A OUSADIA DE JEREMY DENK NA SONATA CONCORD E NAS VARIAÇÕES GOLDBERB. CRÍTICA DE VIVIANE CARNIZELO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Confesso que entrei na Sala um tanto desanimada. O programa da noite
parecia ser a junção de duas experiências que, sozinhas, teriam grande talento
para o cansaço: a sonata Concord de Charles Ives e as Variações Goldberg de
Bach. Mas assim que Jeremy Denk, o pianista da noite, pisou no palco, eu me
aprumei na cadeira e aplaudi: ele exibia um sorriso iluminado e seu entusiasmo
instantaneamente passou para mim.
A Sonata Concord, composta no início do século XX, é expressão artística
de uma época influenciada pela corrente filosófica transcendentalista. Com
raízes no pensamento de Immanuel Kant e desdobramentos pela Europa, o pensamento
transcendentalista encontrou na cidade de Concord, uma pequena vila da Nova
Inglaterra, Estados Unidos, intelectuais e artistas que se identificaram com a
ideia da existência de um estado espiritual que transcenderia o físico e o empírico.
Charles Ives, influenciado por essa filosofia, compôs a sonata com o objetivo
de resumir seu pensamento sobre o transcendentalismo e mesmo sobre a música,
homenageando quatro escritores da época também envolvidos com a corrente, cada
um intitulando um movimento da peça: Emerson (Ralph Waldo Emerson), Hawthorne
(Nathaniel Hawthorne), The Alcotts (Bronson Alcott/Louisa May Alcott) e Thoreau (Henry David Thoreau).
Entre tantas ideias flutuantes, a Sonata parece apresentar distinções
entre dois mundos, real e transcendental, explorados nas obras literárias dos
escritores acima. Seus mundos líricos criados por palavras ganham sonoridade na
obra de Ives e cores, texturas e formatos nas mãos do talentoso intérprete, que
passou de fortes para fracos explorando a surpresa que passagens abruptas podem
causar. Mas muito além disso, a Sonata é uma grande combinação de referências e
ideias, como citações obsessivas dos acordes iniciais da Quinta de Beethoven,
melodias de salão, passagens dissonantes, ritmos diversos, tudo colocado em uma
elegante desordem, como em uma colagem modernista.
Seria fácil deixar o público se perder em meio a essa profusão de imagens
e emoções que é a Concord, mas de tão apaixonado pela peça, Denk fez com que o
caos parecesse convidativo, e sua habilidade de anfitrião ainda se estenderia a
um momento de mágica sonoridade. Entre melodias delicadas e passagens cortantes
que pareciam atravessar um universo onírico, Denk tirou da cauda do piano, como
quem tira da cartola, uma pequena haste de madeira que, pressionada sobre as
teclas do piano, produziu uma sonoridade eletrizante que percorreu a Sala de
concertos e fez até o mais distraído ouvinte fixar os olhos e apurar os ouvidos
em busca da origem do som. Com uma ousadia incomparável, Denk articulou seus
acordes metálicos e guardou a haste novamente na cauda do piano como uma
criança que guarda um brinquedo com o qual todos se divertiam. A partir deste
momento, ele tinha a plateia em suas mãos.
Aguardei pela segunda parte do recital com ansiedade. Sinceramente, eu
não sabia mais o que esperar do simpático e premiado pianista americano. Ele se
sentou ao piano e começou a tocar as Variações Goldberg, de Bach. Reflexões
sobre o mesmo tema, repetidas e inovadas 30 vezes, por quarenta minutos. E eu,
que havia chegado desanimada, saí da Sala com um entusiasmo infantil, e já
pedindo desculpas ao conde russo, Goldberg e Bach, confesso que demorei
bastante para dormir. A música ainda ressoava em minha alma.
As Variações, raras no conjunto
da obra de Bach, foram escritas em uma situação bastante curiosa: ex-embaixador russo na corte eleitoral da Saxônia, o conde Hermann Karl von Keyserling, acometido por longas noites de
insônia, pedia para o tecladista Goldberg, residente em sua moradia, que
tocasse para que a música o acalmasse e o fizesse dormir. Após mencionar o fato
na presença de Bach, foram compostas as variações. Há de se pensar que sua
execução em uma sala de concertos teria sobre a plateia o mesmo efeito que
tinha sobre o conde. Errado.
Depois
de anos executando a obra e portando uma gravação, Jeremy Denk sabia exatamente
o que fazer para não tornar as variações o princípio do fim de um romance com o
piano. Extremamente lúcido e decidido a não deixar a plateia se abater, Denk
brincou de variar o tema exposto no baixo como um pianista que toca entre
amigos. Mais uma vez entusiasmado, Denk transmitiu toda a beleza da cíclica
obra de Bach.
Denk pareceu, por fim, o tipo de artista que ama o que faz, não importa
onde, com qual repertório, diante da crítica ou da plateia. Inevitavelmente, o
prazer com que toca coloca todas as variáveis em seu favor, transformando a
sala de concertos em uma reunião de ilustres desconhecidos que, por uma centena
de minutos, têm a chance de provar o doce sabor da arte pela arte.
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