STRAVINSKY: A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA. ARTIGO DE AMANCIO CUETO JR NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Há exatamente 100 anos atrás acontecia um dos
episódios mais famosos da história da música: a tumultuada estréia do balé
Le Sacre du printemps, A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky.
Euterpe celebra a data publicando um resumo dos fatos que aconteceram naquela
noite, acompanhado de uma breve análise da “mais importante obra do século XX”,
segundo opinião do maestro Leonard Bernstein.
No começo do século XX Paris vivia os agitados
anos da Belle Époque, quando o empresário Sergei Diaghilev iniciou
apresentações de arte russa na cidade. O sucesso das apresentações o motivou a
criar em 1909 o Ballets Russes, uma companhia de balé itinerante que
contava com nomes famosos – e também nomes que criaram fama com as apresentações
da companhia – como o bailarino Vaslav Nijinsky, o coreógrafo Michel Fokine e o
designer/cenógrafo Léon Bakst.
Diaghilev encontrou o então desconhecido Igor
Stravinsky em 1909, num concerto com obras do jovem compositor. O empresário
ficou tão impressionado que solicitou a ele algumas orquestrações de peças de
Chopin para o balé Les Sylphides. Animado com o resultado, encomendou
na sequência os balés O Pássaro de Fogo (1910) e Petrushka
(1911). O trabalho seguinte foi a peça cujo título em russo, Vesna
svyashchennaya, poderia ser melhor traduzido como “Primavera Sagrada”, mas
acabou ganhando fama mesmo com o título em francês que significa “O Ritual da
Primavera”, com subtítulo “Cenas da Rússia pagã em duas partes”.
O enredo é algo meio chocante: numa Rússia dos
tempos primitivos, uma virgem é escolhida e deve dançar até morrer num ritual de
sacrifício à primavera que se inicia. Diaghilev queria uma coreografia ainda
mais ousada, e por isso escolheu o bailarino Vaslav Nijinsky como coreógrafo da
obra. No ano anterior, em 1912, Nijinsky já havia causado grande escândalo em
Paris com a coreografia de L’après-midi d’un faune, baseado na obra de
Debussy. Ou seja: o empresário sabia bem o que estava fazendo, ele queria mesmo
era um grande escândalo.
Stravinsky terminou a composição em março de
1913, porém continuou revisando a obra durante os próximos 30 anos. Pierre
Monteux, o regente que conduziu a orquestra na estréia da obra, confessou anos
depois que nunca tinha gostado daquela música, mas que foi convencido por
Diaghilev a reger a peça: “Esta é uma obra-prima, Monteux! Ela vai revolucionar
a música e o fará famoso, pois é você quem vai conduzi-la”. Os músicos não
pensavam diferente do regente: eles acreditavam que aquilo tudo era uma absoluta
loucura.
A estréia aconteceu em 29 de maio de 1913 no
recém-inaugurado Théâtre des Champs-Élysées, e a primeira peça do
programa foi uma coreografia tradicional de Michel Fokine, Les
Sylphides, com música de Chopin. Depois veio a Sagração da
Primavera, que não era a última peça da noite: ao fim desta, o público
ainda assistiu a duas outras coreografias “tradicionais”, com músicas de Weber
(Convite à Dança) e Borodin (o 2º ato do Príncipe Igor, com as
Danças Polovitsianas).
Testemunhas contam que as vaias começaram ainda
durante a introdução da primeira parte da Sagração, e elas aumentaram mais ainda
quando as cortinas se abriram e aquela dança primitiva começou. A coreografia de
Nijinsky incluía muitos passos “anti-dançantes”, com os pés para dentro e saltos
que “faziam todos os órgãos internos do corpo sacudirem violentamente”, segundo
relato de um dos bailarinos. As roupas, desenhadas por Nicholas Roerich, eram
muito grandes e pesadas, algo totalmente oposto ao figurino tradicional de um
Lago dos Cisnes, por exemplo. Nem as roupas e nem a dança
lembravam a elegância e a leveza de um balé tradicional. “Quando as cortinas se
abriram mostrando aquele grupo de Lolitas de longas tranças e pernas tortas
saltando pra cima e pra baixo, a tempestade desabou”, relatou Stravinsky. “Eu
tenho 60 anos de idade e esta é a primeira vez que alguém se atreve a tirar
sarro assim de mim”, disse irritada a condessa de Pourtales, uma elegante
parisiense. Mas houve quem batesse ritmicamente na cabeça do vizinho da frente,
excitado com a performance… e o vizinho da frente só percebeu isso algum tempo
depois, de tão hipnotizado que ele estava com a música.
As vaias cresceram tanto que, em certo ponto, a
música se tornou inaudível para os que estavam dançando no palco. Nijinsky então
subiu numa cadeira e passou a gritar o tempo dos compassos para os bailarinos.
Para conter os mais exaltados, a gerência do teatro acendeu várias vezes as
luzes da platéia, sem sucesso. E então, quando os que gostaram da novidade
chegaram às vias de fato com os que vaiavam, a polícia foi chamada e colocou
para fora, à força, cerca de 40 pessoas. Mesmo com toda a balbúrdia, Monteux se
manteve firme conduzindo a orquestra até o final da obra, “insensível e com o
sangue frio de um crocodilo”, teria dito Stravinsky. No final o balé foi
bastante aplaudido, antes do programa continuar conforme planejado.
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