SALVE MOZART! CRÍTICA DE FABIANO GONÇALVES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

OSB Ópera & Repertório leva ao palco do Municipal graciosa versão de O Rapto do Serralho.
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Era uma vez duas pobres mocinhas que foram arrancadas de suas terras natais e enviadas para uma vida de exploração sexual no distante exótico reino da Turquia. Elas passam grandes dificuldades nas mãos de seus algozes até serem resgatadas pelos homens que amam e poderem voltar, sãs e salvas, a seus países de origem. Não, não estamos falando do fiasco teledramatúrgico chamado Salve Jorge, novela escrita por Glória Perez e que chegou ao fim na noite de 17 de maio, após meses amargando o título de novela das 21h. com uma das piores audiências da história da Rede Globo.
Era uma vez um jovem compositor que havia saído de sua Salzburgo natal havia poucos meses. Livre da dominação paterna, ele buscava firmar-se como músico em Viena, capital da corte do imperador José II, e preparava-se para desposar a bela Constanze Weber. Como estratégia de aproximação de sua majestade, acerca-se de um gênero que vai ao encontro das reformas teatrais de pendor nacional-germanizante recém-propostas pelo imperador e, em questão de meses, escreve uma ópera no estilo singspiel, misturando música e teatro falado, que se passa na Turquia, cujo povo invasor havia sido expulso dos muros vienenses cerca de cem anos antes. Sim, estamos falando de um dos maiores gênios da Humanidade: Wolfgang Amadeus Mozart. E a ópera em questão é Die Entführung aus dem Serail (O Rapto do Serralho).
Quando a escreveu, Mozart tinha 26 anos de idade e sua genialidade musical e dramática já era assombrosa. O tema era de uma turquerie clássica, mas o compositor conseguiu adicionar doses de profundidade dramatúrgica aos personagens, que eram expressas por meio de uma música cheia de graça e encanto. Ao libreto de Johann Gottlieb Stephanie (Der Jüngere), com base na peça Belmont und Constanze, de Christoph Friedrich Bretzner, acrescentam-se o amor de Mozart por sua Constanze, inspirando-o na criação de belas canções.
Eis, em linhas gerais, a trama: duas jovens ocidentais – Constanze, nobre espanhola, e Blonde, sua dama de companhia inglesa – foram raptadas por piratas turcos e vendidas para o serralho do Paxá Selim, onde são vigiadas por Osmin. O valente Belmonte, noivo de Constanze, chega ao harém para buscar sua amada. Ali também está Pedrillo, criado de Belmonte e amante de Blonde, que embriaga Osmin para possibilitar a fuga. Mas tudo dá errado e os quatro amantes ficam nas mãos do Paxá, que, no fim, generosamente os liberta.

