"IL TROVATORE" NO TMSP - ÚLTIMA RÉCITA. CRÍTICA DE ÉRICO DE ALMEIDA MANGARAVITE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.



O enredo é inverossímil, mas o ser humano também é.
Diz-se que o libreto de Il Trovatore se caracteriza por uma série de situações inverossímeis, isto é, improváveis, de difícil ocorrência. Contudo, o ser humano é capaz de executar ações que chocam a maioria de seus semelhantes: crimes sexuais contra crianças, delitos marcados pela violência de gênero – em que o homem trata a mulher como um objeto – e homicídios provocados por discussões banais ocorrem todos os dias, inclusive em países desenvolvidos. Logo, não nos parece razoável criticar de maneira impensada algumas das escolhas de Giuseppe Verdi e de seu libretista Salvatore Cammarano. Afinal, se o texto é carregado, isso se deve ao fato de que não há limites para a maldade humana. Dito isso, o que presenciamos em 22 de março de 2014 no Theatro Municipal de São Paulo foi uma récita histórica. Desde 2001, Il Trovatore não era encenada no maior palco paulistano. Seu retorno foi em grande estilo.  
A direção cênica de Andrea De Rosa convenceu, reunindo mais acertos que erros. Tradicional sem parecer datada, teve o grande mérito de não tentar iludir o espectador (ressalte-se que, há exatos dez anos, o mesmo teatro encenou um Don Carlo de triste memória). Os figurinos de Alessandro Ciammarughi acompanharam a concepção do diretor. Destaque para a boa iluminação de Pasquale Mari e para a cenografia deSergio Tramonti – muito impactante o cenário alusivo à torre em que sofrem os prisioneiros do Estado, no início da quarta parte. A ideia de manter uma fogueira em cena do início ao fim da ópera foi interessante; todavia, sentimos falta de uma estrutura mais imponente, principalmente na morte de Manrico. O duelo entre o Trovador e o Conde, no final da primeira parte, também ficou abaixo das expectativas: a impressão que se teve é a de que Manrico tinha o corpo fechado, tamanha a facilidade em dominar seu rival. Talvez a intenção do diretor tenha sido a de destacar o caráter romântico do personagem, uma vez que em nenhum momento se viu o Trovador portar consigo uma espada. 
Quanto aos aspectos musicais, podemos afirmar sem sombra de dúvidas que o público saiu extremamente satisfeito do teatro. Excelente atuação do Coro Lírico Municipal de São Paulo, preparado por Bruno Greco Facio, com especial distinção para as vozes masculinas. Boas atuações dos coprimários Walter Fawcett (mensageiro),Leonardo Pace (velho cigano), Eduardo Trindade (Ruiz) e Ana Lúcia Benedetti (Ines), com destaque para a última. Vozes com timbres adequados e de boa projeção, cumpriram corretamente seu papel. O baixo hispano-brasileiro Felipe Bou(Ferrando) apresentou-se de maneira correta, percorrendo com destreza seu “racconto” na primeira parte.
Os quatro protagonistas merecem copiosos elogios. A mezzo-soprano paulistanaDenise de Freitas foi, em nossa opinião, a que melhor desempenhou seu papel em cena. Isto porque simultaneamente cantou e atuou de modo impecável. Atraiu total atenção do público em “Stride la vampa!” (uma vez que ainda havia alguma dispersão, possivelmente em razão do modo como ocorreu o duelo entre Manrico e Luna na cena anterior) e manteve a homogeneidade ao longo de toda a récita.  Timbre escuro, sinistro nas notas mais graves, e agudos de excelente qualidade; magnetismo cênico ao interpretar a cigana que, segundo o próprio Verdi, tem os “sentidos oprimidos, mas não é louca[1]”.  Ressalte-se aqui que a direção cênica acertou ao retratar Azucena como uma pessoa proscrita dentre os próprios ciganos, minoria étnica que historicamente sofre com o preconceito. Azucena se fazia acompanhar o tempo todo por uma mãe solteira, uma pessoa com deficiência e uma negra com sofrimento mental, constituindo tais mulheres um grupo isolado: mais uma prova de que o ser humano é capaz de protagonizar atitudes inverossímeis.
