LÍCIO BRUNO - 25 ANOS DE CARREIRA. ENTREVISTA DE LÍCIO BRUNO CONCEDIDA A LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Baixo-barítono carioca completa um quarto de século nos palcos e concede extensa entrevista ao Movimento.com. Na foto, Lício como Falstaff.
Um dos grandes cantores líricos brasileiros, reconhecido pela crítica e sempre recebido com carinho pelo público, o carioca e filho de pernambucanos Lício Bruno Ramos de Araújo completa 25 anos de carreira, que ele conta a partir de sua estreia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1988, na ópera La Bohème, de Puccini. Além de excelente cantor, o baixo-barítono é um senhor ator, além de professor do Conservatório Brasileiro de Música (onde leciona interpretação cênica, dicção e técnica vocal) e empresário. Encontrei-o há poucas semanas em um começo de noite no Largo do Machado e ele falou abertamente sobre sua vida e sua trajetória.
Lício Bruno, que completará 49 primaveras em 23 de agosto, sobe novamente ao palco do Municipal do Rio, entre os dias 14 e 21 deste mês, para viver mais uma vez Wotan, em A Valquíria. Ele é o único cantor brasileiro a já ter interpretado o deus dos deuses da tetralogia O Anel do Nibelungo, de Wagner – seja em cada ópera apartada, ou no ciclo completo.
Infância, juventude e o interesse pela música
“Eu nasci no Rio de Janeiro e vivi a maior parte da minha vida aqui, tendo feito minha formação básica em colégios particulares. Mais à frente, concluí o Científico no Colégio São Bento. O Colégio São Bento é uma referência e o foi para mim também, principalmente pela sua linha filosófica, pelo aspecto didático e pedagógico, que acabam fazendo parte da formação do caráter de todos aqueles que tiveram a oportunidade de estudar lá, além do que é um colégio cristão, católico. Então há uma formação também moral e religiosa muito forte. Mais tarde, eu fui estudar Engenharia na PUC. Nessa época, eu já gostava de música, já cantava música popular e já tinha um grupo de MPB.
De 19 para 20 anos, descobri o Coral da PUC. O diretor era o maestro Roberto Duarte, e a maestrina assistente era a Lydia Podorolski, já falecida. A partir daí, comecei a cantar no coral e a me envolver com o repertório lírico, que comecei a conhecer de perto. Não que eu não conhecesse, porque meu tio, Luciano Araújo, em mais ou menos 1964, fez prova para o Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e foi admitido. Tornou-se colega de Godofredo Trindade, Ruth Staerke, Isabel Ramos, Carlos Dittert, Siléa Stopatto e de uma série de coristas hoje já aposentados.
Ele me levava ao Theatro Municipal, com três anos de idade. Assistia a ensaios a espetáculos no Theatro Municipal com cinco ou seis anos de idade. Eu me lembro de assistir a O Barbeiro de Sevilha e Cavalleria Rusticana. Meu tio me levava junto com minha irmã; nos colocava sentados no Balcão Simples e dizia: ‘não saiam daqui, quando terminar a ópera eu venho buscar vocês’. E antes de terminar a ópera ele aparecia. Então, embora eu não estudasse música erudita, já conhecia um pouco dessa música através do Theatro Municipal”.
Os estudos formais, os professores e o início da carreira
“Voltando ao Coral da PUC: eu passei também a ter contato com música clássica, de Bach até Verdi, Puccini, Donizetti, Mascagni, Rossini, e também Schubert, Schumann, Mozart. E aos pouquinhos fui adquirindo o gosto. Fui estudar com meu professor, o tenor chileno Victor Olivares, muito conhecido aqui no Rio de Janeiro por vários professores, e com quem eu permaneci estudando durante 13 anos. Ele foi o meu único professor de canto na minha formação básica de cantor. Estudei com ele entre 1982 e 1994, e junto com o trabalho de formação técnica e vocal com o professor Olivares, tive aula de repertório com a professora Leda Coelho de Freitas, já falecida, que foi professora de uma geração de cantores. Ela era a grande professora de interpretação e de repertório. Depois eu fiz aperfeiçoamento com outros mestres.
Outra pessoa que me incentivou muito no início da carreira, um dos ícones da nossa música, e que me convidou para a minha primeira Nona Sinfonia, o meu primeiro Réquiem Alemão, minha primeira Flauta Mágica como Papageno, foi o maestro David Machado, um dos grandes maestros com quem eu tive o privilégio de trabalhar. Outro grande nome, em termos de maestros, que testemunhou o início da minha carreira foi o maestro Henrique Morelenbaum, com quem tive o prazer de fazer, entre outras coisas, Il Campanello di Notte, de Donizetti (com direção de Sérgio Britto) e Judas em Sábado de Aleluia, que foi a ópera que inaugurou o CCBB, escrita pela Cirlei de Hollanda, uma compositora contemporânea com quem tive o privilégio de trabalhar e de me tornar amigo.
Antes disso, a primeira ópera da minha vida, numa produção semiprofissional, foi As Variedades de Proteu, com libreto de Antônio José da Silva, o Judeu, e música de Joaquim Antônio Teixeira. Eu fazia o personagem bufo, o Caranguejo. Produção do Conservatório Brasileiro de Música, onde hoje eu sou professor, com regência de José Maria Neves e direção de Amir Haddad, que, assim como o Sérgio Britto, é outro ícone do teatro”.
A estreia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro
“No ano de 1988, estreei no Theatro Municipal com duas óperas. Cantei o Alcindoro em La Bohème, de Puccini, tendo ao meu lado como Musetta a saudosa Diva Pieranti, que também dirigia aquela remontagem com cenários do Hugo de Ana. Esta La Bohème contava no elenco com Ruth Staerke e Leila Guimarães, interpretando Mimì – Leila, uma voz maravilhosa, que na época tinha acabado de vencer o Concurso Pavarotti e tinha cantado Mimì ao lado do Pavarotti; e a Ruth, que eu tinha conhecido há pouco tempo e que se tornou uma amiga, uma irmã e uma referência para mim.
Cantei também no elenco nacional de O Barbeiro de Sevilha, como Don Basilio, regido pelo ‘meu’ maestro da PUC, Roberto Duarte, numa coincidência gratíssima. Ele era o regente desse elenco nacional, do qual fazia parte também um grande barítono carioca, que é meu querido amigo e uma pessoa que faz parte dessa minha história: o Inácio de Nonno, que fazia o Dr. Bartolo. Outro nome importante desse elenco é o Marcos Thadeu, que fazia o Conde Almaviva. Hoje, além de cantor, ele é preparador vocal do Coro da OSESP e professor universitário de canto em São Paulo. E a direção do Barbeiro era do Gianni Ratto, outro monstro do teatro”.
Influências
“Em 1989, fiz o Concurso Internacional de Canto do Rio de Janeiro, e ganhei um prêmio especial como melhor cantor brasileiro. Além disso, o Theatro Municipal montava Rigoletto, estrelado pelo Fernando Teixeira. Era uma megamontagem do Hugo de Ana e, no palco, chovia literalmente durante o último ato. Eu cantava o Monterone, ao lado do Fernando Teixeira, e depois ia para a coxia aprender a parte do Rigoletto, que eu só viria a cantar muitos anos mais tarde. Outro ícone, com quem tive a oportunidade de trabalhar e depois me tornar amigo foi o Paulo Fortes. Foi um privilégio que os cantores da minha geração tiveram de conviver com esses dois barítonos ícones da ópera brasileira, dois nomes internacionais. O Paulo com uma voz lindíssima de barítono lírico, um barítono leve, com um legato impressionante. E o Fernando Teixeira com uma das mais belas vozes de barítono dramático que eu já ouvi na vida.
Nesse meio tempo, houve o retorno do Nélson Portella ao Rio de Janeiro. Ele voltava da Itália, depois de cantar óperas pelo mundo, tendo gravado várias coisas pelo selo Decca, como Tosca e O Barbeiro de Sevilha. Nélson foi trabalhar no Conservatório Brasileiro de Música e montou lá um grande núcleo de ópera. Quando ele montou Turandot na Praça da Apoteose, convidou-me para fazer o Timur. Na época, eu cantava predominantemente papéis de baixo cantante e de baixo-barítono. Só mais tarde, à medida que minha voz foi amadurecendo e demonstrando essa possibilidade de abranger um repertório de barítono dramático, é que eu passei a desenvolver esse repertório. De 1988 até 1993, 1994, eu cantei predominantemente esse repertório de baixo-barítono. Não só cantando ópera, mas também obras sinfônicas, como a Sinfonia n° 9 de Beethoven, Réquiem Alemão, muitos Messias, com a Petrobras Sinfônica (na época Petrobras Pró-Música) e o saudoso Armando Prazeres”.
