"CARMEN" : ORGULHO FEMININO E PAIXÃO ARREBATADA. ARTIGO DE OSCAR PEIXOTO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.





por Oscar Peixoto 
Esta matéria foi postada originalmente no Blog de Oscar Peixoto, no Portal Luis Nassif. 
A íntegra inclui uma Sinopse comentada da ópera. 

Leon Carvalho, o austero diretor do Opéra-Comique (um dos dois teatros líricos mais importantes da França), quase morreu de vergonha ao ver o que aconteceu no seu teatro, quando da encenação daquela “ópera pervertida” em 1875. Na época, havia se deixado levar pelo charme do jovem compositor Georges Bizet(1838-1875), e confiando nos renomados libretistas Meilhac eHalévy, não analisou criticamente o libreto, nem assistiu aos ensaios. Só sabia que se tratava de uma ópera nova, mas não sabia o quão revolucionária era. De forma que, principalmente quando assistiu ao segundo ato passado, como ele dizia, numa “daquelas casas”, com contrabandistas, ciganos, mulheres livres e “liberais”, bebendo manzanilla e fumando acintosamente, Leon ficou profundamente chocado. Afinal, sua casa de espetáculos era respeitável e seus frequentadores a nata da burguesia francesa – que também reagiu negativamente ao espetáculo. Oito anos depois, em 1883, Leon ainda se recusava terminantemente a reapresentar a ópera Carmen. Dizia enfaticamente: “enquanto eu dirigir o Opéra-Comique, uma cena dessas não será exibida novamente aqui!”


É ainda meio nebuloso o que se divulga sobre o que aconteceu na noite de 3 de março de 1875, quando Carmen estreava no Opéra-Comique. Certamente não teria sido o fracasso clamoroso que, depois, segundo se dizia, iria levar Bizet à morte; a nova ópera lotou o teatro, com espectadores empolgados pelo aceno da novidade e que reagiu favoravelmente durante o primeiro ato, “esfriando”, porém, nos demais.




Há controvérsias sobre a origem das dificuldades encontradas pela ópera em sua trajetória. Primeiro, tratava-se de um trabalho original demais para os aficionados da época, quando, normalmente, as peças tinham um final exemplar, moralista, em que a virtude e o bem sempre venciam o mal e o vício, ainda que às custas do sacrifício de heróis e heroínas; na Carmen, apenas um personagem possuía caráter elogiável, e era um papel secundário (Micaela) que, ainda por cima, perdia a disputa pelo “herói-vilão”. Depois, a contextura musical mostrava-se muito densa, carregada de “harmonias ousadas”, cujo resultado acarretou ao compositor a pecha de wagneriano (os franceses ainda relutavam em aceitar a obra de Wagner). É, inclusive, bastante significativo que, na estréia, os trechos mais aplaudidos tenham sido exatamente os mais convencionais, como o dueto de José e Micaela, no primeiro ato, a canção de Escamillo, no segundo, e a ária de Micaela no terceiro. Há que se ter em conta, também, que tanto o público como os cantores, na ocasião, estavam viciados por determinados costumes: para os tenores (José), por exemplo, era estranho, na única cena parecida com um dueto de amor, contracenar com uma personagem feminina (Micaela) que não era a principal. O tema não era apenas novo e perturbador para o público: a própria montagem oferecia dificuldades fora do comum. E se a assistência reagiu contra a apresentação de mulheres fumando, as próprias coristas relutaram bastante em aprender a manusear os cigarros, dizendo-se mesmo que para algumas a experiência acabou sendo nociva.

O desempenho do meio-soprano Celestine Marie Gallie-Marié (1840 –1905), a primeira intérprete de Carmen, também teria contribuído para chocar a burguesia presente ao Opéra-Comique. Segundo os próprios libretistas (Meilhac e Halévy), ela teria dado ao papel central da ópera uma interpretação ”demasiado realista”, mais próxima da imagem da heroína do conto de Prosper Mérimée: uma cigana sensual, destituída de qualidades morais, cuja filosofia de vida é a liberdade ilimitada, sob a única lei de seus instintos. Os libretistas empenharam-se em amenizar essas características, mas a cantora teria reagido a isso, pretendendo uma imagem mais viva. 

Seja como for, e apesar dos ataques ao compositor, Camile du Locle (um dos administradores do Opéra-Comique) encomendaria outra ópera a Bizet; mas antes que o compositor pudesse entregar algo, faleceria quase três meses após a criticada estréia de Carmen. Era 3 de junho de 1875 eAlexandre César Léopold Bizet (tratado pelos familiares por Georges) desapareceria antes dos 37 anos.

