O ESPELHO D'ÁGUA DE KATIA KABANOVA. CRÍTICA DE ALI HASSAN AYACHE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.



Leos Janácek compôs parte expressiva de sua obra nas duas últimas décadas de vida. Um amor fulminante por uma jovem, de então 25 anos de idade, fez a inspiração do compositor tcheco aflorar de maneira arrebatadora. A Raposinha Esperta, Da casa dos Mortos, O Caso Makropolus e Katia Kabanova pertencem a esse período de grande inspiração. A ópera em três atos Katia Kabanova é, ao lado de Jenufa, a obra prima do compositor. Inspiração elevada ao limite, que representa a dor apaixonada do ser humano.
Música extremamente pessoal, composta com frases curtas e repetitivas que não se adaptam a nenhum gênero. Óperas de Janácek não têm grandes árias e sim recitativos com personagens simples, humildes e alguns deles complexos. O importante em sua obra é a música, que mostra a personalidade dos personagens. A orquestra narra a ação, e nela expressa profundas emoções. As falas são coadjuvantes. Janácek constrói linhas melódicas adequadas a cada personagem de suas óperas, música que reflete o sentimento e o caráter . De beleza única e um lirismo que faz chorar o mais frio dos machistas.
A gravação lançada em DVD e Blu-Ray pelo selo FraMusica e realizada no Teatro Real de Madri, em 2009, tem toda beleza da música de Janácek e muito mais. Uma leitura profunda, inédita e singular do diretor Robert Carsen. O espelho d'água presente em todo o palco e durante toda a apresentação é o personagem principal dos eventos. Símbolo máximo do Rio Volga, em torno dele se passa todo o drama. Tudo é mínino, com a ausência de cenário e uma luz em degradê no fundo do palco, onde cores se alternam de acordo com o desenrolar da peça; a luz do fundo se mescla a um espelho que reflete as cenas aquáticas, em um lindo efeito visual. Uma interpretação inesquecível, irretocável e com unidade durante toda a apresentação. Ópera moderna da melhor qualidade, leitura diferenciada com inteligência que segue o libreto.
Os cantores não colocam os pés na água: as dançarinas, verdadeiras ninfas ou almas perdidas do rio Volga, moldam peças de madeira conforme o desenrolar da ação. Acabam sendo parte do cenário. Mais um efeito de arrepiar. Carsen muitas vezes opta pela expressão em detrimento do canto. O Rigoletto de Felipe Hirsch apresentado no Teatro Municipal de São Paulo em 2011 utilizou esse mesmo recurso do espelho d'água no terceiro ato. Deve ser pura coincidência.
Karita Mattila encontra um equilíbrio entre canto e encenação, foge da cafonice apaixonada e faz uma Katia sedutora e melancólica. Sua voz tem sublime emissão, peso e um timbre pujante. Uma das melhores atuações desse soprano em vídeo. Os demais solistas estão em estado de graça: todos interpretam e assumem seus papéis com realismo e cantam com consistência e segurança.
A Orquestra do Teatro Real de Madri toca com paixão e entusiasmo, parece familiarizada com as difíceis passagens líricas de Janácek. A regência de Jirí Behlolávek é possante e estável. Entende a penetrante música do compositor e a transpõe no teatro.   

   A imagem digital em Blu-Ray é de grande qualidade, e as entrevistas com o diretor e o regente realçam ainda mais as ideias contidas na função.

Ali Hassan Ayache

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