A fase húngara
“Em 1994, eu cantava minha primeira A Viúva Alegre no Rio de Janeiro, com o maestro David Machado e direção cênica do Osvaldo Loureiro. No começo de 1995, enviei documentação para tentar uma bolsa da Fundação Vitae, para estudar em Budapeste na Academia Franz Liszt, e consegui. Fui pra lá em setembro de 1995, e encontrei o professor Zsolt Bende, que não era muito conhecido no Brasil, embora tivesse sido banca do Concurso Internacional de Canto no Rio de Janeiro na década de 60. Ele era um barítono ainda em atividade na Ópera Estatal Húngara, era um exímio estilista e era também professor da Andrea Rost (soprano húngara), que na época estreava no Scala de Milão como Gilda em Rigoletto. Fui estudar com esse homem que tinha um conhecimento muito grande de refinamento vocal e que mexeu um pouco na minha técnica, me dando um pouco mais de brilho, de leveza e de agilidade vocal, um pouco mais de máscara, de frente, de frontalidade na voz. Isso foi de 95 a 98, quando ele faleceu.
Em 1998, fiz um concurso internacional (Budapest International Singing Competicion La Bohème), que consistia em prêmios para participar de uma montagem de La Bohème na Ópera Estatal Húngara em algumas récitas. Concorri para a parte de Marcello e venci. E não só atuei nessas récitas, como, a partir do ano seguinte, passei a integrar o elenco da Ópera Estatal Húngara, deixando de ser aluno na Academia Franz Liszt. Para não perder a bolsa, fui aceito na primeira turma do Opera Studio da Ópera Estatal, ou seja, além de contratado da Ópera, eu continuava gozando dos recursos da bolsa como aluno do Opera Studio e aprendendo mais e mais.
Nesse período, embora eu já fosse profissional, sempre vindo ao Brasil para cantar, existia ainda essa minha condição de aluno, mesmo sendo num curso equivalente a uma pós-graduação. Eu permaneci apenas mais um ano com a bolsa da Fundação Vitae, e como eu não poderia mais permanecer em solo húngaro, porque, com o fim da bolsa, encerrou-se também o período do meu visto de estudante, no ano seguinte me transferi para Milão, encerrando meu período como membro da Ópera Estatal Húngara. Isso foi, mais ou menos, no início de 2000. Deixei de receber um valor fixo por apresentação como membro da Ópera, mas continuei cantando em Budapeste como convidado, e aí passei a ganhar aproximadamente três vezes o que eu ganhava antes, além de passagens, hospedagem, etc. Essa minha relação com a Ópera Estatal Húngara foi longa, porque durante cerca de dois anos eu fui membro da Ópera, e entre 2000 e 2008 eu me apresentei lá como convidado em óperas como Don Pasquale, Così fan tutte, I Pagliacci, Tannhäuser e La Bohème”.
Momentos marcantes
“Em 1997, na época do Emílio Kalil, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro me chamou para fazer o Tonio, de I Pagliacci, e este foi um grande sucesso. Outro momento marcante foi o Tannhäuser de 2001 também no Theatro Municipal, meu primeiro Wagner. Foi uma surpresa para mim mesmo eu ter conseguido um nível musical bom. E tenho certeza que isso se deve muito a uma cultura wagneriana que existe na Ópera Estatal Húngara, onde eu encontrei um grande correpetidor, o Tamas Sálgo, hoje grande amigo, que me ensinou muito do canto wagneriano. Como eu já morava em Milão nessa época em que me preparei para o Tannhäuser, outra pessoa que me ajudou muito foi um maestro correpetidor chamado Lucca Pavanati, um milanês que tinha voltado para a cidade recentemente, depois de ficar em um teatro alemão durante os cinco anos anteriores, e então ele vinha com uma bagagem de ópera alemã muito boa. A regência aqui no Rio foi do Karl Martin, um especialista nesse repertório.
Mas eu devo essa oportunidade ao maestro Luiz Fernando Malheiro, que acreditou na minha potencialidade e me elencou para o papel de Wolfram nesta ópera. Não só isso: terminado o Tannhäuser, me convidou para iniciar o ciclo do Anel em Manaus, cantando A Valquíria, que foi a primeira ópera do ciclo que eu cantei, como Wotan, em 2002. Em 2003, fizemos o Siegfried, em que cantei o Wanderer, Wotan em trajes de andarilho. Em 2005, fizemos não só O Ouro do Reno, como todo o Anel em dois ciclos completos. Ou seja, em maio de 2005, cantávamos no sábado O Ouro do Reno; no domingo, sem descansar, A Valquíria; descansávamos segunda e, na terça, Siegfried: ou seja, em quatro dias, eu cantava o Wotan inteiro do Anel. E isso duas vezes, duas semana consecutivas.
Foi uma experiência indescritível. Acho que se eu ficasse falando aqui por horas sobre o ciclo do Anel, eu não falaria tudo, mas algumas coisas merecem ser pontuadas. Pela primeira vez no Brasil, um teatro de ópera, através de um diretor artístico, Luiz Fernando Malheiro, acreditou nessa ‘loucura maravilhosa’ e na capacidade dos cantores brasileiros de realizar um bom trabalho em Wagner e no Anel. Evidente que em alguns papéis-chave nós tínhamos cantores estrangeiros, mas no início, em 2002, nós tínhamos Eduardo Álvares cantando um Siegmund maravilhoso, Laura de Souza como Sieglinde, a Fricka de Céline Imbert, eu como Wotan e todas as valquírias brasileiras. Cito algumas que continuam fazendo carreira, como Gabriella Pace, Edna d’Oliveira, Adriana Clis e Luísa Francesconi, só para citar alguns nomes. Rosana Lamosa não só foi uma das valquírias e filha do Reno como cantou o Pássaro do Siegfried; José Gallisa fez o Fafner, Stephen Bronk, residente no Brasil, era Fasolt; Pepes do Valle fez um excelente Alberich. Cerca de 75% a 80% do elenco era nacional, o que não é pouco. E além disso, foi criada uma Central Técnica de Produções em Manaus e a Amazonas Filarmônica foi aumentada. Para completar, tínhamos a presença do diretor cênico Aidan Lang, que nos brindou com uma concepção excepcional da tetralogia.
Falando do Aidan, eu me lembro do André Heller-Lopes, com quem eu vou trabalhar agora nessa remontagem da Valquíria (original do Municipal de São Paulo) no Rio de Janeiro. Com o André, tem uma coisa marcante da minha carreira que foi o meu primeiro trabalho profissional com ele, embora eu o conhecesse desde antes da minha estreia no Municipal, porque nós participamos juntos de montagens de óperas promovidas pelo Amauri René, e o André, ainda muito jovem, também cantava e participava dessas montagens. Eu fui convidado pelo maestro Jamil Maluf para fazer o Gérard do Andrea Chénier, que teve direção do André, e esse trabalho foi um marco na minha carreira e foi um trabalho muito elogiado em São Paulo.
Outro momento marcante foi quando cantei em São Paulo os quatro vilões de Os Contos de Hoffmann, em 2003, a convite do maestro Jamil Maluf, um dos grandes maestros com quem eu tive o privilégio de trabalhar. O Jamil tem um respeito extremo, um cuidado, um zelo com a partitura, com o estilo e tudo que o compositor escreveu. Ele vem de uma formação musical austera na Alemanha. Aprendi com ele a ler mais a partitura. Eu quero dizer não só as notas, não só a dinâmica, mas as entrelinhas, aquilo que o compositor deixa impregnado na escrita. E o Jamil me ofereceu a oportunidade de fazer esta montagem, dirigida com esmero pelo Jorge Takla, muito embora três anos antes eu já tivesse feito outra versão dos Contos de Hoffmann com o Malheiro no Festival de Campos do Jordão, numa proposta de encenação minimalista, concebida pelo Iacov Hillel. Mas em Campos de Jordão foi apenas uma noite e em São Paulo foram cinco récitas, com presenças especialíssimas do Fernando Portari no papel de Hoffmann, e da Denise de Freitas como Nicklauss, exibindo uma voz lindíssima e uma competência enorme. Acabei, ao lado de Denise, por receber o Prêmio Carlos Gomes 2004, graças a essa montagem do Hoffmann. Cantei também os quatro vilões em Bogotá, além de ter interpretado a ária do diamante em concertos com a Orquestra Estatal Húngara na chegada do novo milênio”.
