A VAIA NA ÓPERA. ARTIGO DE OSCAR PEIXOTO (1934-2012) NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.


Publicado originalmente em novembro de 2008 no Portal Luis Nassif, em

Você alguma vez já ouviu falar que um famoso pianista tenha sido vaiado em determinada apresentação? Ou de um violinista renomado que tenha sido apupado porque desafinou uma notinha em uma partitura imensa? Não se sabe de platéia que vá a um concerto e fique na expectativa de uma determinada nota a ser tocada. Será que o violinista vai dar aquela nota acutíssima, ou vai falhar? Suspense. Pois na ópera, isso acontece e com mais freqüência do que se imagina. Artistas de primeira, cantores de altíssimo gabarito, estão sempre expostos a esse risco. Por melhor que cante e interprete seu papel, se não der aquele “dó de peito”, se o diafragma falhar naquele momento crucial, vai por água abaixo todo o seu esforço, todo o trabalho de anos de estudo. Uma notinha só, perdida entre centenas de outras, muitas vezes até mais difíceis de serem executadas, é o suficiente para a catástrofe total.

Conseqüência: a vaia ou, o que é quase tão arrasador quanto, aquele murmúrio desconfortante de decepção e desaprovação por parte da platéia.

O mundo da ópera é um pouco diferente dos demais mundos artísticos. Dentro do universo musical, eu diria que é um mundo à parte. Por algum motivo, a ópera desperta nos aficionados paixões exacerbadas, disputas acirradas entre os fãs de um artista e os de outro seu concorrente, sem que haja razão aparente, seja do ponto de vista técnico, seja do ponto de vista meramente musical (algo assim como acontece no futebol, outro mistério passional). Mas o fato é que acontecem, de forma mais sofisticada e elitizada, disputas entre os fãs-clubes do soprano A e os do soprano B. Algo parecido com o que acontecia na era de ouro do rádio entre os fãs da Marlene e os da Emilinha. Mesmo quem não viveu aquela época possivelmente tem notícia dessa disputa que durou enquanto aquelas cantoras estiveram em atividade.

O caso Maria Callas x Renata Tebaldi é emblemático. Ambas sopranos maravilhosos, artistas completas no palco, belas mulheres, realizadas profissionalmente, mas tidas como inimigas figadais, muito menos por concorrência de papéis e contratos nos grandes teatros do que pelas “torcidas” das platéias. Os fofoqueiros da época chegavam até a atribuir uma disputa amorosa entre as duas por causa do tenor Giuseppe di Stefano, pura intriga de baixo nível. A bem da verdade, essa suposta inimizade nunca existiu, conforme mais tarde se esclareceu. Pelo contrário, embora não tenham sido amigas, eram admiradoras uma da outra, mesmo não tornando isso público, provavelmente para alimentar um pouquinho as bilheterias. E o que essa pseudodisputa deu de vaia nos teatros é uma história a ser contada.

Recentemente, tivemos um caso que deu manchetes no mundo inteiro: o tenor francês Roberto Alagna, indiscutivelmente um dos maiores da atualidade, foi estrondosamente vaiado no Scala de Milão, na apresentação da Aida, de Verdi. Isso após cantar corretamente, diga-se de passagem, sua primeira ária da ópera (Celeste Aida). Alagna, revoltado, deu uma bombástica banana para o público e retirou-se de cena. Isso, na linguagem futebolística, aos 5 minutos do primeiro tempo! Certo ou errado, Roberto não resistiu a essa cobrança impiedosa da “torcida”.

Outro caso, também recente, ocorreu com o tenor Rolando Villazón (que estreou esta página), na ópera Manon de Massenet. Sua voz falhou na sustentação de uma nota (não aguda, por sinal), por um problema nítido de cansaço do diafragma. Não foi vaiado no teatro, mas o que deu de comentários depreciativos no vídeo do You Tube, não está no gibi. E o sujeito que colocou o vídeo no ar, ainda acrescenta que foram três as “quebras” da voz. Bem, no trecho apresentado só notei uma, no final da ária, na sustentação do segundo “loin de moi”...
Como explicar esse sadismo de alguns aficionados? Com a palavra os psicólogos.

