ARTE DO CANTO.

Maestro, empresário, musicólogo, ensaísta e jornalista, o maestro Salvatore Ruberti é um dos mais importantes nomes da história da ópera no Brasil. Junto com Silvio Piergile foi um dos organizadores dos Corpos Estáveis do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Seu nome está ligado a temporadas líricas memoráveis. Por 17 anos foi Diretor Artístico do TMRJ e estava a frente da última grande temporada internacional realizada no Rio, em 1964. Como ensaísta publicou livros sobre Carlos Gomes que são referências indispensáveis, entre eles "Carlos Gomes" (Irmãos Vitale, 1955); "Carlos Gomes, uma obra em foco", com Mário de Andrade, Andrade Muricy e outros (Funarte, 1987); “O Ignorado Carlos Gomes” (Cultura, 1971) e “O Guarany e Colombo, de Carlos Gomes” (Editora Laudes, 1972), e uma infinidade de artigos como o curioso “Maneira pela qual NÃO se deve cantar ‘Come serenamente el mar’, de Lo Schiavo” (publicado na Revista Brasileira de Música. 1940). Ruberti era italiano e amava o Brasil, onde chegou pela primeira vez em 1918, como maestro substituto de uma companhia lírica. Aqui ficou e naturalizou-se cidadão brasileiro. No final da vida, em 1974, batalhava na imprensa pela ópera nacional e pela reedição das obras de Carlos Gomes. Com muita justiça, o maestro Ruberti dá nome a uma praça em Campinas. Por cerca de vinte anos assinou a coluna “Música” no extinto Diário da Noite, um dos jornais mais influentes do Brasil no século passado. Muito do que escreveu é ainda atual. Ou atualíssimo, como este “Arte do Canto”. (Henrique Marques Porto)

Arte do Canto

O que deveriam conhecer os “novatos” sobre a arte do canto.

Savatore Ruberti

Asselin(*), o notável pensador francês, disse que: “as duas categorias de indivíduos insuportáveis são: os homens que creem serem gênios e as mulheres que se acreditam irresistíveis”. Evidentemente ele não conhecia os cantores e, de modo especial, os cantores falhados, de outro modo os teria posto no topo da lista de sua coleção de insuportáveis. Porque todos, indistintamente todos, acreditam que são dotados de qualidades excepcionais -inatas, dizem eles- que os indicam para as mais importantes interpretações dramáticas. Ainda não aprenderam a emitir algum som que preste e já sonham e querem cantar óperas, e as mais difíceis e mais inadequadas a seus meios vocais.

“Eu sinto fortemente as personagens de Manon Lescaut e Violeta, de Tosca e de Norma” –diz uma- e tenho certeza de as poder interpretar magnificamente”.

Entretanto não sabe que suas qualidades vocais estão muito longe das que se exige daquelas partes; e se, acaso, ela sente aquelas personagens, o público não as individualizará nunca se forem interpretadas por ela. Para cantar o papel de Manon Lescaut, de Puccini, é preciso ter voz para prodigalizar, assim como para a Tosca e para a Norma; é necessário técnica perfeita, conhecimento de cambiantes, de entonação, musicalidade miraculosa. Quanto á Traviata, todo cuidado é pouco no adestramento da voz, principalmente quando se pensa que as dificuldades não são somente as que derivam da agilidade, mas ainda do acabamento daquelas melodias que são pedaços d’alma sobre as asas do canto.

As óperas foram compostas para serem cantadas e não para serem sussurradas ou berradas. Verdi, Puccini, Bizet, Bellini queriam o canto de uma bela voz para suas melodias, assim como requeriam aos instrumentistas sons belos e harmoniosos. Quando Wagner pedia à orquestra para “dégager la melodie” fazia-o com a intenção de ver aparecer uma fonte especial de beleza sonora através das harmonias instrumentais; não pensava sequer na possibilidade de ter que suportar um violino surdo, um oboé estridente, uma clarineta irritante; antes e acima de tudo queria um belo som para determinada frase musical, e ao mesmo tempo pedia um volume sonoro capaz de elevar-se da trama sinfônica para poder-lhe sobressair, para dominar.

Não é bastante ter-se por soprano dramático; é preciso não tornar-se soprano trágico, e a tragédia dessa voz recai sobre a ópera e a aniquila inevitavelmente.

Numa ária, num dueto, numa ópera enfim, não existem pontos difíceis, passagens perigosas, notas muito graves ou muito agudas. Há unicamente a música, que deve ser executada, interpretada como foi escrita pelo autor e, portanto, sem restrições de técnica ou de voz.

É inútil sofismar, afirmando que a Traviata está mal escrita para a voz de soprano, porquanto no primeiro ato se requer um soprano ligeiro ao passo que no resto da ópera é necessária uma voz mais ampla e robusta, isto é, pelo menos a de um soprano lírico. São quezílias estas de quem não tem voz verdadeiramente teatral. A Patti (Adelina Patti) cantava a Traviatae a Aida, e Verdi ficava contentíssimo. Por que? Porque a Patti tinha uma voz de teatro e não um fiozinho de voz, e depois porque sabia deveras cantar.

Quando me dizem que o final da ária de Madame Butterfly, “Um bel di vedremo”, é perigoso por causa da palavra “aspetto” em um si bemol, dá-me vontade de rir. E pergunto de mim para mim: mas será possível que um soprano que deveria cantar bem a entrada de Cio-Cio-San, no primeiro ato, emitindo um belo re bemol superagudo e finalizar o dueto do mesmo ato com um do sustenido, também superagudo, deve preocupar-se com um si bemol agudo, que tem as duas melhores vogais para o canto –“e” e “o”?

É verdade que se me objetará que não são muito fáceis nem aquela entrada nem o final. Mas então responderei que não se deve cantar Madame Butterfly quando não se é dotada de notas agudas de fácil emissão e volume amplo, e quando não se tem uma boa escola de canto; assim como não se deve ter a petulância de querer cantar Norma ou Manon Lescaut, ou Toscaou Trovador, se a voz não é de bom volume. Seria o mesmo pretender executar com o violino a parte de um violoncello, ou com o oboé a de um clarone.

Cada papel deve ser cantado com voz adequada. Forçar a natureza, impondo esforços excessivos para a própria voz, significa condenar os próprios dotes vocais a um deperecimento cada vez mais acentuado, reduzindo o volume, a extensão da gama, fazendo aparecer inesperadamente aquele chevrotement que é o fim da atividade artística de muitíssimos cantores.

Olhando em torno, de casos patológicos de tal gênero que acabo de indicar, descobre-se uma porção. Quantas esperanças perdidas, quantos sonhos desfeitos, quantas vozes destruídas!

Nenhum exagero existe nestas minhas palavras. É uma verdade, amarga se quiserem, mas infelizmente confirmada a cada dia e do modo mais inexorável.

(Publicado no “Diário da Noite”, na coluna “Música”,em 21 de junho de 1951)



(*) Pode ser uma referência a Olivar Asselin-ensaísta, pensador, polemista e jornalista- que não era francês, mas canadense.

Fonte:
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
http://hemerotecadigital.bn.br/

Fonte: http://www.operasempre.com.br/

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