De excelente nível a participação do barítono paulistano Rodolfo Giugliani. Timbre de autêntico barítono verdiano, em que se destacaram os agudos de duração generosa e emitidos com “squillo” e grande projeção. Atuou de modo elegante, ressaltando o lado nobre do personagem; no que tange ao lado violento do Conde (a possessividade no que diz respeito à Leonora), esteve mais confortável na segunda metade da ópera. O cantor, ainda na casa dos trinta anos, certamente terá um futuro brilhante pela frente caso saiba conduzir bem sua carreira.
A soprano chinesa Hui He cantou Leonora. Uma atuação exemplar, “da manuale”, como dizem os italianos. A personagem não oferece grandes possibilidades cênicas (principalmente se comparada com a cigana Azucena), de modo que a intérprete precisa de destacar pelo desempenho vocal. E assim ocorreu com a chinesa: domínio do virtuosismo nas passagens mais ágeis (com destaque para a cabaleta “Di tale amor”) e grande lirismo na ária “D’amor sull’ali rosee”. “Pianissimi” emitidos com perfeição, correndo por todo o teatro. Timbre privilegiado e homogêneo. Afinação precisa, inclusive nas notas mais agudas. Pronúncia exemplar do idioma italiano. Soprano lírico de excelente técnica, que tem cantado com frequência nos mais importantes teatros do mundo, Hui He é um dos maiores nomes da cena operística atual. Sua passagem pelo palco do Municipal entrará para a história.
O herói da noite foi o tenor norte-americano Stuart NeillVoz de grande projeção, estentórea, fraseado de bom gosto e boa técnica de canto compensam as limitações cênicas.  Esteve muito bem na segunda parte da ópera, em seu dueto com Azucena (destaque para “Mal reggendo all’aspro assalto”, trecho cantado com grande arrojo até a derradeira frase “non ferir”, emitida de modo exemplar em um comovente “pianissimo”). Não foi tão bem em “Ah, sì, bem mio”, cantada de modo apressado e sem muita atenção às dinâmicas; contudo, ao chegar à cabaleta “Di quella pira”, Neill mostrou suas melhores qualidades. Em que pese a transposição do trecho – prática tão tradicional como a inserção das notas agudas não escritas por Verdi -, o tenor cantou o “da capo” da cabaleta e prolongou por um bom tempo o agudo final em “all’armi”. Obviamente, não se pode analisar a atuação de um tenor com base somente em “Di quella pira”; porém, uma interpretação empolgante tem o condão de causar furor na plateia. E foi o que aconteceu nessa récita: após longa ovação e pedidos de bis, Neill atacou novamente a cabaletta, cantando-a mais uma vez com bastante êxito. Visivelmente emocionado com a reação do público, Neill passou a atuar com maior desenvoltura até o término da ópera, sendo aplaudidíssimo ao final da récita.
A regência esteve a cargo de Gabriel Rhein-Schirato, sendo que todas as demais récitas haviam sido conduzidas pelo diretor artístico do Municipal. Pois bem: Rhein-Schirato cumpriu muito bem o seu papel, demonstrando grande aptidão para a função de regente de ópera. Acompanhou os cantores, jamais os encobrindo e oferecendo em todo o tempo o necessário suporte. Soube levar a música adiante sem maiores percalços no único atropelo significativo da noite (na segunda estrofe do “Miserere”, quando Hui He entrou ligeiramente atrasada).  Em suma: com discrição e eficiência, obteve bons resultados com a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e fez com que os cantores brilhassem – nada mais adequado em se tratando de “Il Trovatore”.
Em suma, uma noite memorável. Esperamos que não se passe mais uma década para a próxima representação desta que é uma das mais queridas óperas do repertório italiano. De preferência, com elencos que mesclem grandes nomes do cenário internacional e alguns de nossos maiores talentos. E, como gritaram alguns dos mais empolgados espectadores ao final da récita, que possamos continuar a dizer “viva Verdi!”.

Érico de Almeida Mangaravite
Fonte: http://www.movimento.com/


[1]  “i suoi sensi sono oppressi ma non è pazza” (trecho de carta de Verdi a Cammarano)

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