Há quem atribua sua morte ao fracasso da ópera, mas isso é mera suposição, não é fato comprovado. Entretanto, é bem possível que a fria estréia da Carmen tenha contribuído para lhe afetar a saúde, que não era das melhores. Some-se a isso o fato de que Bizet se desgastou, mental e fisicamente, por ocasião dos ensaios da Carmen. Mas, na verdade, sua “causa mortis” nunca foi precisada. Bizet sofria de angina e havia tido febre reumática quando criança, males que podem ter prejudicado seu coração.

Nas vésperas de sua morte, Bizet havia assinado contrato para a apresentação de Carmen na Ópera de Viena. O espetáculo, entretanto, só se realizaria quase quatro meses depois (23 de outubro). Em Viena começa o triunfo de Carmen; depois viriam Bruxelas, Antuérpia, Budapeste, São Petersburgo e Estocolmo. A primeira apresentação da ópera em Londres dar-se-ia em 1878, passando depois para Nova York. 

Finalmente, surge em Paris intensa campanha movida pela imprensa (liderada pel o jornalista Maurice Lefèvre, do jornal Clarion), em protesto à longa ausência da Carmen dos palcos da capital, já que, além de seu êxito no exterior, a ópera vinha sendo aplaudida desde 1878 em cidades do interior da França. Pressionado, Leon Carvalho aceita reprisá-la no Opéra-Comique, já que os próprios libretistas, preocupados com a opinião pública, eram também contrários à participação da “escandalosa” Galli-Marié, apontada como a principal responsável pelo fracasso da obra.

Em 21 de abril de 1883, Carmen retorna à Paris, mas com a comedida Adèle Isaac no papel-título. A produção do espetáculo, entretanto, preocupada com possíveis reações negativas da platéia, empenhou-se em amenizar as partes mais realistas da ópera. Assim, Adèle Isaac teve uma performance bem diferente de sua antecessora, comportando-se com discrição, de acordo com sua reputação de respeitabilidade. A cena da taverna de Lillas, por exemplo, transformou-se num prosaico “café”, frequentado por elegantes fregueses e comedidas dançarinas. Ainda de acordo com esse critério, simplesmente foi eliminada a violenta cena do duelo entre José e Escamillo.

A récita teve enorme sucesso, mas os tormentos de Leon Carvalho em relação à Carmen não terminaram. Carvalho foi intensamente criticado por desfigurar a obra-prima de Bizet. Novamente pressionado, o diretor da Opéra-Comique, acaba por permitir a montagem original do espetáculo. E mais, com a personagem “depravada” inicial! Galli-Marié volta triunfante ao elenco, dessa vez derrubando todas as acusações que lhe fizeram e angariando aplausos entusiásticos da crítica especializada. Finalmente Carmen vencia na França!

A ópera atingiria sua tricentésima apresentação, no Opéra-Comique, em 1887, e a milésima ocorreria a 23 de dezembro de 1904. Em 25 de outubro de 1938, por ocasião do centenário do nascimento de Bizet, o Opéra-Comique levava a ópera pela 2271ª vez. 


Coisas do destino, Bizet só atingiu seu grande momento nos últimos anos de vida: em março de 1873 começa a trabalhar em Carmen, terminando-a apenas no ano seguinte, tanto por dificuldades com o Opéra-Comique, como por um ataque de angina, que o obriga a refugiar-se em Bougival. E é ali que morre, em 3 de junho de 1875, três meses depois de receber a Légion d’Honneur, no mesmo dia daquela discutida estréia de Carmen.


Mas sua fascinante e voluptuosa cigana vem encantando até hoje as plateias mundiais. Personagem que se poderia classificar como a mulher total, coquete, vaidosa, sensual, comporta-se com o orgulho e a astúcia da pantera, quando acuada por seus caçadores. Carmen é mestra na manipulação do macho, mas, controvertidamente, é fêmea que se deixa arrebatar pelo amor. Seu enfrentamento final aos rogos e ameaças de Don José, a ponto de sacrificar a própria vida não abrindo mão de sua independência, é um misto de firmeza de caráter, orgulho feminino e paixão arrebatada.

Mas, além da figura extremamente humana de Carmen, outras personagens vivem uma vida real nesta obra revolucionária do teatro lírico: José, Zuniga, Micaela, Escamillo, os contrabandistas, as ciganas... Todas, figuras necessárias neste alucinante mostruário de tipos ibéricos, cuja atmosfera sonora foi criada por um francês que nenhum espanhol poderia superar.

Oscar Peixoto

Fonte: http://www.operasempre.com.br/

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