A vida para os cantores líricos no Brasil
“Grandes cantores, colegas meus, conseguem viver de nossa arte no Brasil. Eu tenho conseguido e agradeço a Deus, aos companheiros, colegas de trabalho, que têm me oferecido e me confiado sucessivas oportunidades importantes nos grandes palcos do país. Por isso, tenho falado nessa entrevista de minha relação com vários desses artistas ao longo de minha trajetória. Sem esta relação de parceria e amor à arte e à música, eu pouco ou nada teria alcançado, e nem poderia viver de arte aqui! Entre estes, um dos maestros com quem eu tenho trabalhado nos últimos anos (eu digo nos últimos anos porque a primeira vez em que eu trabalhei com ele, se não me engano, foi em 2008) é o maestro Sílvio Viegas, que hoje, além de ser um maestro com quem eu tenho enorme prazer de conviver e trabalhar, é um querido amigo.
É claro que pode se tornar difícil você conseguir se manter no Brasil, porque o Brasil tem muitos problemas e pouca memória, e não falo só da memória da ópera, mas da memória em todos os níveis (histórica, política, cultural e até a futebolística). É possível viver no Brasil se você estiver muito consciente da opção que você fez e, evidentemente, sempre que possível viajando ao exterior para cantar também”.
Cantor internacional
“Há uma diferença que se faz pouco no Brasil. Aqui considera-se erradamente cantor lírico internacional o cantor que mora no exterior. Cantor internacional é aquele que realiza e está capacitado para realizar trabalhos musicais em qualquer teatro ou sala de concerto do mundo. Só que a leitura que se faz disso, geralmente, não é essa. Se um cantor brasileiro é um cantor internacional, mas reside no Brasil, então para muitos ele deixa de sê-lo. E o cantor que não é internacional, mas que está morando no exterior por algum motivo qualquer, é chamado de internacional. Não é incrível? Então para ser internacional tem que se residir fora de seu país?”
Sobre personagens
“Parece mentira, mas todo personagem que a gente está fazendo naquele momento vira um favorito, porque a gente se dedica e ele de corpo e alma. Mas existem aqueles que te dão um retorno maior. Eu posso citar os quatro vilões de Hoffmann como personagens favoritos pra mim, assim como o Scarpia (Tosca), papel em que eu estreei há pouco tempo no Rio; Rigoletto; Wotan (ainda que seja difícil, é um preferido); Escamillo (Carmen), que foi o primeiro personagem que eu cantei na Hungria, numa cidade chamada Szeged (eles fazem um festival no verão em praça aberta, para um público de quatro, cinco mil pessoas); Iago, que eu cantei em Bogotá e também no Festival Amazonas.
Há um que eu não cantei, nem estudei ainda, mas é um favorito que eu ainda gostaria de cantar: Wozzeck. E outros que eu gostaria de cantar são Golaud (Pelléas et Mélisande), o Holandês (O Holandês Errante/O Navio Fantasma), Amfortas (Parsifal). Não sei quando e se irei cantar esses personagens, mas são os que me interessam. E também Hans Sachs (Os Mestres Cantores de Nuremberg), que eu também nunca estudei e seria um grande desafio, fazê-lo com propriedade, compreendendo a profundidade do caráter do personagem”.
O ator
“No início da minha carreira, tive a oportunidade de trabalhar com Sérgio Britto, Amir Haddad, Ewerton de Castro, Pedro Paulo Rangel, Jacqueline Laurence, Eduardo Tolentino (do Grupo Tapa), Moacir Chaves (com quem eu não trabalhei diretamente, mas que conheci no começo da carreira), Denise Fraga (que conheci antes de ela estourar como atriz, fazendo um trabalho muito bonito com o Grupo Tapa). Eu sempre fui muito interessado no teatro de prosa, não só na ópera, e com isso assisti a montagens de Fedra, Rei Lear, Lágrimas Amargas de Petra von Kant, O Avarento, e tantas outras que pude ver aqui no Rio de Janeiro e que marcaram uma época.
Muitas vezes, em obras como, por exemplo, as óperas wagnerianas, ou como Aida, como Il Trovatore, as cargas psicológica e dramática contam muito para a interpretação dos personagens. No grande palco, onde o excesso de movimentação às vezes prejudicaria a boa performance do cantor, é delicado esse enfoque dramático, porém extremamente necessário. Existe uma maneira específica de trabalhar o ator/cantor; existe uma forma, que é diferente do teatro de prosa, de ser este ator/cantor, porém é necessária essa experiência de prosa. Tive a oportunidade de participar de alguns trabalhos, onde além de atuar como cantor, também atuava como ator. Um deles, mais atual, eu fiz em 2010 dividindo o palco com Ruth Staerke: Amor por Anexins, texto de Artur Azevedo, com direção de Gustavo Ariani, que a gente adaptou, entremeando com passagens de ópera, criando uma burletta musical. Mas era um trabalho essencialmente teatral.
Sem qualquer pretensão de querer me comparar com algum ator de prosa, esse exercício do ator, orientado por grandes diretores, é uma oportunidade que você tem de desenvolver essa ‘porção ator’. Existem técnicas específicas para o teatro de ópera e que muitas vezes os diretores do teatro de prosa dominam, tanto é que eles se tornam – não sempre, mas em alguns casos – capacitados para fazerem ópera. Eu poderia citar alguns excelentes brasileiros, como Iacov Hillel, Jorge Takla, José Possi Neto, entre outros. Mas a formação do ator é necessária, é importante que o cantor compreenda a necessidade de se entender com o personagem, e saber como desempenhar e como ‘vestir’ cada personagem. É muito difícil falar sobre isso, mas existe uma escola dramática de ópera e alguns diretores de ópera têm essa capacidade de extrair do cantor aquilo que precisa ser extraído. Até mesmo o maestro precisa ter um entendimento da psicologia de cada personagem.
Como um intérprete que se preocupa com isso, a minha formação não foi exatamente formal. Eu fiz cursos de teatro com Fernando Peixoto e Antônio Mercado, e tive o privilégio de ter trabalhado com pessoas que extraíram o máximo de mim, não só diretores de ópera, como diretores de teatro que fazem ou faziam ópera também: Amir Haddad, Sérgio Britto, Jorge Takla, José Possi Neto, Aidan Lang, André Heller-Lopes – este especificamente um diretor de ópera e com um entendimento dramático muito profundo e muito claro, que sabe extrair muito de um cantor de ópera. E a música te orienta, porque a música é muitas vezes o termômetro de cada cena. Esse é um tema maravilhoso e abrangente, porque existem várias formas de se montar um espetáculo. Você pode montar de forma minimalista, de forma realista, naturalista, expressionista, dentre outras várias linguagens e abordagens teatrais”.
Wotan
“O Wotan, na minha concepção, é o grande dilema do homem moderno, que busca poder, muitas vezes o alcança, mas nem sempre consegue conciliar poder e felicidade. A Valquíria e O Anel como um todo podem ser montados a partir de um viés realista, ou de um viés psicológico. Você pode fazer o trabalho sob uma ótica psicológica, abordando esses seres vivendo um drama absolutamente psicológico. Eu gosto da ideia de ter O Anel como uma grande alegoria de uma sociedade em transformação. Nos nossos dias, é muito claro que a nossa sociedade está se transformando e buscando o desenvolvimento, mas às vezes pagando um preço muito caro, desenvolvendo-se em determinados aspectos e regredindo em outros. Wotan é esse dilema: como o homem em seu aspecto masculino dentro desse processo, assim como há as personagens femininas com os seus dramas. Wotan é o dilema entre poder e felicidade/amor”.
O Lício professor
“Como professor, procuro ser muito exigente com os meus alunos, talvez só um pouco menos exigente do que sou comigo mesmo. Acredito que é preciso incutir no jovem que deseja e que anseia seguir um caminho como cantor erudito um senso de responsabilidade, e isso você só incute ensinando para eles disciplina. Sou um professor que procuro orientar os meus alunos para atitudes de rigor, de disciplina e de respeito à música. Não acho que o mais importante seja formar divos e divas, mas que nós tenhamos em mente que a formação desse jovem cantor seja uma formação onde ele possa colaborar como artista para a transformação social num mundo mais justo e mais equilibrado. Para isso, ele tem que ter cuidado com o ego, da mesma forma que eu, como cantor, procuro manter esse exercício. Não é fácil, porque a gente está em evidência, e por outro lado é necessário um pouquinho de ego, pois do contrário a gente não subiria no palco.
É preciso saber caminhar com cuidado e atenção, e lembrar que não é apenas ter uma bela voz e uma bela técnica que vai fazer de você um grande cantor. É preciso que você tenha uma cultura geral de boa dimensão, é preciso que você fale línguas, estude-as pelo menos e as tenha como ferramentas. Além de português, falo inglês, italiano e espanhol; entendo húngaro e francês; estudei alemão e canto em alemão entendendo perfeitamente o que estou cantando.
