NO MUNICIPAL DO RIO, UMA "CARMEN" MORNA. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Crítica à violência humana é o ponto alto de uma encenação que só melhora no final.  Enquanto isso, administração da casa assume sua mediocridade.

Uma crítica à violência humana, violência esta contra os animais e, especialmente, contra a mulher, é o que de melhor se pode ver na encenação de Carmen, a famosa ópera de Georges Bizet sobre libreto de Meilhac e Halévy, com base na novela homônima de Mérimée, em cartaz até dia 19 de abril no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
A concepção do diretor brasileiro radicado na Espanha Allex Aguillera, atemporal segundo sua própria definição, começa muito devagar, e não só pela lenta movimentação que vemos no palco logo no começo da récita, mas porque em momento algum a ópera alça voo.  Antes do intervalo, durante os dois primeiros atos da obra-prima de Bizet, tudo fica muito morno, e, em alguns momentos, a encenação beira a frieza.
No primeiro ato, a passagem do coro infantil, por exemplo, é de grande monotonia: as crianças ficam paradas no meio do palco, marchando no lugar, e só o toque de humor no final chama a atenção, quando uma graciosa menininha rouba a cena e encanta o público.
Já no segundo ato, a dança flamenca oferecida é bastante primária, segundo uma amiga conhecedora do assunto, também presente no Municipal.  Em toda esta primeira parte, a encenação só esquenta mesmo quando Don José joga Carmen no chão segundos antes de entoar sua grande ária.  Esta é uma pequena amostra do que veremos mais à frente.
Depois do intervalo, o terceiro e último ato, dividido em duas cenas (há quem diga, equivocadamente, que a ópera tem quatro atos), finalmente esquenta um pouco as coisas e o drama se faz mais presente.  Em todo este terceiro ato, e mais especificamente na cena final, o objetivo do diretor finalmente é bem realizado: criticar a violência humana: contra os animais (representada pela projeção de uma tourada) e contra a mulher – o que soa bastante atual em tempos de uma recente e polêmica pesquisa divulgada pelo Ipea a respeito da tolerância social à violência contra as mulheres.
Atualíssimo, eu diria mais, quando em pleno século 21 ainda existem no mundo muitas culturas retrógradas nas quais as mulheres continuam sendo objetos pertencentes aos homens.  E, mesmo em países desenvolvidos, somos vez ou outra surpreendidos pela descoberta de sequestros de meninas que passam décadas em cativeiro, ou então ouvimos mais uma história trágica do marido/namorado que matou a esposa/namorada só porque ela quis terminar o relacionamento.
Por essa crítica certeira, a encenação de Aguilera merece elogios.  O problema é que cuidar bem apenas do terceiro ato não é suficiente para uma Carmen de verdade e, na maior parte da ópera, o diretor fica devendo.
O cenário único do próprio Aguilera, que se movimenta com o objetivo de mudar um pouco a ambientação de cada cena, é visivelmente mal acabado e só funciona um pouco melhor na cena derradeira.  Além disso, por ser vazado, em muitos momentos deixa a desejar no quesito “sustentação acústica”.  Eu fico impressionado com o fato de alguns encenadores de ópera não ligarem para isso, e mais impressionado ainda com administradores de teatros de ópera que não exigem essa preocupação por parte dos encenadores que contratam.
Os figurinos de Fábio Namatame são bastante simples e comuns, em consonância com a atemporalidade da encenação.  A luz de Eduardo Dantas é quase sempre fria, e um pouco mais sensível na primeira cena do terceiro ato.  A coreografia de Eliane Carvalho, conforme já mencionado acima, é desprovida de maior interesse.
Na récita de estreia, em 10 de abril, o Coro do Theatro Municipal, preparado por seu novo regente titular, Jésus Figueiredo, esteve bem, como de costume; e o Coral Infantil da UFRJ, sob os cuidados de Maria José Chevitarese, não comprometeu.
Já a Orquestra Sinfônica da casa, apesar de algumas derrapadas, esteve muito bem.  A leitura de Isaac Karabtchevsky valorizou diversas nuances da partitura, com destaque especial para a introdução ao segundo ato (apesar de o público teimar em não calar a boca durante boa parte de sua execução…) e para o acompanhamento da grande ária de Micaela no terceiro ato.  Só considero uma pena que um maestro do porte de seu Isaac empreste seu nome a uma instituição semifalida que finge que monta ópera.  Seu Isaac, que certamente não precisa disso, não deveria emprestar seu nome para qualquer um…
A atriz Ada Chaseliov foi uma versão ao mesmo tempo feminina e um tanto masculinizada de Lillas Pastia.  Seu desempenho foi satisfatório, mas sem brilho.  O que Bizet acharia disso, ele que criou uma obra na qual uma mulher sobe no palco para dizer “eu penso, não é proibido pensar”; “Carmen nasceu livre, livre morrerá”?  Não faço a menor ideia!  Mas prefiro crer que, mesmo que não gostasse muito, não chegaria a se zangar, pois, afinal, ele terminou o segundo ato de sua Carmen louvando a liberdade.
