A HUMANIDADE DO DIVINO MOZART. ARTIGO DE FREDERICO TOSCANO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Recentemente, um colega me falou surpreso, e algo
inconformado, a respeito do comportamento excêntrico do compositor austríaco
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) no filme Amadeus (1984), o que
me motivou a trazer neste post algumas considerações sobre a sua
personalidade. Por sinal, em relação ao filme, o neurologista e organista
Bernard Lechevalier, em seu livro Le Cerveau de Mozart (Odile Jacob,
2003), dispara indignado severas críticas, considerando-o uma obra estimável
talvez em nível cinematográfico, mas detestável a nível histórico, por dar ao
músico uma visão absurdamente grotesca e caricatural, ao mesmo tempo em que
escondia o seu gênio debaixo de uma máscara de um débil mental.
O fato é que é comum, ao tentar descrever Mozart,
esbarrar-se imediatamente em aparentes antagonismos de sua personalidade. Se por
um lado, ele é o criador de uma música sublime e muito superior a tudo que
parece animalesco no ser humano, que testemunha claramente uma capacidade de
sublimação altamente desenvolvida, por outro, o mesmo Mozart era capaz de se
comportar e fazer piadas que, aos ouvidos das gerações atuais, parecem
extremamente grosseiras. Muitos exemplos dessas piadas aparecem nas suas cartas,
especialmente aquelas dirigidas à sua prima Maria Anna Thekla Mozart
(1758-1841), conhecida como Bäsle (“priminha”, em alemão) – escritas com
21 ou 22 anos, como fruto de uma possível puberdade atrasada.
A pesquisadora Ruth Halliwell, na sua obra The
Mozart Family: Four Lives in a Social Context (OUP, 1998), ressalta que as
cartas à Bäsle são meras brincadeiras, quase desprovidas de notícias. São
fantasias verbais, que exibem um imaginativo senso de humor de Mozart.
Considerando as atuais convenções, elas parodiam gêneros literários e musicais,
usando rimas, trocadilhos, ecos e outros recursos. Suas alusões escatológicas e
eróticas colocaram tais documentos em grande risco de destruição. Essas cartas
“chocantes” sobreviveram por pouco, e não foram impressas por completo até 1938
(na pioneira e valiosa edição de Emily Anderson), despertando perplexidade nas
recentes gerações sobre como o, até então, “imaculado” Mozart podia ter escrito
coisas tão grosseiras.
Halliwell explica que a análise mais cuidadosa
das personalidades de pessoas altamente criativas desafia o estereótipo do gênio
como alguém isento do desenvolvimento humano dito normal. Mozart não escapou ao
julgamento a respeito de sua inteligência, do seu comportamento e da forma de
conduzir seus assuntos. O professor Jean-Victor Hocquard em Mozart ou la voix
du comique (Archimbaud, 1999) chega a colocar o problema de uma dicotomia
entre o gênio que Mozart foi na sua arte e o homem comum que foi na sua vida.
Lechevalier, por sua vez, questiona por que razão o autor de Die Zauberflöte foi
alvo de tão duros julgamentos e de uma exigência de perfeição tão elevada e
absoluta, quase sobrenatural. O que queriam, de fato, que ele fosse? Um mundano,
um conversador eloquente, um lisonjeador, um cortesão, um carreirista hábil e
adulado, um homem rico e importante, em suma, a imagem de um “homem de sucesso”,
que teria sido, comodamente, um motivo de felicidade e reconhecimento para
todos. Sobre a vida de Mozart paira certo ar messiânico, mas ele não foi aquele
que gostariam que fosse: o divino Mozart. Lechevalier cita a teoria das
personalidades múltiplas da moderna psicologia norte-americana, questionando se
seria Mozart um desses casos.
Até mesmo em cartas para o pai, Leopold
Mozart (1719-1787), Wolfgang usava expressões de referências anais e
escatológicas sem qualquer mostra de constrangimento. Nesse sentido, considero
fundamental trazer a abordagem do renomado sociólogo alemão Norbert Elias
(1897-1990) em sua obra Mozart: Sociologia de um Gênio (Zahar, 1995),
onde afirma que havia espaço de sobra para tais fantasias no círculo social de
Mozart. Nessa sociedade, havia menos necessidade de escondê-las das vistas do
público – e, portanto, de reprimi-las da consciência – do que nas sociedades
industriais do século XX, explica o sociólogo. A própria mãe do compositor não
se privava de inserir brincadeiras “atrevidas” nas cartas que enviava ao
marido.
