A ÓPERA EM RISCO. ARTIGO DE HENRIQUE MARQUES PORTO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

                           Afinação alta das orquestras é nociva para as vozes
e pode comprometer o futuro da ópera

por Henrique Marques Porto




O público de ópera está, aparentemente, alheio ao problema. Quase sempre está mais interessado apenas no prazer, no deleite ou simplesmente no entretenimento que a música pode proporcionar. Não tem sabido perceber que, muitas vezes, por trás do mal desempenho de um cantor ou cantora está não o erro ou a falta de talento e musicalidade, mas um problema bem mais grave: a altíssima tonalidade das orquestras, que força para cima as notas de passagem e provoca desordem na técnica e na linha do canto –isso quando não leva ao colapso da voz e ao fim do sonho de carreiras que acabaram de se iniciar.

O "La Verdiano"

O tema vem sendo debatido desde os tempos de Giuseppe Verdi, o primeiro grande compositor a levá-lo a sério e a se manifestar por carta em 1884. Diz respeito à altura da afinação das orquestras. Na época de Verdi e anteriores os compositores adotavam uma afinação, ou um diapasão, em média de 432Hz (uma indicação da frequência da vibração do som por segundo, medida em Hertz).

Pois a partir do auge do romantismo, sobretudo com Wagner e Lizt, a frequência foi aumentada para 440Hz. Ótimo para as orquestras, cuja sonoridade ficava mais brilhante numa tonalidade mais alta. Wagner, especialmente, se beneficiava deste efeito. A frequência mais alta foi rapidamente adotada pela maioria das orquestras. Isso ainda no século 19.
Mas e os cantores de ópera? Como ficaram nessa história? Bem mal. A frequência mais alta, em 440Hz ou mais, corresponde a uma afinação da orquestra também mais alta, que pode chegar a meio tom a mais. Parece pouca coisa, sequer perceptível mesmo por ouvidos acostumados à música. Mas faz uma diferença enorme para as vozes, frágeis instrumentos humanos que têm limites, e que não são feitos de metal ou de madeira.

Em geral, os instrumentistas não se preocupam muito com o tema, a não ser por razões que não têm a ver propriamente com música, mas com filosofia (se é que podemos chamar assim), crenças e esoterismo. É que essa história de frequência a 432Hz é muito mais antiga do que Verdi e o romantismo e já era tratada pelas culturas da antiguidade. O famoso "OM" da cantoria em nota única da Yoga é em 432hz. Por que? Porque 432 Hz corresponderia à vibração da terra, sendo portanto um som que está em relação harmônica com a natureza e com o homem. Enfim, seria uma vibração natural. Mas o que interessa aqui é saber em que medida isto afeta o canto lírico e o desempenho dos cantores.

Afeta, e muito. Vejam aí nos vídeos os depoimentos de Renata Tebaldi e Piero Cappuccilli. Este exemplifica cantando um trecho de "Oh, de verdani miei", do Ernani, de Verdi, mostrando as notas de passagem (da região grave para a média, e desta para a região aguda). Ao fim, exclama: "-E tutta un'altra storia!". Renata Tebaldi era contundente em relação ao problema. Incluía nos contratos que assinava uma cláusula que obrigava as orquestras a obedecerem a afinação natural, em 432Hz. Caso contrário, não cantaria.

Lyndon LaRouche, o conhecido eonomista e pensador americano, puxa a fila entre os intelectuais que defendem o "retorno ao LA verdiano". Cantores como Luciano Pavarotti, Placido Domingo, Monserrat-Caballé, Joan Sutherland, Carlo Bergonzi, Christa Ludwig, Birgit Nilsson e dezenas de outros também se manifestaram, além de maestros como Richard Bonynge, Luciano Chailly, Gianandrea Gavazzeni ou Rafael Kubelik.

Atualmente, quase tudo o que ouvimos em mp3, CD ou DVD tem afinação a 440Hz ou acima. Placido Domingo afirma que as orquestras americanas adotam esse padrão, e que nas orquestras européias a tonalidade é ainda mais alta, se aproximando de 450Hz.

