UMA MÚSICA QUE SEJA COMO VENTO. CRÍTICA DE FABIANO GONÇALVES DO CONCERTO DA OSESP NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

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Alguns lugares parecem sagrados, encantados – é assim a Sala São Paulo, na capital paulista. Além de sua magia arquitetônica e acústica, o antigo edifício da Estrada de Ferro Sorocabana abriga um dos mais expressivos grupos musicais do país: a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Nascida em 1954, a Osesp é um gigante de talento e profissionalismo – características demonstradas no concerto da série Jequitibá, ocorrido na tarde de 1º de junho. Regidos pela jovem mexicana Alondra de la Parra (foto no post), os músicos deram vida e pungência às notas do papel.
A apresentação teve início com o poema sinfônico Paraísos Artificiais (1910), obra do compositor português Luís de Freitas Branco (1890-1955), considerado um dos principais protagonistas do movimento de renovação da música lusa no início do século XX. Inspirada no livro Confissões de um Comedor de Ópio (1821), do escritor romântico inglês Thomas De Quincey, por via da adaptação realizada por Charles Baudelaire em Les Paradis Artificiels (1860), a peça descreve os prazeres e torturas associados ao consumo da substância. Além de ecos impressionistas, a composição, cinematográfica e evocativa, tem um quê do húngaro Miklos Rózsa (1907-1995), compositor de peças eruditas e de trilhas sonoras como El Cid (1961, direção de Anthony Mann) e Quando Fala o Coração (1945, Alfred Hitchcock).
A regência vigorosa e de gestos largos abriu espaço para a participação da soprano paraense (radicada na Holanda) Carmen Monarcha. Coube a ela dar voz aos Cinco Poemas de Vinícius de Moraes, obra encomendada pela Osesp ao compositor carioca João Guilherme Ripper, por ocasião do centenário de nascimento do poeta, e cuja estreia havia ocorrido na récita de 30 de maio. O próprio compositor revela uma das mais difíceis facetas do trabalho: escolher os textos: “Foram necessários vários mergulhos em sua antologia poética para descobrir que, a despeito dos diferentes estilos, métricas ou técnicas, em toda a sua poesia pode-se identificar a voz clara e inconfundível de quem escreve com a própria vida”.
Os textos do Poetinha (valorizados pela projeção dos versos em uma tela) ganharam uma sombra de melancolia com as notas de Ripper, e, já na primeira canção (Uma Música que Seja), as orquestrações sobrepõem em beleza a linha melódica da soprano – mesmo com a interpretação intensa e a emissão clara e articulada da cantora. A segunda peça, a autobiográfica O Poeta Aprendiz, é sincopada e serelepe, e acompanha com graça os versos “sonhar o poeta / que quem sabe um dia / poderia ser”.
O célebre e apaixonado Poema dos Olhos da Amada é a mais bela obra do ciclo e derrama lirismo entre versos como “Ah, minha amada / De olhos ateus / Cria a esperança / Nos olhos meus / De verem um dia / O olhar mendigo / Da poesia / Nos olhos teus”. De colorida escrita orquestral, a quarta canção, Lapa de Bandeira, fala do bairro carioca e explora as regiões mais graves da voz da soprano. Encerrando o conjunto, a quinta canção, A Partida, tem mais presente a percussão: “Ao escrever a música, carregada de percussão, procuro recriar a atmosfera de um ritual afro, parte importante de sua [de Vinícius] mitologia plural”, declarou Ripper. Mais uma vez, a elegante escrita do compositor é como revigorante lufada de vento fresco.

O gigante desperta

Toda a grandiosidade da Osesp vem à tona com a última peça do concerto: a Sinfonia no 7 em Lá Maior, Op. 92, composta em 1811 por Ludwig van Beethoven (1770-1827). A atuação do grupo foi impecável na intensidade e nos andamentos da obra desse genial compositor. A regente Alondra conduzia os músicos com a graça de uma amazona cavalgando pelas notas da composição e presenteava o público com uma obra vívida e colorida.
O conhecido segundo movimento (Allegreto), considerado uma das obras-primas do alemão, teve ritmo preciso e tempo justo, alternando momentos ensolarados com instantes um pouco mais sombrios – como se encobertos por nuvens. O terceiro movimento (Presto) foi realizado com desenvoltura por oboés, clarinetes e flautas, e ainda continha bonitos solos dos metais. O quarto e final movimento (Allegro con brio) mostrou a excelência da percussão e a densidade do som das cordas. Apenas orquestras com a grandeza da Sinfônica de SP têm a capacidade de revelar o quanto de exuberância há em uma suposta obviedade como Beethoven. O trabalho de precioso artesanato desse grupo é como o de um restaurador que, ao retirar, aos poucos, camadas de sujeira e tinta acumuladas sobre a tela, tem o poder de trazer aos olhos o brilho e os coloridos matizes de um inesquecível Rembrandt. E o melhor de tudo: a Osesp é nossa. Bravi!

Fabiano Gonçalves

Fonte: http://www.movimento.com/

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