e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), eis que a mesma
fundamenta seu trabalho no respirar conjunto dos instrumentistas do conjunto
orquestral.
Cristina Ortiz, foto Internet
Diante desta colocação da pianista, passei
a observar com mais atenção a harmonia das apresentações orquestrais, seja das
apresentações oficiais ou dos ensaios abertos. Deixei de ficar como ouvinte
passiva e me entreguei à observação dos tempos, da harmonia e da distribuição
de energia entre os diversos músicos. E, quando tive oportunidade, comparei com
as poucas apresentações e ensaios que presenciei de Cristina Ortiz (brasileira,
que reside no continente europeu desde os 15 anos).
Interessante constatar a dificuldade
que as orquestras possuem, destacadamente na presença de solistas, no alcance
da harmonia. Entenda-se harmonia como o ato de executar a música no mesmo tempo,
de modo simétrico. Este objetivo, por certo, apenas se obtem quando ocorrem
ensaios. Aqui surge o primeiro problema, posto que algumas orquestras não
possuem tempo para ensaiar e/ou músicos existem que não admitem ensaios repetitivos
(para alguns exaustivos). Cheguei a presenciar ensaios em que músicos, enquanto
o regente orienta na execução, conversam, lêem revista ou, mesmo, riem da
respectiva orientação. Não se trata, neste caso, de alegar que se trata do
último ensaio, é o caso, realmente, de ausência de comprometimento.
E quando se tem solista? Alguns destes
entram ao ensaio, executam e saem praticamente invisíveis, em uma atitude de
absoluta individualidade. Em outra vertente, existem músicos que ignoram a
existência do solista, como se este fosse um obstáculo à rotina da orquestra.
Na execução oficial, por certo, o resultado aos ouvintes com audição mais
apurada é a assimetria nos tempos de execução. No entanto, a cena mais
lastimável foi a de um regente ensaiando os finais dos movimentos, na tentativa
de, ao menos, finalizá-los ao mesmo tempo em que ele (regente) acenava através
do fechamento dos dedos. O ensaio voltou-se, exclusivamente, para a finalização
dos movimentos!
Neste contexto melhor compreendi o
significado do "respirar conjunto" e do "distribuir energia"
de Cristina Ortiz. Todavia, percebi também a complexidade que é o alcance desta
realidade. Certo que é necessário, preliminarmente, a inexistência de
competições internas, de egos inflados e de individualismos. Por sua vez,
necessário o respeito e comprometimento dos envolvidos. E mais, que todos
(regente, instrumentistas, cantores e solista) estejam voltados à música.
Porém, não voltados à música como ato exclusivamente técnico, como se fossem
funcionários de uma organização que lá está presente para cumprir com a partitura.
Imprescindível o amor à música, à arte, à comunicação.
Amor que compreende o estudo da
partitura (o contexto de sua composição); o trabalho diário (ensaios) com os
colegas de naipes, com o conjunto orquestral e com o solista; a compreensão da
intenção do compositor; e, as adaptações necessárias à realidade atual dos
instrumentos e da sonoridade possível da respectiva sala de concerto (destaque
para o regente e diretor artístico). É este o respirar de Cristina Ortiz, uma
execução comprometida com o todo, à serviço da composição, do que é belo.
Para que esta forma de
comprometimento faça-se possível necessário que todos os envolvidos estejam
voltados à música e não a performances individuais. Infelizmente a música
clássica não escapa ao culto da vulgaridade e superficialidade, uma vez que
existem, por exemplo, solistas, de renome internacional, que têm a necessidade
de espetáculo próprio.
Recentemente, Cristina Ortiz,
durante o ensaio aberto junto à Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, em
março de 2013, mostrou, uma vez mais, conhecimento, comprometimento e elegância.
Conhecimento da íntegra da partitura, não apenas da parte do piano, mas de toda
a orquestra, gesticulando, sutilmente, como se estivesse regendo ao piano. Comprometimento
ao conversar com o regente sobre partes da partitura e o seu constante olhar
aos diversos músicos. E elegância por ser uma solista que tem absoluta expressão
corporal, sem que isto signifique ataques (show
business) ao piano, sendo este, para ela, a sua própria voz.
O respirar de Cristina Ortiz vai
além. Inova ao tentar incluir na pauta das apresentações, para as quais é
convidada, compositores distantes das programações; ao propor programas
próprios, como os scherzi e as baladas de Chopin, que denominou de
"scherlada"; e, ainda, mantém uma rotina de estudos, por exemplo,
para a compreensão do uso da mão esquerda por Chopin ou o uso diferenciado do
pedal. Ou seja, o respirar de Cristina supera o fato dela já ter um metrônomo
interno, ela busca o caminhar conjunto, no qual todos se voltam à música.
Diferentemente de outras atividades
profissionais, a música exige ser olhada de modo diverso, destacadamente por instrumentistas,
pois se trata de arte, de comunicação sui
generis. Na eventualidade do músico perceber que já não possui a motivação
embrionária, melhor que ele decida por exercer outra atividade. No mais, resta
a esperança que os sobreviventes busquem o respirar conjunto, para que eles e
os ouvintes sejam agraciados com o belo.
Patrícia Luciane de Carvalho
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