Procuro ser um professor também que não se considera dono da verdade, eu não acho que a minha forma de ensinar, ou a minha técnica, ou a minha forma de cantar é única. Acho que existem duas formas de cantar, a boa e a ruim, a que funciona e a que não funciona. Eu procuro aprender a cada dia, como orientador e professor, com o mundo, com a ciência, com o teatro e com os meus próprios alunos. Nem tudo que a gente faz funciona bem, então a gente está sempre aprendendo. E não existe o artista completo, a gente é um work in progress, está sempre se desenvolvendo”.
O empresário
“O Lício empresário é um assessor da minha sócia. Inez Schachter é a grande responsável pela Pauta Produções. Ela é a Diretora Geral, a Manager da nossa agência. Eu procuro fazer as vezes daquele cantor que tem experiência e que procura orientar não só o caminhar da agência, mas também o caminhar de alguns artistas. Nós buscamos sempre uma ênfase nos jovens artistas, então estamos sempre procurando novos valores. Mas não acho que esse viés de Manager seja um viés que me vista tão bem, não combina muito com o artista, então eu prefiro ficar mesmo como assessor da minha sócia”.
Deus
“Muitas pessoas pensam que ser religioso é ter um determinado tipo de comportamento ou fazer determinado tipo de coisa todo dia. Eu procuro pregar o evangelho sempre que posso, eu vou à igreja, eu sou um membro da igreja. Mas ser religioso e, principalmente, ser cristão é ser uma pessoa que acredita num Deus que se fez homem e que, de maneira misteriosa, viveu uma paixão, e com sua morte nos absolveu de nossas mazelas humanas, os pecados. É muito difícil falar de Deus, porque cada um tem a sua convicção religiosa. Eu procuro respeitar a convicção religiosa de todos, até mesmo para que respeitem a minha.
Sou uma pessoa muito feliz nessa caminhada, buscando estar próximo de Deus através da interseção de Jesus na minha vida, e sinto que sou um homem novo. Não acho que sou perfeito por causa disso. Eu sou uma pessoa como qualquer outra, cheia de dúvidas, de questões, de erros e de acertos, mas uma convicção eu tenho: Cristo veio a esse mundo para nos mostrar o caminho. A gente não só deve anunciar a palavra d’Ele, sempre respeitando a crença dos outros, mas buscar praticar isso, o amor, a bondade, a tolerância, o respeito, a honra, a moral, a ética e o servir. Eu não estou fazendo o meu trabalho para ser servido, eu estou fazendo o meu trabalho no palco para servir à minha sociedade e, principalmente, servir ao reino de Deus, que é um reino onde todos merecem ser tratados igualmente e buscam esse respeito mútuo, para viver em harmonia”.
Manifestações nas ruas
“Acompanho, como cidadão e artista profissional, há muitos anos, desde a época das ‘Diretas Já’, como se tratam os orçamentos gerais e também o da cultura em nosso país. Creio que esta onda de manifestações demonstra um anseio, um desejo de todos os brasileiros por mudanças estruturais na política de administração do dinheiro público, com uma maior transparência dos respectivos orçamentos federal, estadual e municipal, nas mais diversas áreas: saúde, educação, saneamento, transporte, cultura, entre outras.
Isso é natural e saudável em um país como o nosso, que cresce e amadurece. Penso que nossos governantes, bem como nossa elite social e cultural, precisam rever posturas e formas de tratar e se relacionar com o bem público, o dinheiro público, pois a administração pública deve ser feita com responsabilidade social, já que é o dinheiro de todos nós que constrói o Brasil. Por isso mesmo, os investimentos devem sempre privilegiar a educação, a saúde, a qualidade de vida e o lazer e entretenimento, com qualidade e responsabilidade, tratamento que nosso país e nossos cidadãos merecem receber há muito tempo”.
Trabalho social
“Há cerca de um ano e meio, dois anos, iniciamos em Vila Velha a Fundação Operartes, que é uma fundação que faz trabalhos de ressocialização, de reintegração social através da música, através da arte. Temos vários projetos, o principal chama-se Libertarte, que é desenvolvido em presídios semiabertos, onde os presos, já em processo de reintegração social, têm a oportunidade de, através da música, poderem trabalhar conceitos de família, fé, esperança, amizade, honra, respeito e também de Deus. Nós também falamos de Deus. E temos tido a oportunidade de colaborar para que esses jovens, que foram presos predominantemente por causa de envolvimento com tráfico de drogas, repensem, reavaliem a sua postura e possam se reintegrar. Há poucas semanas, participamos de uma cerimônia de casamento de um rapaz que saiu há cerca de um ano da prisão e está trabalhando como marceneiro numa empresa importante do Espírito Santo. Ele reencontrou a sua namorada, construiu a sua casa, convive novamente com a família, casou agora, e isso tudo porque teve também um encontro profundo com Deus, essencial nesta transformação.
É uma coisa bacana, é um trabalho que envolve voluntariado e sem qualquer finalidade lucrativa. A fundação recebe apoio de algumas entidades públicas, mas principalmente de entidades privadas, e não tem fins lucrativos. Toda a renda da fundação é revertida aos projetos. Temos ainda o projeto Musicando, que é um trabalho de voluntariado com crianças que estão se recuperando de câncer, em entidades ligadas a tratamento de câncer. E há também uma série de concertos que fazemos para angariar fundos para esses projetos, chamada Série Operartes de Concertos, para a qual convidamos artistas que muitas vezes franqueiam seus cachês e, consequentemente, investem no projeto com seus trabalhos artísticos”.
25 anos de carreira
“Comemoro agora em julho meus 25 anos desde que estreei no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e estarei neste mesmo palco, desta vez cantando o Wotan numa montagem que é nova pra mim, diferente daquela da qual participei em Manaus, e evidentemente tomando isso como um novo e grande desafio. E honrado em ser dirigido cenicamente nesta megaprodução pelo André Heller e ter a meu lado aquela que, sem dúvida nenhuma, é a maior cantora brasileira em atividade, nossa diva Eliane Coelho debutando como a Brünnhilde da Valquíria (a do Crepúsculo ela cantou no ano passado em São Paulo). O elenco todo é maravilhoso.
Ao mesmo tempo, estou muito alegre e muito feliz por ter alcançado esses 25 anos de trajetória nos palcos não só do Brasil, como de outros países também. E divido este momento com aqueles que me ajudaram a chegar aqui, alguns já mencionados, e com todos que acompanham meu trabalho, e os convido a participarem de alguma maneira desta montagem, indo ao Municipal, e também de outras (em Santo André e Jundiaí estarei em Rigoletto; em Belo Horizonte no Réquiem, de Fauré; em 27 de julho no Festival de Inverno de Campos do Jordão; voltarei ao Rio em agosto para Il Turco in Italia em forma de concerto; e em Vitória cantarei o Réquiem, de Verdi).
Está sendo um ano muito especial para mim, um ano em que eu também reencontrei o maestro Isaac Karabtchevsky na montagem da Aida. Foi uma honra para mim, e uma alegria por estar abrindo a temporada de óperas do Theatro Municipal. E também é uma honra estar novamente numa Valquíria, sendo mais uma vez regido pelo maestro Malheiro, que foi a pessoa que me colocou neste repertório de heldenbariton, quando ele me convidou para o Wolfram e depois para o Wotan”.
Mensagem final
“Agradeço primeiro a Deus pelo privilégio e pelo dom que me deu, que eu espero continuar honrando e desenvolvendo ao longo da minha trajetória de cantor e professor. Agradeço por esses 25 anos a Ele, à minha família, aos amigos, aos colegas de trabalho e ao público, que tem me honrado não só com a presença, mas como com o seu carinho. Agradeço também a pessoas como você, Leonardo, e o Antônio Rodrigues, que têm procurado, de maneira isenta e imparcial, pelo entendimento do que a arte operística representa para a nossa sociedade, abrir este espaço aos artistas, e por terem me dado a oportunidade de alcançar um espectro maior de pessoas através do site.
Pessoas como você, como o Antônio, como a Priscila Zamlutti, do Guia Erudito, como Nélson Rubens Kunze, da Revista Concerto, que no ano passado fechou uma edição com uma entrevista comigo. Agradeço a todas as pessoas, aos colegas, aos compositores, aos maestros, aos cantores, aos diretores. Agradeço sinceramente, porque uma coisa é clara para mim: ninguém faz nada sozinho! Se eu estou chegando aqui e celebrando 25 anos de uma carreira bem sucedida é porque eu pude encontrar e pude contar com o apoio e a mão estendida de uma série de pessoas ao longo do caminho”.
