UM DON GIOVANNI COM SEDE DE SANGUE. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Montagem tem belo visual e algumas vozes boas, mas também tem problemas.
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Estreou no Theatro Municipal de São Paulo na última quinta-feira, 12 de setembro, para sete récitas até o dia 22, Don Giovanni, ópera em dois atos de Wolfgang Amadeus Mozart, sobre libreto de Lorenzo da Ponte, com base num libreto de Giovanni Bertati para uma ópera de Giuseppe Gazzaniga, por sua vez baseado em El Burlador de Sevilla Y Convidado de Piedra, de Tirso de Molina. Vale dizer que o libretista também se inspirou numa tragicomédia de Molière intitulada Don Juan ou le Festin de Pierre.
Don Giovanni é uma obra-prima não somente pela música genial e soberbamente eficaz de Mozart, mas também pela grande possibilidade de leituras que ela suscita e por seu sentido até certo ponto ambíguo: a obra que, em seu desenvolvimento, louva a liberdade e é bastante provocadora tem um final moralista e restaurador da ordem. E nessa oscilação entre revolução e ordem, vontade e razão, puro desejo sexual e amor, comédia e drama, reside a sedução e o fascínio que não somente o personagem Don Giovanni, mas a própria ópera como um todo exerce há 226 anos na audiência.
Há quem diga que Don Giovanni seria uma das cinco melhores óperas de todos os tempos. Ainda que essas classificações sejam sempre questionáveis e possam variar de gosto para gosto, jamais existindo uma verdade absoluta, confesso não ter argumentos para discordar desta afirmação. Pelo contrário, fico com Charles Gounod, para quem esta ópera representa “uma espécie de encarnação da impecabilidade dramática e musical: considero-a uma obra sem mácula, de uma perfeição sem intermitência, e este comentário não é mais que o humilde testemunho de minha veneração e de meu reconhecimento pelo gênio a quem devo as alegrias mais puras e mais perenes de minha vida de músico” (GOUNOD, CHARLES. O Don Giovanni de Mozart. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 9 – tradução de Marcos Bagno).
A produção do Municipal de Santiago do Chile, ora levada no Theatro Municipal de São Paulo, é assinada por Pier Francesco Maestrini, e estruturalmente segue a linha do Rigoletto que o diretor apresentou no Rio de Janeiro em 2012. Com uma tela separando o proscênio do interior do palco, e utilizando-se de projeções ao fundo para alterar habilmente cada ambiente da trama, uma vez mais Maestrini atinge um resultado visual de grande beleza e, a exemplo daquele Rigoletto, escuro, noturno, lúgubre.
Na visão do diretor, Don Giovanni é uma criatura da noite, assim como Drácula, personagem da obra homônima de Bram Stoker celebrizado pelo cinema. Para Maestrini, “uma comunidade aparentemente sã é afetada pela incursão de uma força alienígena que começa a consumi-la por dentro”. Ainda segundo o diretor, na defesa de sua concepção, publicada no programa de sala, “Don Giovanni e Drácula são criaturas noturnas: vivem e agem na escuridão; são fisicamente e mentalmente irresistíveis aos que procuram”. Com isso, o protagonista é caracterizado como um vampiro.
Até aqui, tudo segue muito bem, pois esta concepção vampiresca não compromete, por si só, o entendimento do drama. Os problemas começam quando descemos aos detalhes. Primeiramente, uma das principais características desta obra é o fato de Don Giovanni, apesar da fama de conquistador, não ter nenhum sucesso claramente consumado em suas investidas durante a trama (em Mozart e da Ponte, ele não “pega” ninguém). Na atual versão, porém, o vampiro conquistador crava os dentes tanto em Donn’Anna, quanto em Zerlina; e estas repassam a mordida, mais adiante, a seus respectivos noivos. A mordida dos vampiros deve, aqui, ser entendida como uma metáfora do ato sexual. Don Giovanni, portanto, consuma seu desejo na versão de Maestrini – o que, pelo que se depreende, não era o desejo dos autores.