Política

Em 1936, Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, baixou decreto nazy estabelecendo 440Hz como padrão a ser adotado na Alemanha e também no mundo. Em 1939 convocou conferência internacional em Berlim para decidir sobre o tema. Apesar da ausência de representantes da França e de um abaixo-assinado com a assinatura de vinte mil músicos contrários a afinação a 440Hz, ela foi aprovada. Em 1978, a ISO (International Organization for Standardization), com apoio das gravadoras é claro, ratificou a decisão de Berlim. A reação veio em 1988, quando o parlamento italiano aprovou decreto restabelecendo naquele país o padrão 432Hz. Mas a lei caiu no vazio.


O alerta de Carlo Bergonzi


Em 1993, numa entrevista ao site do Instituto Schiller, o tenor Carlo Bergonzi falou sobre o problema, que definiu como uma ameaça real ao futuro da ópera. Abaixo, estão selecionados alguns trechos. A íntegra pode ser lida em:
 
 
 
 
“Gostaria de explicar isso porque são nossos jovens que estão em jogo. Se você está estudando canto nesta afinação alta, você altera todo o espectro vocal. Se você canta a nota de passagem em F, na verdade você está cantando um F♯, que desloca a técnica inteira em meio-tom, desde as notas baixas, as da região média e as notas altas. Não é a posição natural.”
*
“O grande maestro Tullio Serafin disse uma vez durante um intervalo de Il Trovatore, em uma conversa entre amigos: "eles estão começando a subir o ajuste, e estou triste com uma coisa: chegará o dia em que verdadeiros cantores já não serão ouvidos. Em vez de tenores, eles ouvirão castrati!" Eu acho que o Maestro Serafin era um profeta.“
*
“A tonalidade verdiana é a que precisamos para desenvolver as vozes jovens, e se nós retornarmos a ela voltaremos a ouvir as grandes vozes que existiram em um tempo. Caso contrário poderá ser o fim da ópera.”
*
“Quando eu estreei, existiam 100 tenores de primeira categoria e 100 no segundo plano. E os da segunda fileira naquele tempo eram melhores do que os tenores de primeira linha de hoje, por causa da questão do ajuste. Não digo isso para insultar ninguém, mas para salientar: o que mudou hoje? A tonalidade! Em 1951 existiam 200 grandes tenores. Hoje, existem dois e meio!”

Outro documento importante são trechos do discurso de Renata Tebaldi na Casa Verdi, em 1988.

“Agora me pergunto porque desapareceu do mundo a cor da voz de mezzo-soprano; por que já não temos mais barítonos que cantem desdobrando e expandindo a voz, com a cor do barítono autêntico. Todos são barítonos de vozes ‘brancas’, que fazem menos esforço para cantar, pois tendo menos voz do que os outros, eles têm menos dificuldade para subir e superar o obstáculo da afinação da orquestra. Desapareceu o baixo profundo; encontrar hoje e dia um ‘Sparafucile’para o Rigoletto é impossível; recorre-se a vozes que podem cantar como baixo, mas sem corpo, que não dizem nada. Para não falar do contralto, que saiu de circulação."



A íntegra em:

A carta de Verdi


“Senhores,
Desde que foi adotado em França o diapasão normal (então fixado em 435 Hz), eu aconselhei que o exemplo fosse seguido por nós; e recomendei formalmente a orquestras de diversas cidades da Itália, como a do alla Scalla, que diminuíssem o diapasão, uniformizando-se com a norma francesa. Se a Comissão Musical instituída pelo nosso governo acredita, por recomendação científica, na redução de 435 vibrações do coro francês para 432 -a diferença é muito pequena, quase imperceptível ao ouvido-, eu concordo voluntariamente. Seria grave, um gravíssimo erro, adotar um diapasão de 450 vibrações, como Roma propõe. Eu sou de opinião que a diminuição do diapasão em nada afeta a sonoridade e o brilho da execução; mas dá, ao contrário, algo de nobre, de mais pleno e majestoso do que pode dar os estrilos de uma afinação muito aguda. De minha parte gostaria que uma só afinação fosse adotada em todo o mundo musical. A linguagem musical é universal: por que então a nota que tem nome “La” em Paris ou em Milão deveria tornar-se um “Si bemol” em Roma?”
(Genova 10 de fevereiro de 1884)

A idéia desse artigo é reunir algumas informções e expor o tema ao público brasileiro, ainda que de forma breve e resumida. Thiago Arankam, o tenor brasileiro que vem fazendo carreira no exterior, já se manifestou em sua página no Facebook. “E por que nunca ouvem o que dizem os cantores?” –escreveu Arankam em caixa alta.