Lechevalier corrobora Elias, afirmando que tal
linguagem escatológica fazia parte da cultura da Áustria e do sul da Alemanha na
época, além de ser hábito também na França, quando Jean-Baptiste Poquelin
(1622-1673), conhecido como Molière, divertia o rei com histórias de clisteres e
quando, muito tempo depois, as multidões vindas dos bairros elegantes de Paris
se empurravam para assistir às proezas de Roger Vitrac (1899-1952) e seus gases
na peça Victor ou les enfants au pouvoir (1928). É preciso reconhecer,
entretanto, que Mozart se deixou, por vezes, levar por uma excitação verbal
excessiva, recheada de palavras grosseiras e algumas vezes incompreensíveis,
percebida por Hocquard nos textos dos célebres cânones escritos em várias
línguas – compostos sem dúvida com amigos e destinados a serem cantados
estritamente entre eles.
A “sujeira” verbal era um elemento do
comportamento descontraído entre os jovens – e também entre os mais velhos – com
quem Mozart se relacionava. Não era de maneira alguma proibido, segundo Norbert
Elias. No máximo, recebiam uma proibição tão leve que as zombarias coletivas
quanto ao tabu provocavam muita algazarra entre os jovens da época. Desde cedo,
porém, Mozart sabia exatamente onde tais piadas eram permitidas. Sabia que eram
permitidas e apreciadas entre os pequenos burgueses empregados das cortes, o que
incluía os músicos (e mesmo aí apenas entre amigos próximos), mas que eram
completamente fora de lugar nos círculos mais altos.
Traços da personalidade também influenciavam o
uso aparentemente compulsivo que Mozart fazia de expressões anais e orais. Elias
supõe que conflitos ligados à educação higiênica na infância ressurgiram na
puberdade. Podem também ser uma expressão indireta de agressão contra o pai – e,
mais amplamente, contra a ordem estabelecida, a que tinha sido negada qualquer
expressão direta. Sentimentos agressivos em relação à classe dominante da época
estavam presentes em Mozart, e formavam um traço muito forte de sua
personalidade – isto pode ser observado em toda a sua carreira posterior.
Halliwell afirma que alguns dos traços de caráter
adulto de Mozart podem ser progressivamente rastreados desde a mais tenra
infância; outros se desenvolveram como respostas posteriores a aspectos
específicos de seu ambiente. Desde a infância, Mozart foi o centro das atenções
de sua família, graças às suas habilidades musicais, sua alegria e sua
inteligência musical (aspecto estudado por Lechevalier em sua obra). A
necessidade de ser amado era forte – inicialmente ele dependia, sobretudo, do
amor de Leopold; depois, de sua esposa, Constanze Mozart (1762-1842). As
cartas de família, as reminiscências do amigo Andreas Schachtner
(1735-1795) de Salzburg e os relatos de observadores das turnês européias de
Mozart na sua infância, oferecem várias evidências das suas características
infantis. Schachtner, por exemplo, comentou que Mozart era “cheio de fogo” e tão
impressionável que podia ter se tornado um “vilão covarde”, caso não recebesse a
rígida educação de Leopold. Essa impetuosidade pode ser vista também no Mozart
adulto, especialmente durante o seu envolvimento com Aloysia Weber (1760-1739),
que se tornaria sua cunhada.
Elias alerta, ainda, para o fato de que qualquer
análise sobre a coprofilia verbal de Mozart necessariamente se equivocaria se
aplicássemos os padrões atuais de civilização – usando, implicitamente, o nosso
próprio padrão de sensibilidade como universal e válido para toda a humanidade,
e não como algo que se desenvolveu ao longo do tempo. Para fazer justiça à
tendência de Mozart, seria preciso ter uma idéia clara do que o sociólogo
batizou de processo civilizador, ao longo do qual o padrão social de
comportamento e de sentimento muda de maneira específica, ou seja: na sociedade
de Mozart – mais exatamente, na fase do processo social civilizador em que viveu
– o tabu quanto ao uso das palavras chocantes que encontramos em suas cartas não
era, nem de perto, tão estrito e rígido quanto em nossos dias.
Mozart sempre circulou em dois mundos sociais
distintos: o círculo não-cortesão de seus pais, que hoje em dia poderia ser
referido pela expressão “pequenos burgueses”, e o dos aristocratas da corte –
que ainda se sentiam muito seguros de seu próprio poder nas regiões alemã e
italiana, a despeito dos relâmpagos distantes e dos primeiros trovões da
Revolução Francesa. Tal divisão em sua existência social também se fazia sentir
na estrutura de sua personalidade. Toda a atividade musical de Mozart, toda a
sua formação de instrumentista virtuose e de compositor foram modeladas pelo
padrão musical das sociedades de corte hegemônicas da Europa.
Halliwell considera que, pelo fato do talento de
Mozart haver guiado todas as atividades de sua família durante a sua infância,
ele estava acostumado a ter todas as suas necessidades generosamente atendidas.