No final da ópera, há pelo menos mais dois equívocos importantes. O primeiro: Leporello informa a seu senhor que o homem de pedra (a estátua do Comendador) chegou para a ceia para a qual fora convidado, e imita aterrorizado o som dos seus passos (ta, ta, ta, ta). Apesar disso, vemos o espectro do Comendador – e não sua estátua – aparecer num grande espelho. Isso não faz sentido, pois, do contrário, o que a estátua vai fazer na casa do protagonista? Dar uma voltinha? Para que o espectro, se basta a estátua? Como não dá para tirar a estátua da música e do libreto, sua ausência nesta cena importantíssima comprometeu o resultado dramático da passagem.
O segundo equívoco refere-se à cena final. Maestrini coloca os solistas vestidos de gala e não com os figurinos que trajavam até então, optando por uma cena com o único objetivo de proferir a moral final, e esvaziando seu sentido dramático. No original, os personagens chegam à casa de Don Giovanni acompanhados de oficiais de justiça que vão até lá para prendê-lo por seus crimes, momento este em que todos são informados por Leporello do fim sinistro do protagonista, e só depois cantam a moral. Esta opção do diretor, ao propor uma espécie de moral externa à trama, além de não funcionar nada bem dramaticamente, ainda priva o ouvinte/espectador de parte da música de Mozart (boa parte da cena foi cortada). E qualquer corte na música do mestre, ainda que de poucos compassos, é crime inafiançável.
Esclarecidas estas restrições, o cenário único de Juan Guillermo Nova funciona muito bem dentro da concepção do diretor: a cada mudança de cena, ocorre a troca da projeção de fundo, bem como as grandes colunas no palco mudam seu posicionamento de forma a melhor ambientar a ação. O cenário e as projeções são bem valorizados pela luz tênue de Pascal Mérat, mantendo o caráter soturno da concepção. Muito bonitos e muito bem executados são os figurinos de Luca Dall’Alpi, ainda que não se vejam camponeses em cena (sua única falha de concepção). A coreografia de Raymundo Costa é correta e não compromete.
Na récita de 14 de setembro, o Coral Paulistano, preparado por Bruno Facio, esteve bem. Dentre os solistas, o barítono austríaco Norbert Steidl foi um correto Masetto e, ainda que precise desenvolver mais sua projeção, demonstrou uma voz leve e adequada à sua parte e cantou com correção sua ária Ho capito, signor sì. Já o tenor ítalo-argentino Pablo Karaman foi um Don Ottavio discreto, ainda que tenha interpretado bem suas duas árias, Dalla sua pace e Il mio tesoro intanto, sobretudo esta última.
O baixo norueguês Jens-Erik Aasbø (Comendador/estátua/espectro no espelho), começou devagar na cena do assassinato do Comendador, mas mostrou-se bem mais consistente e convincente na grande cena do jantar na casa do protagonista, Don Giovanni, a cenar teco, na qual demonstrou grandes dotes dramáticos. A Donna Elvira da mezzosoprano italiana Monica Bacelli também cresceu ao longo da récita e ofereceu alguns momentos muito bons, dentre os quais o terceto Ah, taci, ingiusto core e a ária Mi tradì quell’alma ingrata, além de uma ótima interpretação cênica ao longo de toda a noite.
Certamente a maior decepção foi a Zerlina da soprano gaúcha Luísa Kurtz. Grande destaque da produção de A Volta do Parafuso no Theatro São Pedro em junho último, escrevi à época sobre a voz da cantora: “(…) bem projetada na acústica amigável do São Pedro (é preciso ainda conferir sua projeção num palco maior, naturalmente)”. Meu cuidado ao escrever sobre ela em junho foi justificado por sua própria atuação agora no Municipal.
Nada na performance de Kurtz chamou mais a atenção do que sua discretíssima projeção, que a fez por vezes restar quase inaudível e prejudicou suas principais passagens, como as árias Batti, batti, o bel Masetto e Vedrai carino, além do sempre aguardado dueto Là ci darem la mano. A soprano tem uma voz com outros predicados, mas se não desenvolver sua técnica de projeção, se não passar a projetar a voz como manda o manual, o futuro só lhe reservará as salas de pequeno porte e de acústica amigável. Espero que ela queira mais do que isso e que entenda estas palavras como um desafio no melhor dos sentidos, pois eu não gastaria dois parágrafos se não considerasse que valeria a pena.
