UM "ENDIABRADO" POTENKIM , BERLIOZ E POULENC MOVIMENTARAM O MUNICIPAL DO RJ. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Mezzosoprano lituana e atuação da orquestra da casa, conduzida por seu titular, foram os destaques do fim de semana clássico.
Dois importantes concertos tiveram lugar, no último fim de semana, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Na sexta-feira, 14 de junho, a Orquestra Sinfônica Brasileira Ópera & Repertório deu prosseguimento à sua Série Ônix ao apresentar dois monólogos de compositores franceses. Já no sábado, dia 15, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal ofereceu mais uma edição da Série Música e Imagem, desta vez com o filme O Encouraçado Potemkin.
Berlioz e Poulenc
A OSB O&R abriu a noite de sexta com a cantata Cléopâtre (Cleópatra), popularmente conhecida como La Mort de Cléopâtre (A Morte de Cleópatra). Esta cantata, de 1829, foi uma das quatro que o grande compositor francês Hector Berlioz escreveu para o Prix de Rome (Prêmio de Roma) entre 1827 e 1830. Tal prêmio, ao contrário do que o nome sugere à primeira vista, era oferecido pelo governo francês, e não por Roma, a jovens artistas que se destacavam em suas respectivas artes. Os vencedores do certame recebiam uma bolsa para estudarem em Roma – daí o nome do prêmio.
No caso do concurso musical, a prova principal consistia em escrever uma cantata sobre um texto oferecido pela banca. Na edição de 1829, este texto, sobre a morte da mais famosa rainha egípcia, foi escrito por Pierre-Ange Vieillard. Berlioz escreveu a cantata, mas não levou o primeiro prêmio, que não foi concedido naquele ano por decisão da banca. O compositor, quem um ano antes havia conseguido o segundo prêmio com Herminie, só seria laureado com o primeiro prêmio em 1830, com a cantata Sardanapale, também conhecida como La Mort de Sardanapale.
Em Cléopâtre, a rainha egípcia está desolada após a morte de seu amado Marco Antônio. Ela se envenena e morre, não sem antes se questionar se uma rainha indigna dos grandes faraós que lhe antecederam seria admitida entre eles na sua morada eterna.
A música de Berlioz alcança grande efeito, especialmente no momento em que a solista evoca os antigos faraós e também na cena derradeira. E foi exatamente na evocação aos faraós que a mezzosoprano lituana Liora Grodnikaite atingiu o ponto máximo de sua performance nesta primeira peça da noite, demonstrando grande senso dramático, além de uma voz bem projetada e baseada em excelente técnica. A OSB O&R começou titubeante, escorregando na sempre surpreendente, rica e complexa orquestração do gênio francês, mas se encontrou não muito depois e levou a música com correção até o final, sob a regência do maestro chileno Rodolfo Fischer.
Depois do intervalo, conjunto, solista e regente ofereceram, do também compositor francês Francis Poulenc, a ópera La Voix Humaine (A Voz Humana). Escrita em 1958 e estreada no ano seguinte, a ópera baseia-se no monólogo homônimo de Jean Cocteau. Uma mulher fala ao telefone com um interlocutor que entendemos ser seu ex-amante e que a deixou para se casar com outra. Durante a conversa, ela demonstra diferentes estados emocionais, e se utiliza de artifícios como a mentira na tentativa de não deixar que ele perceba seu desespero com a separação. Ora esperançosa e negando-se a enxergar a realidade, ora realista e desesperada a ponto de confessar ter tentado o suicídio, a mulher angustiada conduz a ópera, enquanto a tensão dramática se desenvolve num crescendo, até o clímax final.
Aqui, a OSB O&R teve seu melhor momento, acompanhando a solista com precisão e expressividade, bem conduzida por Fischer; enquanto Grodnikaite, a exemplo do crescendo da obra, foi paulatinamente acentuando o tom dramático, numa belíssima interpretação.