Dentre os solistas, estiveram a contento Daniel Germano (Zuniga), Leonardo Páscoa (Morales), Marcelo Coutinho (Dancairo) e Geilson Santos (Remendado).  A mezzosoprano Daniela Mesquita mostrou um belo timbre como Mercedes, mas carece de aperfeiçoar sua técnica de projeção, enquanto a soprano Lucia Bianchinideixou a desejar como Frasquita, emitindo alguns agudos descontrolados e desafinados.
O barítono letão Valdis Jansons foi um desastre como Escamillo, e não tem a menor condição de interpretar essa parte.  Seu grande solo no segundo ato foi de dar pena.  Dono de uma voz sem maiores predicados e de graves vergonhosos, além de medíocre cenicamente, poderia muito bem ter ficado em casa.  Eu confesso que gostaria muito de saber quem é o dono do “cérebro privilegiado” que contratou esta figura.  Será possível que foi seu Isaac que contratou essa nulidade?  Será que o encontrou naquelas estranhas audições realizadas na Itália em 2013?
A mezzosoprano Luísa Francesconi foi uma Carmen apenas razoável.  Eu já imaginava que ela teria dificuldades com o papel.  Sua voz tem uma natureza leve que é perfeita para cantar obras de Mozart e Rossini.  Enfrentar este Bizet, sobretudo num teatro de acústica nada amigável como é o Municipal do Rio, foi para ela uma tarefa complicada.  Talentosa, a Francesconi valeu-se de sua técnica segura para não fazer vergonha como o baritonozinho ali de cima, mas esteve longe de ser uma Carmen a contento.  A Habanera não chegou a empolgar.  Melhorou um pouco no último ato, especialmente na cena final.
Sob o ponto de vista cênico, até por ser uma mulher bonita e dona de um charme bastante particular, a mezzosoprano convenceu mais, embora às vezes parecesse um pouco presa por uma direção excessivamente econômica.  No contexto da crítica à violência contra a mulher, acima relatado, seu desempenho foi exemplar, conseguindo expressar o medo que a cigana sentia do que Don José poderia fazer com ela e, ao mesmo tempo, a firmeza de caráter para não abrir mão de sua liberdade.  Aqui, sim, a Francesconi disse a que veio.
A soprano russa Ekaterina Bakanova foi uma belíssima Micaela.  Começou devagar, mas logo cresceu e já no dueto com Don José no primeiro ato estava ótima.  Seu grande momento, porém, foi na sua grande ária do terceiro ato, Je dis que rien ne m’épouvante, interpretada com intensidade, conjugando canto perfeito e atuação cênica dramática.  Sua voz de lindo timbre e boa projeção (e que poderia ser mais valorizada se o palco não estivesse vazado) merece ser ouvida outras vezes.
O tenor Fernando Portari foi um excelente Don José, não só vocalmente, como também cenicamente.  Soube interpretar com precisão o homem que, aos poucos, vai se deixando dominar pelo ciúme, até se tornar um assassino por não aceitar perder seu objeto preferido – é assim que Don José vê Carmen na concepção da encenação, como um objeto.  Portari cantou lindamente sua ária do segundo ato, La fleur que tu m’avais jetée; e sua cena final com a cigana foi bastante convincente dramaticamente.
Esta Carmen, pois, acabou sendo morna no geral.  E, afinal de contas, o que poderíamos esperar de um teatrinho ordinário que não faz a menor questão de montar óperas?
Direção do Municipal assume sua mediocridade
Há algum tempo, a administração do Theatro Municipal criou no site oficial da instituição uma aba chamada “Municipal em Números”.  Ao clicar nesta aba, o que mais chama a atenção é a parte na qual somos informados que nos últimos 15 anos o Municipal do Rio tem montado uma média de três óperas por ano.  O texto lá publicado, porém, não esclarece que a atual administração da casa é responsável por piorar ainda mais esta média ridícula, pois montou só dois títulos líricos em 2008, 2010 e 2012.  No mesmíssimo lugar, algum desavisado resolveu afirmar que obras como O Voo de Lindenbergh e Os Sete Pecados Capitais são óperas…  Desde quando?