Não ouvem talvez porque o público da ópera ainda está pouco informado sobre o assunto e, portanto, não formou nenhum juízo a respeito. Sozinhos os cantores nada poderão fazer contra o poder do mercado da música e os interesses comerciais dos grandes teatros e das grandes orquestras. Ainda que esses cantores tenham o porte e o respeito que tinham Renata Tebaldi, Carlo Bergonzi ou Piero Cappuccilli.

Fonte: The Schiller Institute (http://www.schillerinstitute.org/)
 

Comentários

  1. "Primeiro entram os músicos, depois entra o cantor". Começo com essa frase provocativa que já escutei saindo da boca de instrumentistas de fraque diveeeeeersas vezes ao entrar no palco. Para quem não está habituado com os concertos, os instrumentistas entram primeiro, fazem uma cena de que estão afinando e só depois entram cantor(es) e maestro.
    Devo fazer uma ressalva de que o que segue parecerá generalização, mas antes explico que conheço instrumentistas hiper lúcidos, raros, que não se encaixam nisto que colocarei aqui.

    Se vc pedir para um instrumentista de orquestra tocar abaixo de 440 (raro 440, já que no mínimo eles afinam em 442), ele se nega a tocar e ri da cara do maestro pelas suas costas e mais ainda do cantor, só que desse, na sua cara.
    Todos se compadecem do trompista quando ele desafina terrivelmente uma nota, por um reconhecimento quase corporativista da natural dificuldade da embocadura do instrumento, como se fosse óbvio fazer tal exceção à exigência. Como já ouvi outras diveeeersas vezes: “Ai, coitado! Putz, trompa é f***...”
    Porém, a classe instrumentista, QUE NÃO CONSIDERA CANTOR COMO MÚSICO, simplesmente por esse não ter o que digitar, nunca reconheceria a seriedade do tema desse texto.
    Bom, então estou dizendo que instrumentistas não respeitam cantores. Isso está claro. Maestros, por sua vez, são geralmente instrumentistas.
    Então...
    Pois bem, chegaremos no 460, e mais.
    Também, ouço muito isto: "Não existem mais cantores como esse tal, ou como aquele tal."
    Não existirão mais!
    Ah, e vamos lembrar de mais um detalhe para acabar de vez com a ópera: a afinação da orquestra sobe, enquanto a população aumenta sua estatura – todo mundo sabe disso, daí a troca das poltronas dos cinemas, dos aviões, dos ônibus, etc. Ou seja, o tubo (todo o trato vocal) está aumentando, ou seja, o som está ficando mais grave (quanto maior o tubo, mais grave o instrumento). Na contramão disso, as orquestras afinam mais alto, o que careceria do oposto daquilo que está acontecendo evolutivamente com os cantores.
    Mas é isso. Seguiremos ouvindo as provocações dos instrumentistas e penando para compensar o que suas vaidades trazem de prejuízo para a música, em todos os âmbitos.
    Lembrem daquela ressalva lá em cima, ok?

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  2. No que tange os comentário de Giuseppe Verdi, Renata Tebaldi e Carlo Bargonzi, concordo plenamente com eles. É quase impossível cantar atualmente com uma afinação tão alta. Geralmente que inicia a carreira no canto, não pode transportar a aria para um tom mais confortável, tem que cantar aos gritos e no tom. E se quiser cantar! É uma profunda ignorância a uma afinação tão alta, aja vista que as anuncias de qualquer melodia ficam diluídas num som estridente. Os contrabaixos somem nesta afinação alta (exagerada). Alem de prejudicar terrivelmente o cantor ou cantora

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  3. Realmente, os batedores sempre entram na frente, e não poderia ser diferente. Depois entra o personagem principal. A entrada é sempre por ordem crescente de importância.

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  4. É importante criar o assunto primeiro. Para isso temos que anuncia-lo sempre que possível. Quando o assunto ganhar ressonancia e todos tiverem afim de discuti-lo, ai temos que nos preparar par ao debate. Exemplo de conduta profissional como os "musicos" narrados na explanação do primeiro Anonimo, são reais. Mas se nos conseguir jogar o assunto no ventilador, eles vão ter que se enquadrar.

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