A Voz Humana não é uma obra desconhecida dos cariocas: foi encenada no Municipal em 1997, com a célebre soprano italiana Renata Scotto, e reapresentada pela OSESP em 2008, em forma de concerto, tendo Michelle Canniccioni como solista. Já Berlioz continua sendo um compositor bissexto na cidade, especialmente no que diz respeito às suas peças vocais. A própria OSB, ainda no tempo de Yeruham Sharovsky, chegou a programar uma versão em concerto de A Danação de Fausto, que acabou cancelada, ou seja, a orquestra está nos devendo esta ópera. Fica aí uma sugestão para o próximo ano, já que o Municipal, em sua programação própria, não dá chance às óperas do brilhante compositor francês.
O próximo concerto da Série Ônix, em 16 de agosto, trará a ópera O Turco na Itália, de Rossini, com nomes como Lício Bruno, Leonardo Páscoa, Luciano Botelho e Jacques Rocha. Antes, em 04 de julho, pela Série Ágata, a OSB O&R apresenta as óperas Jupyra (de Francisco Braga) e Moema (de Delgado de Carvalho), sob a regência de Sílvio Viegas.
O Encouraçado Potemkin
Por falar em Sílvio Viegas, o regente titular da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal conduziu mais uma vez seu conjunto, no último sábado, em uma apresentação da Série Música e Imagem – a segunda este ano. Ao contrário da apresentação de março (Os Nibelungos, com música sem maior interesse de Gottfried Huppertz), desta vez, com o filme O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, o nível da performance musical foi superlativo.
O filme, estreado em 1925, foi encomendado a Eisenstein para lembrar e comemorar os vinte anos da Revolução de 1905, um movimento espontâneo contra o czarismo que tomou conta do Império Russo. Este movimento é considerado, por muitos historiadores, o marco inicial que levaria à grande Revolução de 1917.
A obra, dividida em cinco partes, narra o motim a bordo do encouraçado (grande navio de guerra) Potemkin, quando marinheiros, inicialmente revoltados com a péssima qualidade da comida a bordo, se voltam contra seus superiores, inspirados pelos levantes que já ocorriam no campo e em várias cidades – chamando a atenção, assim, para as causas coletivas –, e tomam o controle do navio.
A tripulação recebe o apoio dos cidadãos de Odessa, que por sua vez são atacados sem piedade por tropas czaristas. Os marinheiros do Potemkin respondem com tiros de canhão contra os Cossacos. Quase no fim, chega a notícia de que uma frota de navios do Czar está a caminho de Odessa para enfrentar os amotinados. A tripulação se prepara para a batalha, mas, quando está prestes a atirar contra a frota, percebe que seus companheiros dos demais navios estavam, na verdade, a seu favor, e o Potemkin segue em frente, tremulando uma bandeira vermelha…
Originalmente, o filme não tinha trilha sonora, que só foi composta um ano depois de sua estreia, por Edmund Meisel, quando a obra foi apresentada em Berlim. De lá para cá, recebeu outras trilhas. Aquela agora executada no Municipal foi arranjada pelo regente e arranjador alemão Frank Strobel, que a montou utilizando-se de passagens das sinfonias n° 4, 5, 8, 10 e 11 de Dmitri Shostakovich. E, destas, as passagens mais utilizadas na trilha são aquelas da Sinfonia n° 4.
Na noite de sábado, houve, é verdade, um pequeno momento de imprecisão sonora, logo no começo da apresentação, e um perceptível desencontro com o filme no final de sua terceira parte, mas nada disso prejudicou o que acabou se verificando ao fim do concerto: a melhor apresentação da Sinfônica do Municipal nesta temporada.
Ainda que a música de Shostakovich estivesse rearranjada e fora de ordem, percebia-se claramente a força de sua escrita. E, diante de tal vigor, a orquestra não se escondeu. Enfrentou-o com bravura, muitíssimo bem conduzida por Sílvio Viegas, que realizou uma leitura dinâmica precisa, de acordo com as necessidades da música (e talvez por isso o insignificante desencontro com o filme no final da terceira parte) e, quando possível, respeitando as necessidades no filme. O regente imprimiu rigor rítmico, densidade dramática (especialmente na quarta parte) e um clima angustiante de tensão na quinta parte, recebendo de seus músicos resposta à altura – o que acabou resultando num Potemkin realmente endiabrado. Foi uma bela noite de música no Municipal.
Programação do Municipal
Parece (quando se trata da programação do Municipal do Rio, nunca é bom usar termos que demonstrem certeza…) que as óperas do Municipal para o segundo semestre vão mesmo sair: o programa duplo que inclui Erwartung e Suor Angelica, e também Billy Budd.