Agradeço a Lício Bruno pela entrevista.
Entrevistador Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/
Um dos grandes cantores líricos brasileiros, reconhecido pela crítica e sempre recebido com carinho pelo público, o carioca e filho de pernambucanos Lício Bruno Ramos de Araújo completa 25 anos de carreira, que ele conta a partir de sua estreia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1988, na ópera La Bohème, de Puccini. Além de excelente cantor, o baixo-barítono é um senhor ator, além de professor do Conservatório Brasileiro de Música (onde leciona interpretação cênica, dicção e técnica vocal) e empresário. Encontrei-o há poucas semanas em um começo de noite no Largo do Machado e ele falou abertamente sobre sua vida e sua trajetória.
Lício Bruno, que completará 49 primaveras em 23 de agosto, sobe novamente ao palco do Municipal do Rio, entre os dias 14 e 21 deste mês, para viver mais uma vez Wotan, em A Valquíria. Ele é o único cantor brasileiro a já ter interpretado o deus dos deuses da tetralogia O Anel do Nibelungo, de Wagner – seja em cada ópera apartada, ou no ciclo completo.
Infância, juventude e o interesse pela música
“Eu nasci no Rio de Janeiro e vivi a maior parte da minha vida aqui, tendo feito minha formação básica em colégios particulares. Mais à frente, concluí o Científico no Colégio São Bento. O Colégio São Bento é uma referência e o foi para mim também, principalmente pela sua linha filosófica, pelo aspecto didático e pedagógico, que acabam fazendo parte da formação do caráter de todos aqueles que tiveram a oportunidade de estudar lá, além do que é um colégio cristão, católico. Então há uma formação também moral e religiosa muito forte. Mais tarde, eu fui estudar Engenharia na PUC. Nessa época, eu já gostava de música, já cantava música popular e já tinha um grupo de MPB.
De 19 para 20 anos, descobri o Coral da PUC. O diretor era o maestro Roberto Duarte, e a maestrina assistente era a Lydia Podorolski, já falecida. A partir daí, comecei a cantar no coral e a me envolver com o repertório lírico, que comecei a conhecer de perto. Não que eu não conhecesse, porque meu tio, Luciano Araújo, em mais ou menos 1964, fez prova para o Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e foi admitido. Tornou-se colega de Godofredo Trindade, Ruth Staerke, Isabel Ramos, Carlos Dittert, Siléa Stopatto e de uma série de coristas hoje já aposentados.
Ele me levava ao Theatro Municipal, com três anos de idade. Assistia a ensaios a espetáculos no Theatro Municipal com cinco ou seis anos de idade. Eu me lembro de assistir a O Barbeiro de Sevilha e Cavalleria Rusticana. Meu tio me levava junto com minha irmã; nos colocava sentados no Balcão Simples e dizia: ‘não saiam daqui, quando terminar a ópera eu venho buscar vocês’. E antes de terminar a ópera ele aparecia. Então, embora eu não estudasse música erudita, já conhecia um pouco dessa música através do Theatro Municipal”.
Os estudos formais, os professores e o início da carreira
“Voltando ao Coral da PUC: eu passei também a ter contato com música clássica, de Bach até Verdi, Puccini, Donizetti, Mascagni, Rossini, e também Schubert, Schumann, Mozart. E aos pouquinhos fui adquirindo o gosto. Fui estudar com meu professor, o tenor chileno Victor Olivares, muito conhecido aqui no Rio de Janeiro por vários professores, e com quem eu permaneci estudando durante 13 anos. Ele foi o meu único professor de canto na minha formação básica de cantor. Estudei com ele entre 1982 e 1994, e junto com o trabalho de formação técnica e vocal com o professor Olivares, tive aula de repertório com a professora Leda Coelho de Freitas, já falecida, que foi professora de uma geração de cantores. Ela era a grande professora de interpretação e de repertório. Depois eu fiz aperfeiçoamento com outros mestres.
Outra pessoa que me incentivou muito no início da carreira, um dos ícones da nossa música, e que me convidou para a minha primeira Nona Sinfonia, o meu primeiro Réquiem Alemão, minha primeira Flauta Mágica como Papageno, foi o maestro David Machado, um dos grandes maestros com quem eu tive o privilégio de trabalhar. Outro grande nome, em termos de maestros, que testemunhou o início da minha carreira foi o maestro Henrique Morelenbaum, com quem tive o prazer de fazer, entre outras coisas, Il Campanello di Notte, de Donizetti (com direção de Sérgio Britto) e Judas em Sábado de Aleluia, que foi a ópera que inaugurou o CCBB, escrita pela Cirlei de Hollanda, uma compositora contemporânea com quem tive o privilégio de trabalhar e de me tornar amigo.
Antes disso, a primeira ópera da minha vida, numa produção semiprofissional, foi As Variedades de Proteu, com libreto de Antônio José da Silva, o Judeu, e música de Joaquim Antônio Teixeira. Eu fazia o personagem bufo, o Caranguejo. Produção do Conservatório Brasileiro de Música, onde hoje eu sou professor, com regência de José Maria Neves e direção de Amir Haddad, que, assim como o Sérgio Britto, é outro ícone do teatro”.
A estreia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro
“No ano de 1988, estreei no Theatro Municipal com duas óperas. Cantei o Alcindoro em La Bohème, de Puccini, tendo ao meu lado como Musetta a saudosa Diva Pieranti, que também dirigia aquela remontagem com cenários do Hugo de Ana. Esta La Bohème contava no elenco com Ruth Staerke e Leila Guimarães, interpretando Mimì – Leila, uma voz maravilhosa, que na época tinha acabado de vencer o Concurso Pavarotti e tinha cantado Mimì ao lado do Pavarotti; e a Ruth, que eu tinha conhecido há pouco tempo e que se tornou uma amiga, uma irmã e uma referência para mim.
Cantei também no elenco nacional de O Barbeiro de Sevilha, como Don Basilio, regido pelo ‘meu’ maestro da PUC, Roberto Duarte, numa coincidência gratíssima. Ele era o regente desse elenco nacional, do qual fazia parte também um grande barítono carioca, que é meu querido amigo e uma pessoa que faz parte dessa minha história: o Inácio de Nonno, que fazia o Dr. Bartolo. Outro nome importante desse elenco é o Marcos Thadeu, que fazia o Conde Almaviva. Hoje, além de cantor, ele é preparador vocal do Coro da OSESP e professor universitário de canto em São Paulo. E a direção do Barbeiro era do Gianni Ratto, outro monstro do teatro”.
Influências
“Em 1989, fiz o Concurso Internacional de Canto do Rio de Janeiro, e ganhei um prêmio especial como melhor cantor brasileiro. Além disso, o Theatro Municipal montava Rigoletto, estrelado pelo Fernando Teixeira. Era uma megamontagem do Hugo de Ana e, no palco, chovia literalmente durante o último ato. Eu cantava o Monterone, ao lado do Fernando Teixeira, e depois ia para a coxia aprender a parte do Rigoletto, que eu só viria a cantar muitos anos mais tarde. Outro ícone, com quem tive a oportunidade de trabalhar e depois me tornar amigo foi o Paulo Fortes. Foi um privilégio que os cantores da minha geração tiveram de conviver com esses dois barítonos ícones da ópera brasileira, dois nomes internacionais. O Paulo com uma voz lindíssima de barítono lírico, um barítono leve, com um legato impressionante. E o Fernando Teixeira com uma das mais belas vozes de barítono dramático que eu já ouvi na vida.
Nesse meio tempo, houve o retorno do Nélson Portella ao Rio de Janeiro. Ele voltava da Itália, depois de cantar óperas pelo mundo, tendo gravado várias coisas pelo selo Decca, como Tosca e O Barbeiro de Sevilha. Nélson foi trabalhar no Conservatório Brasileiro de Música e montou lá um grande núcleo de ópera. Quando ele montou Turandot na Praça da Apoteose, convidou-me para fazer o Timur. Na época, eu cantava predominantemente papéis de baixo cantante e de baixo-barítono. Só mais tarde, à medida que minha voz foi amadurecendo e demonstrando essa possibilidade de abranger um repertório de barítono dramático, é que eu passei a desenvolver esse repertório. De 1988 até 1993, 1994, eu cantei predominantemente esse repertório de baixo-barítono. Não só cantando ópera, mas também obras sinfônicas, como a Sinfonia n° 9 de Beethoven, Réquiem Alemão, muitos Messias, com a Petrobras Sinfônica (na época Petrobras Pró-Música) e o saudoso Armando Prazeres”.