Mas há algo pior do que isso.  Bem recentemente, a direção da casa cometeu um golpe baixo, rasteiro, também no site do Municipal.  Através da aba “Imprensa”, chega-se a um submenu, onde encontramos a aba “Através dos Tempos”.  Clicando nas décadas de 1900 e 1950, temos a impressão de que este será um espaço no qual poderemos ter acesso a várias reportagens a respeito do Theatro Municipal.  Até aí, tudo bem.
O problema começa nas três décadas seguintes (1980, 1990 e 2000), onde encontramos, tão somente, reportagens negativas (algumas bem negativas) sobre o Municipal e seus administradores da época.  E, vejam só, tudo termina em 2007, antes de Carla Camurati assumir a direção da casa.  Pimenta nos olhos do outros é refresco…
O mínimo que se poderia esperar era que o espaço fosse democrático, ou seja, deveria apresentar também tudo de negativo que ocorreu durante a gestão Camurati, especialmente os cancelamentos de óperas, a quantidade inadmissível de títulos líricos apresentados, o orçamento artístico que diminui a cada ano etc… etc…
A aba “Através dos Tempos”, assim como a “Municipal em números”, parece ter um único objetivo: justificar a mediocridade presente da programação e da administração do Municipal com a mediocridade passada.  Carla Camurati poderia concentrar esforços na melhoria da programação atual, mas prefere apontar o dedo para administradores que já estiveram na cadeira que ela ocupa hoje e para os problemas do passado.  É mais fácil e dá menos trabalho.  Ela parece dizer: “somos medíocres, mas eles também eram, vejam só”.  Como se isso resolvesse alguma coisa!
O fato de, em determinado(s) momento(s) de sua história, a programação do Municipal ter sido uma porcaria não significa que ela deva ser uma porcaria para sempre.  E se as administrações anteriores não tiveram competência para resolver o problema, essa é uma responsabilidade da administração atual e do governo estadual que nomeou essa administração.
Se Carla Camurati não quer ter essa responsabilidade, a porta da rua é a serventia da casa.  Se Carla Camurati não se sente capaz – ou não faz questão – de resolver o problema da programação do Municipal, tampouco será com atitudes desse nível que vai convencer alguém da “qualidade” da sua administração.  E usar o site oficial do Municipal para esse tipo de baixeza é uma atitude que ultrapassa a barreira daquilo que costumamos chamar de antiético, pois, afinal, os administradores anteriores tiveram defeitos iguaizinhos aos de Camurati, e dentre eles está o fato de todos terem integrado (Camurati inclusa) governos estaduais de quinta categoria (o amigo do Cavendish incluso).
Admira-me que alguns artistas (maestros, solistas, diretores de cena, etc…) continuem emprestando seus nomes a essa instituição semifalida que é o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo coniventes com atitudes rasteiras como essa que acabo de relatar.
Desorganização e falta de compromisso
Como todo mundo sabe, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro não é nenhum exemplo de organização.  Os ingressos para Carmen começaram a ser vendidos na segunda quinzena de fevereiro, mas somente nesta segunda-feira, 7 de abril, portanto três dias antes da estreia, o Theatro divulgou oficialmente a escalação dos quatro solistas que se revezam como os dois protagonistas.  Isso demonstra uma total falta de respeito para com o público.  O Municipal tem a obrigação de divulgar a escala de solistas de determinado espetáculo, no mais tardar, no mesmo dia em que começa a vender ingressos para esse espetáculo.
E mais: até agora não sabemos o que a casa montará a partir de agosto, se é que vai montar mais alguma coisa.  Não sabemos nem quem são a mezzosoprano e o barítono que cantarão a Salomé, se é que haverá mesmo uma Salomé.  Dona Carla, em pleno abril, ainda não tem essas respostas…
Com uma temporada em andamento, Salomé tem estreia prevista para 111 dias depois da estreia de Carmen.  Quando isso acontecer, ou seja, quando o Municipal estiver indo para sua segunda ópera, o Teatro Amazonas já terá montado quatro, e o Municipal de São Paulo estará indo para a quarta de seis óperas.
Se isso tudo não demonstra total e absoluta incompetência e falta de compromisso, eu assumo minha ignorância, pois não sei qual é o nome que se dá a isso.
Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/
Foto do post: Sheila Guimarães

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