Leonardo Marques
Dois importantes concertos tiveram lugar, no último fim de semana, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Na sexta-feira, 14 de junho, a Orquestra Sinfônica Brasileira Ópera & Repertório deu prosseguimento à sua Série Ônix ao apresentar dois monólogos de compositores franceses. Já no sábado, dia 15, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal ofereceu mais uma edição da Série Música e Imagem, desta vez com o filme O Encouraçado Potemkin.
Berlioz e Poulenc
A OSB O&R abriu a noite de sexta com a cantata Cléopâtre (Cleópatra), popularmente conhecida como La Mort de Cléopâtre (A Morte de Cleópatra). Esta cantata, de 1829, foi uma das quatro que o grande compositor francês Hector Berlioz escreveu para o Prix de Rome (Prêmio de Roma) entre 1827 e 1830. Tal prêmio, ao contrário do que o nome sugere à primeira vista, era oferecido pelo governo francês, e não por Roma, a jovens artistas que se destacavam em suas respectivas artes. Os vencedores do certame recebiam uma bolsa para estudarem em Roma – daí o nome do prêmio.
No caso do concurso musical, a prova principal consistia em escrever uma cantata sobre um texto oferecido pela banca. Na edição de 1829, este texto, sobre a morte da mais famosa rainha egípcia, foi escrito por Pierre-Ange Vieillard. Berlioz escreveu a cantata, mas não levou o primeiro prêmio, que não foi concedido naquele ano por decisão da banca. O compositor, quem um ano antes havia conseguido o segundo prêmio com Herminie, só seria laureado com o primeiro prêmio em 1830, com a cantata Sardanapale, também conhecida como La Mort de Sardanapale.
Em Cléopâtre, a rainha egípcia está desolada após a morte de seu amado Marco Antônio. Ela se envenena e morre, não sem antes se questionar se uma rainha indigna dos grandes faraós que lhe antecederam seria admitida entre eles na sua morada eterna.
A música de Berlioz alcança grande efeito, especialmente no momento em que a solista evoca os antigos faraós e também na cena derradeira. E foi exatamente na evocação aos faraós que a mezzosoprano lituana Liora Grodnikaite atingiu o ponto máximo de sua performance nesta primeira peça da noite, demonstrando grande senso dramático, além de uma voz bem projetada e baseada em excelente técnica. A OSB O&R começou titubeante, escorregando na sempre surpreendente, rica e complexa orquestração do gênio francês, mas se encontrou não muito depois e levou a música com correção até o final, sob a regência do maestro chileno Rodolfo Fischer.
Depois do intervalo, conjunto, solista e regente ofereceram, do também compositor francês Francis Poulenc, a ópera La Voix Humaine (A Voz Humana). Escrita em 1958 e estreada no ano seguinte, a ópera baseia-se no monólogo homônimo de Jean Cocteau. Uma mulher fala ao telefone com um interlocutor que entendemos ser seu ex-amante e que a deixou para se casar com outra. Durante a conversa, ela demonstra diferentes estados emocionais, e se utiliza de artifícios como a mentira na tentativa de não deixar que ele perceba seu desespero com a separação. Ora esperançosa e negando-se a enxergar a realidade, ora realista e desesperada a ponto de confessar ter tentado o suicídio, a mulher angustiada conduz a ópera, enquanto a tensão dramática se desenvolve num crescendo, até o clímax final.
Aqui, a OSB O&R teve seu melhor momento, acompanhando a solista com precisão e expressividade, bem conduzida por Fischer; enquanto Grodnikaite, a exemplo do crescendo da obra, foi paulatinamente acentuando o tom dramático, numa belíssima interpretação.
A Voz Humana não é uma obra desconhecida dos cariocas: foi encenada no Municipal em 1997, com a célebre soprano italiana Renata Scotto, e reapresentada pela OSESP em 2008, em forma de concerto, tendo Michelle Canniccioni como solista. Já Berlioz continua sendo um compositor bissexto na cidade, especialmente no que diz respeito às suas peças vocais. A própria OSB, ainda no tempo de Yeruham Sharovsky, chegou a programar uma versão em concerto de A Danação de Fausto, que acabou cancelada, ou seja, a orquestra está nos devendo esta ópera. Fica aí uma sugestão para o próximo ano, já que o Municipal, em sua programação própria, não dá chance às óperas do brilhante compositor francês.