Oscar Peixoto (1934-2012)
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    Comentário: Henrique Marques Porto

Em 1917, por exemplo, Enrico Caruso esteve, pela segunda e última vez no Rio de Janeiro -a primeira foi em 1903. Entre outros títulos, se apresentou na Tosca, e desse espetáculo ficou um episódio que dá bem idéia da mala sorte do maior tenor de todos os tempos aqui no Rio. Em 1903, cantou I Pagliacci, seu tour de force, no Teatro Lírico. Estava no Rio uma outra companhia, cuja principal estrela era, se não me engano, o espanhol Hipólito Lázaro, grande tenor que, no entanto, não chegava a rivalizar com Enrico Caruso, que reinava absoluto, ainda mais cantando o seu melhor papel.

Mas, o calor dos trópicos mexe com os sentidos e estimula as idéias. Para fazer frente ao rival que cantaria no Teatro Lírico, foi anunciado que no mesmo dia e hora subiria ao palco de outro teatro -provavelmente o São Pedro, atual João Caetano- uma montagem de I Pagliacci com o grande Hipólito Lázaro no papel principal. Apesar de não haver dúvidas sobre qual dos dois era o melhor tenor, estava lançado um desafio na cidade que chegou às páginas dos jornais e mobilizou o público. A qual dos espetáculos assistir? Quem seria o melhor naquela noite? Os ingressos esgotaram rapidamente e pequenas multidões anciosas se formaram na frente dos dois teatros. Lázaro foi estupendo! Caruso foi sublime! Lázaro foi sublime e Caruso estupendo! Impossível saber quem cantou melhor. Mas, Caruso era insuperável nesse papel e, dificilmente, alguém conseguiria cantar melhor do que ele. Contudo, para seu infortúnio, o empresário do rival era mais esperto do que o seu. Não apenas contratou numerosa e aguerrida claque para ovacionar o astro de sua trupe, como garantiu a Lázaro o que provavelmente foi de Caruso por merecimento: ao final do espetáculo, o tenor espanhol saiu do teatro carregado em triunfo e aclamado “vencedor da batalha” pelas ruas do Rio de Janeiro, com seu público em procissão a lançar chapéus e bengalas para o alto.

Em sua volta ao Rio em 1917, Caruso guardou na babagem um novo desencanto. A temperamental e caprichosa platéia carioca de então brindou o gênio do canto com histórica e barulhenta vaia, não porque ele tenha cantado mal, mas por razões que nada tinham a ver com o bel canto, e sim com bons modos. Caruso cantou tão bem e tão lindamente o E Lucevan le Stelle, a famosa ária do último ato da ópera, que o público explodiu maravilhado em aplausos e gritos de bis. O tenor agradeceu comovido, mas manteve-se impassível diante dos pedidos insistentes do público para que fizesse soar novamente a famosa voz na bela ária de Puccini. E à excitação das galerias e balcões a grande estrela respondia com gestos de fastio e arrogância, cruzando os braços ou sinalizando ao maestro para que continuasse com o espetáculo, ao que o público replicava determinado com nova onda de gritos de bis, bis, bis!

A coisa já havia evoluído para renhida queda-de-braço entre artista e público quando Caruso, com expressão feroz no rosto e gestos malcriados de mãos balançando nervosas, gritou para o maestro, em italiano, alguma coisa que o público entendeu como:

“-Bisa logo essa merda aí!”.

Não. Assim o público não queria porcaria de bis nenhum. E respondeu ao mau humor do napolitano despejando sobre o palco do Theatro Municipal estridente e ensurdecedora vaia, com direito a pateada.

O público carioca há muito tempo não faz mais dessas coisas e muitos, provavelmente, sequer sabem o que vem a ser uma “pateada”, que é bater com os pés, as “patas”, no chão. Hoje, nossas platéias são muito bem educadas quanto aos modos. Mas que tristeza vê-la tão bem comportadinha, e tão burrinha, aplaudindo tenores papudos que soam como as cabras ou tristes sopranos que lembram o ranger das portas.

Caruso cantou bem e foi aplaudido. Foi malcriado e foi vaiado por isso. E depois da vaia, bisou a linda música de Puccini. Enfim, um sucesso completo. Dele e do público.
 

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