A fase húngara
“Em 1994, eu cantava minha primeira A Viúva Alegre no Rio de Janeiro, com o maestro David Machado e direção cênica do Osvaldo Loureiro. No começo de 1995, enviei documentação para tentar uma bolsa da Fundação Vitae, para estudar em Budapeste na Academia Franz Liszt, e consegui. Fui pra lá em setembro de 1995, e encontrei o professor Zsolt Bende, que não era muito conhecido no Brasil, embora tivesse sido banca do Concurso Internacional de Canto no Rio de Janeiro na década de 60. Ele era um barítono ainda em atividade na Ópera Estatal Húngara, era um exímio estilista e era também professor da Andrea Rost (soprano húngara), que na época estreava no Scala de Milão como Gilda em Rigoletto. Fui estudar com esse homem que tinha um conhecimento muito grande de refinamento vocal e que mexeu um pouco na minha técnica, me dando um pouco mais de brilho, de leveza e de agilidade vocal, um pouco mais de máscara, de frente, de frontalidade na voz. Isso foi de 95 a 98, quando ele faleceu.
Em 1998, fiz um concurso internacional (Budapest International Singing Competicion La Bohème), que consistia em prêmios para participar de uma montagem de La Bohème na Ópera Estatal Húngara em algumas récitas. Concorri para a parte de Marcello e venci. E não só atuei nessas récitas, como, a partir do ano seguinte, passei a integrar o elenco da Ópera Estatal Húngara, deixando de ser aluno na Academia Franz Liszt. Para não perder a bolsa, fui aceito na primeira turma do Opera Studio da Ópera Estatal, ou seja, além de contratado da Ópera, eu continuava gozando dos recursos da bolsa como aluno do Opera Studio e aprendendo mais e mais.
Nesse período, embora eu já fosse profissional, sempre vindo ao Brasil para cantar, existia ainda essa minha condição de aluno, mesmo sendo num curso equivalente a uma pós-graduação. Eu permaneci apenas mais um ano com a bolsa da Fundação Vitae, e como eu não poderia mais permanecer em solo húngaro, porque, com o fim da bolsa, encerrou-se também o período do meu visto de estudante, no ano seguinte me transferi para Milão, encerrando meu período como membro da Ópera Estatal Húngara. Isso foi, mais ou menos, no início de 2000. Deixei de receber um valor fixo por apresentação como membro da Ópera, mas continuei cantando em Budapeste como convidado, e aí passei a ganhar aproximadamente três vezes o que eu ganhava antes, além de passagens, hospedagem, etc. Essa minha relação com a Ópera Estatal Húngara foi longa, porque durante cerca de dois anos eu fui membro da Ópera, e entre 2000 e 2008 eu me apresentei lá como convidado em óperas como Don Pasquale, Così fan tutte, I Pagliacci, Tannhäuser e La Bohème”.
Momentos marcantes
“Em 1997, na época do Emílio Kalil, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro me chamou para fazer o Tonio, de I Pagliacci, e este foi um grande sucesso. Outro momento marcante foi o Tannhäuser de 2001 também no Theatro Municipal, meu primeiro Wagner. Foi uma surpresa para mim mesmo eu ter conseguido um nível musical bom. E tenho certeza que isso se deve muito a uma cultura wagneriana que existe na Ópera Estatal Húngara, onde eu encontrei um grande correpetidor, o Tamas Sálgo, hoje grande amigo, que me ensinou muito do canto wagneriano. Como eu já morava em Milão nessa época em que me preparei para o Tannhäuser, outra pessoa que me ajudou muito foi um maestro correpetidor chamado Lucca Pavanati, um milanês que tinha voltado para a cidade recentemente, depois de ficar em um teatro alemão durante os cinco anos anteriores, e então ele vinha com uma bagagem de ópera alemã muito boa. A regência aqui no Rio foi do Karl Martin, um especialista nesse repertório.
Mas eu devo essa oportunidade ao maestro Luiz Fernando Malheiro, que acreditou na minha potencialidade e me elencou para o papel de Wolfram nesta ópera. Não só isso: terminado o Tannhäuser, me convidou para iniciar o ciclo do Anel em Manaus, cantando A Valquíria, que foi a primeira ópera do ciclo que eu cantei, como Wotan, em 2002. Em 2003, fizemos o Siegfried, em que cantei o Wanderer, Wotan em trajes de andarilho. Em 2005, fizemos não só O Ouro do Reno, como todo o Anel em dois ciclos completos. Ou seja, em maio de 2005, cantávamos no sábado O Ouro do Reno; no domingo, sem descansar, A Valquíria; descansávamos segunda e, na terça, Siegfried: ou seja, em quatro dias, eu cantava o Wotan inteiro do Anel. E isso duas vezes, duas semana consecutivas.
Foi uma experiência indescritível. Acho que se eu ficasse falando aqui por horas sobre o ciclo do Anel, eu não falaria tudo, mas algumas coisas merecem ser pontuadas. Pela primeira vez no Brasil, um teatro de ópera, através de um diretor artístico, Luiz Fernando Malheiro, acreditou nessa ‘loucura maravilhosa’ e na capacidade dos cantores brasileiros de realizar um bom trabalho em Wagner e no Anel. Evidente que em alguns papéis-chave nós tínhamos cantores estrangeiros, mas no início, em 2002, nós tínhamos Eduardo Álvares cantando um Siegmund maravilhoso, Laura de Souza como Sieglinde, a Fricka de Céline Imbert, eu como Wotan e todas as valquírias brasileiras. Cito algumas que continuam fazendo carreira, como Gabriella Pace, Edna d’Oliveira, Adriana Clis e Luísa Francesconi, só para citar alguns nomes. Rosana Lamosa não só foi uma das valquírias e filha do Reno como cantou o Pássaro do Siegfried; José Gallisa fez o Fafner, Stephen Bronk, residente no Brasil, era Fasolt; Pepes do Valle fez um excelente Alberich. Cerca de 75% a 80% do elenco era nacional, o que não é pouco. E além disso, foi criada uma Central Técnica de Produções em Manaus e a Amazonas Filarmônica foi aumentada. Para completar, tínhamos a presença do diretor cênico Aidan Lang, que nos brindou com uma concepção excepcional da tetralogia.
Falando do Aidan, eu me lembro do André Heller-Lopes, com quem eu vou trabalhar agora nessa remontagem da Valquíria (original do Municipal de São Paulo) no Rio de Janeiro. Com o André, tem uma coisa marcante da minha carreira que foi o meu primeiro trabalho profissional com ele, embora eu o conhecesse desde antes da minha estreia no Municipal, porque nós participamos juntos de montagens de óperas promovidas pelo Amauri René, e o André, ainda muito jovem, também cantava e participava dessas montagens. Eu fui convidado pelo maestro Jamil Maluf para fazer o Gérard do Andrea Chénier, que teve direção do André, e esse trabalho foi um marco na minha carreira e foi um trabalho muito elogiado em São Paulo.
Outro momento marcante foi quando cantei em São Paulo os quatro vilões de Os Contos de Hoffmann, em 2003, a convite do maestro Jamil Maluf, um dos grandes maestros com quem eu tive o privilégio de trabalhar. O Jamil tem um respeito extremo, um cuidado, um zelo com a partitura, com o estilo e tudo que o compositor escreveu. Ele vem de uma formação musical austera na Alemanha. Aprendi com ele a ler mais a partitura. Eu quero dizer não só as notas, não só a dinâmica, mas as entrelinhas, aquilo que o compositor deixa impregnado na escrita. E o Jamil me ofereceu a oportunidade de fazer esta montagem, dirigida com esmero pelo Jorge Takla, muito embora três anos antes eu já tivesse feito outra versão dos Contos de Hoffmann com o Malheiro no Festival de Campos do Jordão, numa proposta de encenação minimalista, concebida pelo Iacov Hillel. Mas em Campos de Jordão foi apenas uma noite e em São Paulo foram cinco récitas, com presenças especialíssimas do Fernando Portari no papel de Hoffmann, e da Denise de Freitas como Nicklauss, exibindo uma voz lindíssima e uma competência enorme. Acabei, ao lado de Denise, por receber o Prêmio Carlos Gomes 2004, graças a essa montagem do Hoffmann. Cantei também os quatro vilões em Bogotá, além de ter interpretado a ária do diamante em concertos com a Orquestra Estatal Húngara na chegada do novo milênio”.