O próximo concerto da Série Ônix, em 16 de agosto, trará a ópera O Turco na Itália, de Rossini, com nomes como Lício Bruno, Leonardo Páscoa, Luciano Botelho e Jacques Rocha. Antes, em 04 de julho, pela Série Ágata, a OSB O&R apresenta as óperas Jupyra (de Francisco Braga) e Moema (de Delgado de Carvalho), sob a regência de Sílvio Viegas.
O Encouraçado Potemkin
Por falar em Sílvio Viegas, o regente titular da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal conduziu mais uma vez seu conjunto, no último sábado, em uma apresentação da Série Música e Imagem – a segunda este ano. Ao contrário da apresentação de março (Os Nibelungos, com música sem maior interesse de Gottfried Huppertz), desta vez, com o filme O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, o nível da performance musical foi superlativo.
O filme, estreado em 1925, foi encomendado a Eisenstein para lembrar e comemorar os vinte anos da Revolução de 1905, um movimento espontâneo contra o czarismo que tomou conta do Império Russo. Este movimento é considerado, por muitos historiadores, o marco inicial que levaria à grande Revolução de 1917.
A obra, dividida em cinco partes, narra o motim a bordo do encouraçado (grande navio de guerra) Potemkin, quando marinheiros, inicialmente revoltados com a péssima qualidade da comida a bordo, se voltam contra seus superiores, inspirados pelos levantes que já ocorriam no campo e em várias cidades – chamando a atenção, assim, para as causas coletivas –, e tomam o controle do navio.
A tripulação recebe o apoio dos cidadãos de Odessa, que por sua vez são atacados sem piedade por tropas czaristas. Os marinheiros do Potemkin respondem com tiros de canhão contra os Cossacos. Quase no fim, chega a notícia de que uma frota de navios do Czar está a caminho de Odessa para enfrentar os amotinados. A tripulação se prepara para a batalha, mas, quando está prestes a atirar contra a frota, percebe que seus companheiros dos demais navios estavam, na verdade, a seu favor, e o Potemkin segue em frente, tremulando uma bandeira vermelha…
Originalmente, o filme não tinha trilha sonora, que só foi composta um ano depois de sua estreia, por Edmund Meisel, quando a obra foi apresentada em Berlim. De lá para cá, recebeu outras trilhas. Aquela agora executada no Municipal foi arranjada pelo regente e arranjador alemão Frank Strobel, que a montou utilizando-se de passagens das sinfonias n° 4, 5, 8, 10 e 11 de Dmitri Shostakovich. E, destas, as passagens mais utilizadas na trilha são aquelas da Sinfonia n° 4.
Na noite de sábado, houve, é verdade, um pequeno momento de imprecisão sonora, logo no começo da apresentação, e um perceptível desencontro com o filme no final de sua terceira parte, mas nada disso prejudicou o que acabou se verificando ao fim do concerto: a melhor apresentação da Sinfônica do Municipal nesta temporada.
Ainda que a música de Shostakovich estivesse rearranjada e fora de ordem, percebia-se claramente a força de sua escrita. E, diante de tal vigor, a orquestra não se escondeu. Enfrentou-o com bravura, muitíssimo bem conduzida por Sílvio Viegas, que realizou uma leitura dinâmica precisa, de acordo com as necessidades da música (e talvez por isso o insignificante desencontro com o filme no final da terceira parte) e, quando possível, respeitando as necessidades no filme. O regente imprimiu rigor rítmico, densidade dramática (especialmente na quarta parte) e um clima angustiante de tensão na quinta parte, recebendo de seus músicos resposta à altura – o que acabou resultando num Potemkin realmente endiabrado. Foi uma bela noite de música no Municipal.
Programação do Municipal
Parece (quando se trata da programação do Municipal do Rio, nunca é bom usar termos que demonstrem certeza…) que as óperas do Municipal para o segundo semestre vão mesmo sair: o programa duplo que inclui Erwartung e Suor Angelica, e também Billy Budd.
Leonardo Marques
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