Turquia no Rio

Essa delicada ópera, cuja estreia se deu em 16 de julho de 1782 no Burgtheater, na capital austríaca, foi apresentada na noite de 16 de maio pela Orquestra Sinfônica Brasileira Ópera & Repertório no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, como parte da Série Ágata.
O argentino Alejo Perez regeu o grupo com firmeza, regendo com vigor e pedindo mais. Apesar de momentos de afobação, o maestro mostrou domínio sobre a partitura. De início, a OSB parecia um pouco burocrática, mas seu rendimento, ainda que ligeiramente heterogêneo, foi crescendo à medida que a récita avançava.
O primeiro estranhamento da noite foi a eliminação por completo dos textos falados entre as árias, que caracterizam a obra como um singspiel. Houve pausas para que o público pudesse ler os intertítulos, mas isso impediu que a audiência se envolvesse com a trama, dando ao recital um ar mais de highlights do que efetivamente uma récita de ópera.
O segundo ponto negativo foi a eliminação do coro dos janíçaros, Singt dem grossen Bassa Lieder, bem como, na cena final, Bassa Selim lebe Lange, substituindo a massa vocal por um quarteto (cujos intérpretes não foram identificados no programa). A exuberância da harmonia à la turca foi perdida.
A cena se inicia com uma bela ária de Belmonte, Hier soll ich dich denn sehen, na qual o tenor argentino Ivan Maier mostrou seus talentos. Apesar da voz um pouco anasalada, o intérprete fez bom uso de sua técnica e de sua tessitura mozartiana. O mesmo ocorreu na ária O wie ängstlich, o wie feurig, peça na qual o compositor, em carta ao pai, Leopold, dizia que era sentido “o temor, a irresolução; sente-se aí o peito inchado que se levanta e isso é expresso por um crescendo; ouve-se aí a voz que acarinha e suspira”. Maier acertou na interpretação dessa delicada canção, executando com excelência os melodiosos vocalises. Merece menção ainda a linda performance na ária Ich baue ganz auf deine Stärke. A voz de Maier gira rapidamente, dando leveza à emissão e carregando a música de toda a delicadeza impressa nas notas.
A contrapartida ao idílio amoroso é o humor que permeia o personagem do guarda Osmin, ao mesmo tempo divertido e assustador. Seu intérprete nessa récita foi o baixo norte-americano Gregory Reinhart. “Surpreendentemente poderoso”, segundo o New York Times, o cantor de timbre caudaloso ganhou o público carioca com suas atuações espirituosas. A virtuosística Solche hergelauf’ne Laffen foi interpretada com arrebatamento. Nos momentos em que faltou leveza ao cantor (que foi recentemente visto em A Valquíria, de Richard Wagner, em São Paulo), como na ária O wie will ich triumphieren, Reinhart faz uso de seus atributos cênicos de intérprete e por uma habilidade vocal digna de nota.
Fechando o grupo masculino está o tenor Ivan Jorgensen. De timbre mais heroico do que o indicado a um intérprete mozartiano, o carioca deu vida a Pedrillo, um dos mais interessantes personagens para segundo tenor. Na ária Frisch zum Kampfe, por exemplo, faltou ligeireza, mesmo com o bonito timbre do cantor. Saiu-se melhor na deliciosa serenata In Mohrenland gefangen war ein Mädel, na qual se destacaram ainda as perfeitas cordas em pizzicatto, tocadas com precisão.

Escravas e rainhas

Foram mesmo as mulheres que dominaram a noite da récita. Dona de belíssimo timbre e esbanjando graça, a soprano Lina Mendes fez uma Blonde perfeita. Sua voz jovial e colorida encaixou-se com exatidão às linhas da personagem, como explícito nas árias Durch Zärtlichkeit und Schmeicheln, de agudos claros e emissão impecável, e na exultante Welche Wonne, welche Lust, interpretada com alegria. A boa presença cênica da intérprete veio à tona nos divertidos duetos com Omin e com Pedrillo.
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Ana James
Senhora absoluta de seu talento vocal, a estrela da apresentação foi a soprano neozelandesa Ana James. Herdeira de sua conterrânea Kiri Te Kanawa (em cuja fundação foi agraciada com bolsa de estudos) na tradição mozartiana, a cantora arrebatou o público com suas belas e exigentes árias. A sentida e apaixonada ária de coloratura Ach, ich liebte, war so glücklich, expressou toda a profundidade do sentimento de Constanze. No segundo ato, Traurigkeit ward mir zum Lose é uma pérola considerada uma das mais exuberantes demonstrações de melancolia na obra do compositor. A ordem das canções foi alterada para que um dos mais altos momentos da ópera não viesse logo em seguida, dando à intérprete alguns momentos para se recompor e arrebatar completamente a plateia em quase dez minutos de coloratura na exuberante Martern aller Arten. James executou com perfeição a difícil peça, dando agudíssimos em piano e emitindo cada nota com clareza e sentimento. Um tour-de-force soberbo, pelo qual foi ovacionada com empolgação.


Apesar de algumas biografias de Mozart afirmarem que o imperador José II havia dito que O Rapto do Serralho tinha “notas demais”, essa ópera, ainda que considerada por muitos uma obra menor se comparada a As Bodas de Fígaro (1786), Così Fan Tutte (1790) ou A Flauta Mágica (1791), é um dos pontos altos da criação do genial compositor. Além do casamento perfeito entre drama e música, traz árias inspiradas, cheias de encanto, delicadeza e humor, e mantém-se como uma das preferidas do público europeu. Depois da bela récita da OSB Ópera & Repertório, tem tudo para tornar-se também uma das favoritas dos brasileiros.
Fabiano Gonçalves
Fonte: http://www.movimento.com/

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