A vida para os cantores líricos no Brasil
“Grandes cantores, colegas meus, conseguem viver de nossa arte no Brasil. Eu tenho conseguido e agradeço a Deus, aos companheiros, colegas de trabalho, que têm me oferecido e me confiado sucessivas oportunidades importantes nos grandes palcos do país. Por isso, tenho falado nessa entrevista de minha relação com vários desses artistas ao longo de minha trajetória. Sem esta relação de parceria e amor à arte e à música, eu pouco ou nada teria alcançado, e nem poderia viver de arte aqui! Entre estes, um dos maestros com quem eu tenho trabalhado nos últimos anos (eu digo nos últimos anos porque a primeira vez em que eu trabalhei com ele, se não me engano, foi em 2008) é o maestro Sílvio Viegas, que hoje, além de ser um maestro com quem eu tenho enorme prazer de conviver e trabalhar, é um querido amigo.
É claro que pode se tornar difícil você conseguir se manter no Brasil, porque o Brasil tem muitos problemas e pouca memória, e não falo só da memória da ópera, mas da memória em todos os níveis (histórica, política, cultural e até a futebolística). É possível viver no Brasil se você estiver muito consciente da opção que você fez e, evidentemente, sempre que possível viajando ao exterior para cantar também”.
Cantor internacional
“Há uma diferença que se faz pouco no Brasil. Aqui considera-se erradamente cantor lírico internacional o cantor que mora no exterior. Cantor internacional é aquele que realiza e está capacitado para realizar trabalhos musicais em qualquer teatro ou sala de concerto do mundo. Só que a leitura que se faz disso, geralmente, não é essa. Se um cantor brasileiro é um cantor internacional, mas reside no Brasil, então para muitos ele deixa de sê-lo. E o cantor que não é internacional, mas que está morando no exterior por algum motivo qualquer, é chamado de internacional. Não é incrível? Então para ser internacional tem que se residir fora de seu país?”
Sobre personagens
“Parece mentira, mas todo personagem que a gente está fazendo naquele momento vira um favorito, porque a gente se dedica e ele de corpo e alma. Mas existem aqueles que te dão um retorno maior. Eu posso citar os quatro vilões de Hoffmann como personagens favoritos pra mim, assim como o Scarpia (Tosca), papel em que eu estreei há pouco tempo no Rio; Rigoletto; Wotan (ainda que seja difícil, é um preferido); Escamillo (Carmen), que foi o primeiro personagem que eu cantei na Hungria, numa cidade chamada Szeged (eles fazem um festival no verão em praça aberta, para um público de quatro, cinco mil pessoas); Iago, que eu cantei em Bogotá e também no Festival Amazonas.
Há um que eu não cantei, nem estudei ainda, mas é um favorito que eu ainda gostaria de cantar: Wozzeck. E outros que eu gostaria de cantar são Golaud (Pelléas et Mélisande), o Holandês (O Holandês Errante/O Navio Fantasma), Amfortas (Parsifal). Não sei quando e se irei cantar esses personagens, mas são os que me interessam. E também Hans Sachs (Os Mestres Cantores de Nuremberg), que eu também nunca estudei e seria um grande desafio, fazê-lo com propriedade, compreendendo a profundidade do caráter do personagem”.
O ator
“No início da minha carreira, tive a oportunidade de trabalhar com Sérgio Britto, Amir Haddad, Ewerton de Castro, Pedro Paulo Rangel, Jacqueline Laurence, Eduardo Tolentino (do Grupo Tapa), Moacir Chaves (com quem eu não trabalhei diretamente, mas que conheci no começo da carreira), Denise Fraga (que conheci antes de ela estourar como atriz, fazendo um trabalho muito bonito com o Grupo Tapa). Eu sempre fui muito interessado no teatro de prosa, não só na ópera, e com isso assisti a montagens de Fedra, Rei Lear, Lágrimas Amargas de Petra von Kant, O Avarento, e tantas outras que pude ver aqui no Rio de Janeiro e que marcaram uma época.
Muitas vezes, em obras como, por exemplo, as óperas wagnerianas, ou como Aida, como Il Trovatore, as cargas psicológica e dramática contam muito para a interpretação dos personagens. No grande palco, onde o excesso de movimentação às vezes prejudicaria a boa performance do cantor, é delicado esse enfoque dramático, porém extremamente necessário. Existe uma maneira específica de trabalhar o ator/cantor; existe uma forma, que é diferente do teatro de prosa, de ser este ator/cantor, porém é necessária essa experiência de prosa. Tive a oportunidade de participar de alguns trabalhos, onde além de atuar como cantor, também atuava como ator. Um deles, mais atual, eu fiz em 2010 dividindo o palco com Ruth Staerke: Amor por Anexins, texto de Artur Azevedo, com direção de Gustavo Ariani, que a gente adaptou, entremeando com passagens de ópera, criando uma burletta musical. Mas era um trabalho essencialmente teatral.
Sem qualquer pretensão de querer me comparar com algum ator de prosa, esse exercício do ator, orientado por grandes diretores, é uma oportunidade que você tem de desenvolver essa ‘porção ator’. Existem técnicas específicas para o teatro de ópera e que muitas vezes os diretores do teatro de prosa dominam, tanto é que eles se tornam – não sempre, mas em alguns casos – capacitados para fazerem ópera. Eu poderia citar alguns excelentes brasileiros, como Iacov Hillel, Jorge Takla, José Possi Neto, entre outros. Mas a formação do ator é necessária, é importante que o cantor compreenda a necessidade de se entender com o personagem, e saber como desempenhar e como ‘vestir’ cada personagem. É muito difícil falar sobre isso, mas existe uma escola dramática de ópera e alguns diretores de ópera têm essa capacidade de extrair do cantor aquilo que precisa ser extraído. Até mesmo o maestro precisa ter um entendimento da psicologia de cada personagem.
Como um intérprete que se preocupa com isso, a minha formação não foi exatamente formal. Eu fiz cursos de teatro com Fernando Peixoto e Antônio Mercado, e tive o privilégio de ter trabalhado com pessoas que extraíram o máximo de mim, não só diretores de ópera, como diretores de teatro que fazem ou faziam ópera também: Amir Haddad, Sérgio Britto, Jorge Takla, José Possi Neto, Aidan Lang, André Heller-Lopes – este especificamente um diretor de ópera e com um entendimento dramático muito profundo e muito claro, que sabe extrair muito de um cantor de ópera. E a música te orienta, porque a música é muitas vezes o termômetro de cada cena. Esse é um tema maravilhoso e abrangente, porque existem várias formas de se montar um espetáculo. Você pode montar de forma minimalista, de forma realista, naturalista, expressionista, dentre outras várias linguagens e abordagens teatrais”.
Wotan
“O Wotan, na minha concepção, é o grande dilema do homem moderno, que busca poder, muitas vezes o alcança, mas nem sempre consegue conciliar poder e felicidade. A Valquíria e O Anel como um todo podem ser montados a partir de um viés realista, ou de um viés psicológico. Você pode fazer o trabalho sob uma ótica psicológica, abordando esses seres vivendo um drama absolutamente psicológico. Eu gosto da ideia de ter O Anel como uma grande alegoria de uma sociedade em transformação. Nos nossos dias, é muito claro que a nossa sociedade está se transformando e buscando o desenvolvimento, mas às vezes pagando um preço muito caro, desenvolvendo-se em determinados aspectos e regredindo em outros. Wotan é esse dilema: como o homem em seu aspecto masculino dentro desse processo, assim como há as personagens femininas com os seus dramas. Wotan é o dilema entre poder e felicidade/amor”.
O Lício professor
“Como professor, procuro ser muito exigente com os meus alunos, talvez só um pouco menos exigente do que sou comigo mesmo. Acredito que é preciso incutir no jovem que deseja e que anseia seguir um caminho como cantor erudito um senso de responsabilidade, e isso você só incute ensinando para eles disciplina. Sou um professor que procuro orientar os meus alunos para atitudes de rigor, de disciplina e de respeito à música. Não acho que o mais importante seja formar divos e divas, mas que nós tenhamos em mente que a formação desse jovem cantor seja uma formação onde ele possa colaborar como artista para a transformação social num mundo mais justo e mais equilibrado. Para isso, ele tem que ter cuidado com o ego, da mesma forma que eu, como cantor, procuro manter esse exercício. Não é fácil, porque a gente está em evidência, e por outro lado é necessário um pouquinho de ego, pois do contrário a gente não subiria no palco.
É preciso saber caminhar com cuidado e atenção, e lembrar que não é apenas ter uma bela voz e uma bela técnica que vai fazer de você um grande cantor. É preciso que você tenha uma cultura geral de boa dimensão, é preciso que você fale línguas, estude-as pelo menos e as tenha como ferramentas. Além de português, falo inglês, italiano e espanhol; entendo húngaro e francês; estudei alemão e canto em alemão entendendo perfeitamente o que estou cantando.