Outro brasileiro, o baixo Saulo Javan, que já substituíra seu colega italiano Davide Luciano a partir do segundo ato na récita de estreia, voltou a assumir a parte de Leporello, desta vez desde o início. E não fez feio, pelo contrário. Como o grande personagem bufo da ópera, Javan arrancou boas gargalhadas da plateia com as tiradas espirituosas e até abusadas do servo do protagonista. Em suas principais passagens, como as árias Madamina, il catalogo è questo (uma das grandes árias de todo o repertório de baixo-bufo) e Ah, pietà, signori miei, o dueto com Giovanni O statua gentilissima, e ainda toda sua participação na cena do jantar, o artista demonstrou uma voz segura, ágil e bem projetada, e também grande domínio da cena. Um belo Leporello, sem dúvida.
Outro excelente destaque desta montagem foi a Donn’Anna da soprano húngara Andrea Rost, que demonstrou grandes qualidades para enfrentar aquela que talvez seja a parte mais exigente desta ópera em termos de expressividade – e também a mais séria. Dona de uma voz bela e rica, bastante expressiva e muito bem projetada (a melhor projeção da noite), Rost soube se destacar em passagens como suas grandes árias Or sai chi l’onore e Non mi dir, bell’idol mio. A artista soube transmitir, ao mesmo tempo, a dor pela perda do pai e o desejo de vingança desta personagem nobre. Nobre não somente pelo status social, mas também de espírito. Uma curiosidade é que Andrea Rost foi aluna, na Hungria, de Zsolt Bende, o mesmo professor que orientou o baixo-barítono brasileiro Lício Bruno na Academia Franz Liszt, em Budapeste.
Chegamos ao protagonista. Como o conquistador/vampiro Don Giovanni, o baixo italiano Nicola Ulivieri apresentou uma performance vocal e cênica que cresceu no decorrer da récita. No primeiro ato, um pouco mais preso, teve dificuldades na terrível ária Fin ch’han dal vino. No segundo ato, parecendo mais solto, teve seus melhores momentos, como na canzonetta Deh, vieni alla finestra e na ária Metà di voi qua vadano. Sua grande cena foi, como não poderia deixar de ser, a do jantar. Desde as jocosidades iniciais trocadas com Leporello, passando pelas ironias sarcásticas lançadas sobre Donna Elvira e pelo dramático embate com o espectro do Comendador, até ser inapelavelmente tragado pelo inferno, ali tínhamos um grande Don Giovanni, ainda que, cenicamente, a direção tenha preferido frisar ainda mais seu aspecto vampiresco neste momento derradeiro.
Durante toda a noite, a Orquestra Sinfônica Municipal esteve bem, chegando a oferecer alguns momentos de bela musicalidade, com destaque para a expressividade dos violoncelos – coisa rara em se tratando de Mozart no Brasil, pois, na maioria das vezes, a clareza cristalina da escrita do mestre desnuda nossos conjuntos, e suas deficiências se tornam escancaradas. Apesar dos vários pontos positivos acima descritos, em meio a outros negativos em menor quantidade, houve em muitos momentos aquela sensação de que faltava alguma coisa, como um elo ligando as partes, e isso pôde ser notado sobretudo nos números de conjunto. Quando esse tipo de coisa ocorre, o responsável geralmente está no pódio. E quem lá estava era o regente israelense Yoram David, a quem faltou cumprir a tarefa de conferir unidade à interpretação deste magnífico capolavoro.
Não obstante os senões acima narrados, um Don Giovanni sempre vale a pena, principalmente considerando-se a raridade das encenações de óperas de Mozart no Brasil. Quando você, como eu, mora em uma cidade em que o teatro de ópera local só sabe montar, em termos de Mozart, A Flauta Mágica (vai repeti-la em 2014 pela terceira vez desde 2004, sem cogitar qualquer outro título do gênio de Salzburg), aí é que não se deve mesmo perder um Don Giovanni.
A próxima produção da temporada lírica do Theatro Municipal de São Paulo terá, em oito récitas a partir de 15 de outubro, um programa duplo incluindo as óperas Jupyra, de Francisco Braga, e Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni. Declinarei dessa vez, e voltarei a São Paulo em novembro, para conferir a última récita de O Ouro do Reno.

Leonardo Marques

Fonte: http://www.movimento.com/

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