QUANDO DEUS DÁ A FARINHA... CRÍTICA DE FABIANO GONÇALVES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Ópera de Stravinsky não encanta em Municipal semivazio.
A Carreira do Libertino 

A expectativa era grande para a apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira – Ópera & Repertório no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na noite de 29 de novembro. Além da regência do respeitado maestro Jamil Maluf, a OSB – O & R tinha em programa a ópera A Carreira do Libertino (The Rake’s Progress), de Igor Stravinsky, com duas estrelas internacionais: o tenor mexicano Emilio Pons e a soprano cubana Elizabeth Cavallero. Mas, parafraseando o ditado popular, quem colocou os convidados estrangeiros no saco e roubou a cena foi o barítono Homero Velho, interpretando o diabo em pessoa.
O libreto, escrito pelo poeta W. H. Auden (com colaboração de Chester Kallman), a partir de uma série de gravuras do pintor e ilustrador William Hogarth que seduziu Stravinsky em 1947, conta a história dos namorados Tom Rakewell e Anne Trulove, que se vê separado pela chegada do desconhecido Nick Shadow, trazendo a notícia de uma herança para Tom – o que o obrigará a partir para Londres e entregar-se a uma vida de prazeres sem limites, deixando para trás sua vida e seu amor. Como Fausto, Dorian Gray e tantos outros, Rakewell (ainda que sem saber) vende sua alma ao diabo, encarnado em Shadow, que realiza seus desejos imediatos.
No cômputo geral, o brilho dos convidados estrangeiros foi tênue e sublinhou ainda mais o talento dos cantores brasileiros que participaram da récita. Cavallero, dona de voz límpida e sem artifícios, mostrou, ainda que sem grandes voos, maturidade vocal e ótima projeção, particularmente, na terceira cena do primeiro ato, a partir do recitativo No word from Tom (mesmo perdendo a afinação na parte a capella). Pons, com pouca desenvoltura e buscando alguma segurança ao não desgrudar os olhos do maestro, foi pouco expressivo (melhorando um pouco apenas após o intervalo no meio do segundo ato).
osb2 Quando Deus dá a farinha...
Carolina Faria e Ivan Jorgensen
Com competência, mas sem especial encanto, o baixo Murilo Neves encarnou o pai de Anne, sr. Truelove. A mezzo soprano Carolina Faria (como Mamãe Ganso e, em especial, como Baba, a Turca), como de praxe, arrebatou a plateia com sua vívida presença cênica e voz de timbre único. Fez bonito também tenor Ivan Jorgensen (encantando por dez minutos como o leiloeiro Sellem, substituindo, de última hora, Wladimir Cabanas). Sua cena do leilão, dialogando com um excelente coro de cantores, soou impecavelmente harmônica.
Figura sedutoramente encantada com sorrisos e mesuras (e até traquitanas tecnológicas, como smartphone e tablet), o coisa-ruim Nick Shadow de Homero Velho foi, de fato, o maior ponto focal da apresentação. Além da ótima desenvoltura cênica – sua entrada no palco já foi eletrizante –, sua voz potente e faiscante revelou nuances e chegou a cobrir mesmo os metais da orquestra. Encarnando o mal sem exageros, polarizou a peça com o bem representado pela angelical Anne de Elizabeth.
osb1 Quando Deus dá a farinha...
Homero Velho e Emilio Pons
A OSB – O & R comportou-se bem sob a batuta de Maluf, executando corretamente a partitura de aparente simplicidade, mas curvas sinuosas. Merece destaque o belo solo de trompete do início do segundo ato. Entretanto, em análise geral, não fluiu tanto o humor irônico decorrente do pastiche oblíquo que Stravinsky fez do estilo classicista mozartiano (de Don Giovanni a Così fan Tutte). Ao apagar das luzes, o que fica na lembrança é o sorriso dissimuladamente malévolo de Homero Velho enquanto levava o saco e roubava a cena.

Fabiano Gonçalves

Fonte: http://www.movimento.com/

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