Procuro ser um professor também que não se considera dono da verdade, eu não acho que a minha forma de ensinar, ou a minha técnica, ou a minha forma de cantar é única. Acho que existem duas formas de cantar, a boa e a ruim, a que funciona e a que não funciona. Eu procuro aprender a cada dia, como orientador e professor, com o mundo, com a ciência, com o teatro e com os meus próprios alunos. Nem tudo que a gente faz funciona bem, então a gente está sempre aprendendo. E não existe o artista completo, a gente é um work in progress, está sempre se desenvolvendo”.
O empresário
“O Lício empresário é um assessor da minha sócia. Inez Schachter é a grande responsável pela Pauta Produções. Ela é a Diretora Geral, a Manager da nossa agência. Eu procuro fazer as vezes daquele cantor que tem experiência e que procura orientar não só o caminhar da agência, mas também o caminhar de alguns artistas. Nós buscamos sempre uma ênfase nos jovens artistas, então estamos sempre procurando novos valores. Mas não acho que esse viés de Manager seja um viés que me vista tão bem, não combina muito com o artista, então eu prefiro ficar mesmo como assessor da minha sócia”.
Deus
“Muitas pessoas pensam que ser religioso é ter um determinado tipo de comportamento ou fazer determinado tipo de coisa todo dia. Eu procuro pregar o evangelho sempre que posso, eu vou à igreja, eu sou um membro da igreja. Mas ser religioso e, principalmente, ser cristão é ser uma pessoa que acredita num Deus que se fez homem e que, de maneira misteriosa, viveu uma paixão, e com sua morte nos absolveu de nossas mazelas humanas, os pecados. É muito difícil falar de Deus, porque cada um tem a sua convicção religiosa. Eu procuro respeitar a convicção religiosa de todos, até mesmo para que respeitem a minha.
Sou uma pessoa muito feliz nessa caminhada, buscando estar próximo de Deus através da interseção de Jesus na minha vida, e sinto que sou um homem novo. Não acho que sou perfeito por causa disso. Eu sou uma pessoa como qualquer outra, cheia de dúvidas, de questões, de erros e de acertos, mas uma convicção eu tenho: Cristo veio a esse mundo para nos mostrar o caminho. A gente não só deve anunciar a palavra d’Ele, sempre respeitando a crença dos outros, mas buscar praticar isso, o amor, a bondade, a tolerância, o respeito, a honra, a moral, a ética e o servir. Eu não estou fazendo o meu trabalho para ser servido, eu estou fazendo o meu trabalho no palco para servir à minha sociedade e, principalmente, servir ao reino de Deus, que é um reino onde todos merecem ser tratados igualmente e buscam esse respeito mútuo, para viver em harmonia”.
Manifestações nas ruas
“Acompanho, como cidadão e artista profissional, há muitos anos, desde a época das ‘Diretas Já’, como se tratam os orçamentos gerais e também o da cultura em nosso país. Creio que esta onda de manifestações demonstra um anseio, um desejo de todos os brasileiros por mudanças estruturais na política de administração do dinheiro público, com uma maior transparência dos respectivos orçamentos federal, estadual e municipal, nas mais diversas áreas: saúde, educação, saneamento, transporte, cultura, entre outras.
Isso é natural e saudável em um país como o nosso, que cresce e amadurece. Penso que nossos governantes, bem como nossa elite social e cultural, precisam rever posturas e formas de tratar e se relacionar com o bem público, o dinheiro público, pois a administração pública deve ser feita com responsabilidade social, já que é o dinheiro de todos nós que constrói o Brasil. Por isso mesmo, os investimentos devem sempre privilegiar a educação, a saúde, a qualidade de vida e o lazer e entretenimento, com qualidade e responsabilidade, tratamento que nosso país e nossos cidadãos merecem receber há muito tempo”.
Trabalho social
“Há cerca de um ano e meio, dois anos, iniciamos em Vila Velha a Fundação Operartes, que é uma fundação que faz trabalhos de ressocialização, de reintegração social através da música, através da arte. Temos vários projetos, o principal chama-se Libertarte, que é desenvolvido em presídios semiabertos, onde os presos, já em processo de reintegração social, têm a oportunidade de, através da música, poderem trabalhar conceitos de família, fé, esperança, amizade, honra, respeito e também de Deus. Nós também falamos de Deus. E temos tido a oportunidade de colaborar para que esses jovens, que foram presos predominantemente por causa de envolvimento com tráfico de drogas, repensem, reavaliem a sua postura e possam se reintegrar. Há poucas semanas, participamos de uma cerimônia de casamento de um rapaz que saiu há cerca de um ano da prisão e está trabalhando como marceneiro numa empresa importante do Espírito Santo. Ele reencontrou a sua namorada, construiu a sua casa, convive novamente com a família, casou agora, e isso tudo porque teve também um encontro profundo com Deus, essencial nesta transformação.
É uma coisa bacana, é um trabalho que envolve voluntariado e sem qualquer finalidade lucrativa. A fundação recebe apoio de algumas entidades públicas, mas principalmente de entidades privadas, e não tem fins lucrativos. Toda a renda da fundação é revertida aos projetos. Temos ainda o projeto Musicando, que é um trabalho de voluntariado com crianças que estão se recuperando de câncer, em entidades ligadas a tratamento de câncer. E há também uma série de concertos que fazemos para angariar fundos para esses projetos, chamada Série Operartes de Concertos, para a qual convidamos artistas que muitas vezes franqueiam seus cachês e, consequentemente, investem no projeto com seus trabalhos artísticos”.
25 anos de carreira
“Comemoro agora em julho meus 25 anos desde que estreei no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e estarei neste mesmo palco, desta vez cantando o Wotan numa montagem que é nova pra mim, diferente daquela da qual participei em Manaus, e evidentemente tomando isso como um novo e grande desafio. E honrado em ser dirigido cenicamente nesta megaprodução pelo André Heller e ter a meu lado aquela que, sem dúvida nenhuma, é a maior cantora brasileira em atividade, nossa diva Eliane Coelho debutando como a Brünnhilde da Valquíria (a do Crepúsculo ela cantou no ano passado em São Paulo). O elenco todo é maravilhoso.
Ao mesmo tempo, estou muito alegre e muito feliz por ter alcançado esses 25 anos de trajetória nos palcos não só do Brasil, como de outros países também. E divido este momento com aqueles que me ajudaram a chegar aqui, alguns já mencionados, e com todos que acompanham meu trabalho, e os convido a participarem de alguma maneira desta montagem, indo ao Municipal, e também de outras (em Santo André e Jundiaí estarei em Rigoletto; em Belo Horizonte no Réquiem, de Fauré; em 27 de julho no Festival de Inverno de Campos do Jordão; voltarei ao Rio em agosto para Il Turco in Italia em forma de concerto; e em Vitória cantarei o Réquiem, de Verdi).
Está sendo um ano muito especial para mim, um ano em que eu também reencontrei o maestro Isaac Karabtchevsky na montagem da Aida. Foi uma honra para mim, e uma alegria por estar abrindo a temporada de óperas do Theatro Municipal. E também é uma honra estar novamente numa Valquíria, sendo mais uma vez regido pelo maestro Malheiro, que foi a pessoa que me colocou neste repertório de heldenbariton, quando ele me convidou para o Wolfram e depois para o Wotan”.
Mensagem final
“Agradeço primeiro a Deus pelo privilégio e pelo dom que me deu, que eu espero continuar honrando e desenvolvendo ao longo da minha trajetória de cantor e professor. Agradeço por esses 25 anos a Ele, à minha família, aos amigos, aos colegas de trabalho e ao público, que tem me honrado não só com a presença, mas como com o seu carinho. Agradeço também a pessoas como você, Leonardo, e o Antônio Rodrigues, que têm procurado, de maneira isenta e imparcial, pelo entendimento do que a arte operística representa para a nossa sociedade, abrir este espaço aos artistas, e por terem me dado a oportunidade de alcançar um espectro maior de pessoas através do site.
Pessoas como você, como o Antônio, como a Priscila Zamlutti, do Guia Erudito, como Nélson Rubens Kunze, da Revista Concerto, que no ano passado fechou uma edição com uma entrevista comigo. Agradeço a todas as pessoas, aos colegas, aos compositores, aos maestros, aos cantores, aos diretores. Agradeço sinceramente, porque uma coisa é clara para mim: ninguém faz nada sozinho! Se eu estou chegando aqui e celebrando 25 anos de uma carreira bem sucedida é porque eu pude encontrar e pude contar com o apoio e a mão estendida de uma série de pessoas ao longo do caminho”.
Agradeço a Lício Bruno pela entrevista.
Entrevistador Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/
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