Enquanto os outros “meninos musicais” estavam em aula de canto no coro, a rica
educação de Mozart foi talhada e transmitida sob medida por Leopold ao filho
para que jamais se tornasse mais uma atração entre muitas – Lechevalier o chama
de “produto de estufa”. Somente aos 22 anos de idade Mozart fez a sua primeira
viagem sem o pai.
O pequeno gênio foi mimado por nobres e
encorajado a acreditar que um futuro magnífico o esperava. Quando Mozart tinha
dez anos, Friedrich Melchior, Barão von Grimm (1723-1807) acreditava que
os monarcas brigariam para atrair os Mozart. Porém, quando isso não aconteceu,
explica Halliwell, a frustração de Mozart mostrou-se numa série de traços de
caráter. Primeiramente, Mozart não podia suportar o tédio, e começou a mostrar
arrogância e falta de tato. Para Leopold, ele escreveu de Mannheim, em 1778:
“Deixo isso para as pessoas que nada podem fazer a não ser tocar piano. Eu sou
um compositor e nasci para ser um Kapellmeister”. Em segundo lugar, a
complacência e a falta de talento para aspectos práticos (especialmente no campo
financeiro), decorrentes da superproteção do pai na infância (o elemento que
mais modelou a sua personalidade, segundo Lechevalier), formaram uma combinação
ruim na vida de Mozart. Finalmente, ele se tornou extremamente sensível quanto
ao seu valor na sociedade, queixando-se de não ter a companhia de pessoas que,
apesar de sua classe social mais alta, não eram intelectualmente ou moralmente
superiores a ele.
A recusa persistente de Mozart em usar o título
nobiliárquico da Ordine dello Speron d’Oro que foi conferido pelo papa
Clemente XIV (1705-1774) – ao contrário do compositor Christoph Willibald Gluck
(1714-1787) que, tendo recebido a mesma comenda, intitulou-se “Ritter von Gluck”
por toda a vida – é um sintoma de não-identificação com a classe aristocrática.
Wolfgang tinha o direito de assinar “Ritter von Mozart”, se preferisse. Mozart
tinha forte desejo de ser reconhecido e aceito como igual pelos círculos
cortesãos aristocráticos – mas exclusivamente pela sua importância como músico,
e não pelo título. Como tal reconhecimento lhe foi negado desde as suas
primeiras tentativas de conseguir uma colocação, o compositor certamente tinha
sentimentos muito negativos a respeito da sociedade dominante. Não é improvável,
sugere Norbert Elias, que tal agressão reprimida se refletisse nas referências
verbais do compositor às funções animais. Por sinal, o desejo de ser aceito por
seus méritos foi certamente uma das principais razões para o ingresso de Mozart
na maçonaria, o que lhe deu a oportunidade de interagir em condições de
igualdade com muitos membros das classes mais altas.
A obra de Mozart foi, em grande parte,
caracterizada pela sintonia com os círculos aristocráticos, não apenas através
da adaptação consciente e deliberada em seu trabalho para imperadores, reis e
outros patronos, mas também através do involuntário ajustamento de sua
consciência artística a tal tradição musical. Ao mesmo tempo, ressalta Elias, em
sua estrutura de personalidade, especialmente no que se referia às relações
sociais, continuou sendo um homem da pequena burguesia – quando as pessoas
enfrentavam seus semelhantes muito mais diretamente, no que diz respeito a
gostar ou não gostar. Ainda assim, como salienta Lechevalier, Mozart sempre teve
consciência do seu talento excepcional, e nunca suportou ser humilhado.
A dependência de Leopold durante a infância
tornou a transição de Mozart para a vida adulta muito problemática. Ainda assim,
ele era incansavelmente sociável e adorava rir, dançar, cartas, tiro e bilhar.
Quando jovem, seu humor exibia uma frivolidade desenfreada. Talvez os traços de
caráter mais atraentes na vida adulta de Mozart fossem o seu otimismo quase
incansável, a sua coragem de perseverar nas dificuldades pessoais e sua
determinação de preservar sua integridade artística. Embora ele ocasionalmente
expressasse desespero, suas cartas à esposa exibia uma notável capacidade de
confortar e encorajá-la, mesmo quando seu desânimo dificultava a sua amada
atividade de compor.
O escritor norte-americano Saul Bellow, em
Mozart: une ouverture (Tout compte fait, 1995), depois de analisar
o caráter de Mozart, simplesmente renunciou a encontrar uma explicação para ele.
O enigma do seu caráter, escreveu ele, ultrapassa-nos. Dissimula-se por trás da
sua música e nunca o alcançaremos profundamente. Bellow queria dizer que a
música ocupava permanentemente a sua consciência, e que só interrogando-a é que
se conhecerá a verdadeira personalidade de um músico de tal magnitude.
Frederico Toscano
Fonte: http://euterpe.blog.br/
Comentários
Postar um comentário