BEETHOVEN E O GOLPE MILITAR DE 1964 NO BRASIL. ARTIGO DE RICARDO ROCHA NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Aos meus Amigos, o meu olhar sobre as conexões entre a ópera Fidelio, de Beethoven, e a Ditadura Militar no Brasil, tendo como cenário, ao invés da masmorra de Sevilha, o DOI-CODI do Rio de Janeiro em meio aos "Anos de Chumbo". Gosto tanto da ideia, que já a registrei, para que ninguém a tome para si antes da nossa montagem. Vejam vocês:
Beethoven, que não era um homem de teatro, mas um grande sinfonista, dedicou-se intensamente à única ópera que escreveu, a magnífica Fidelio, que lhe custou 14 longos anos de trabalho e um esforço que, segundo ele próprio em carta para seu libretista Treischke, o levou “às fronteiras do martírio”, assim como lhe “causou as maiores dores de parto e os maiores aborrecimentos”, ainda que, com tudo isso, “seja uma de suas preferidas”.
Mas o que isso tem a ver com os 50 anos que está completando o golpe que nos mergulhou nos anos de chumbo da ditadura militar e custou o sequestro, a tortura, o desaparecimento e a morte de tantos brasileiros que eram contra o regime instalado?
Na realidade, os paralelos são surpreendentes. Para indicá-los, permitam-me uma breve contextualização:
Na passagem do século 18 para o 19, na excitação provocada pelos sucessos da independência americana e da revolução francesa, o desejo dominante era o da eliminação dos tiranos e da tirania, uma vez que não seria mais possível entregar todos os poderes, resumidos em Executivo, Legislativo e Judiciário, nas mãos de um único homem, fosse ele um imperador, um rei ou mesmo um presidente.
Foi em meio a esse caldo cultural e social que Beethoven, um ardoroso partidário dos ideais franceses de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, começou a pensar na temática de uma ópera, motivado pela encomenda de Peter Freiherr von Braun, então superintendente do Theater an der Wien (Viena).
Inicialmente, pensou em trabalhar num projeto de Emanuel Schikaneder, o Vestas Feuer. Porém, finalmente, resolveu que o que queria mesmo era compor uma obra que representasse os valores revolucionários, descrevendo sua revolta pessoal contra qualquer forma de tirania e apresentando os princípios da liberdade política, da justiça social e da fraternidade através da história de um herói inocente, submetido a grandes provações.
Foi quando Beethoven, absolutamente encantado, conheceu o libreto de Jean Nicholas Bouilly para a ópera Léonore ou l’amour conjugal (1798), com música de Pierre Gaveaux e baseado na obra de Ferdinando Paër, a qual contava a história verídica de uma Madame Tourraine que, para salvar seu marido de uma prisão jacobina, travestiu-se de homem. Devido à fascinação especial pela personagem Léonore, provável arquétipo da mulher que sonhava encontrar para si mesmo, foi que Beethoven decidiu-se pela composição de música para a sua ópera -- cujo título mudaria mais tarde para Fidelio (do latim ‘fidelitas’, fidelidade) --, com a participação conjunta de três libretistas: Joseph Ferdinand von Sonnleithner, Stephan von Breuning und Georg Friedrich Treitschke. A estreia da primeira versão deu-se a 20 de novembro de 1805, a da segunda em 29 de março de 1806 e, a da última a 23 maio de 1814, todas em Viena.
A ópera conta-nos a história de um prisioneiro político, Florestan, que havia denunciado um corrupto homem de estado, Dom Pizarro, que o sequestrou e enviou para a masmorra de uma distante prisão em Sevilha, Espanha, a qual estava sob suas ordens.
Florestan, desaparecido, foi dado como morto e, na conexão que propomos com o cinquentenário do golpe militar no Brasil, acaba representando os nossos muitos desaparecidos políticos, particularmente a partir do AI-5, decretado em 1968. Sua mulher, a heroína Leonore, não acredita em sua morte e passa a investigar pessoalmente pistas que corroboram essa sua intuição. E é assim que ela chega às portas da prisão, onde descobre que há vaga para o serviço de assistente do carcereiro chefe, Rocco. Como a vaga é naturalmente masculina, Leonore traveste-se em homem, assume o codinome de Fidelio e consegue o serviço. Em nossa conexão, Leonore representa principalmente as esposas, mas também os familiares que se envolveram na busca de seus parentes desaparecidos durante a perseguição política na ditadura.
Rocco tem uma filha, Marzelline, que tem em Jaquino, oficial da prisão, um pretendente. Porém, com a chegada de Fidelio, o coração de Marzelline é tomado de paixão por Fidelio, sem imaginar tratar-se de uma mulher. Rocco, cada vez mais impressionado com a eficiência e a personalidade de Fidelio, nele vê um bom partido para a sua filha, desistindo da escolha de Jaquino como seu genro.
Leonore precisa fingir-se enamorada de Marzelline, até por que já obteve, de Rocco, a informação da existência de um prisioneiro desconhecido que, por ordem de Dom Pizarro, o diretor da prisão, está sendo alimentado somente com pão e água. Leonore, angustiada pela possibilidade deste torturado ser o seu marido, insiste no seu pedido e convence Rocco, finalmente, a pedir permissão ao diretor para poder acompanhá-lo à masmorra.
Em dado momento, chega Dom Pizarro em visita à prisão e, através de uma carta oficial, recebe a notícia da intenção do Ministro de Estado, Dom Fernando, vir à fortaleza com uma comissão investigar a denúncia de tortura, maus tratos e repressão em condições desumanas aos prisioneiros políticos que ali estão.
Alarmado pela futura descoberta de sua crueldade para com os prisioneiros, o diretor ordena a um oficial que, quando avistar o ministro chegando, toque a trombeta como um sinal. E em relação a Florestan, jogado em anonimato a pão e água no porão e sequer fazendo parte da relação de prisioneiros, oferece muito dinheiro como suborno a Rocco para que ele cave uma fossa na cisterna para Florestan, mate-o lá mesmo e o enterre. Contudo, o carcereiro-chefe, argumentando que matar não é sua atribuição, mostra-se disposto a colaborar desde que apenas cavando a fossa para Florestan.
Vendo que o carcereiro-chefe está interessado no dinheiro, desde que não tenha que assumir o homicídio, Pizarro lhe comunica a sua intenção de se disfarçar e, ele próprio, assassinar Florestan, desde que a fossa seja cavada. Leonore, atrás de uma pilastra, ouve todo o plano, amaldiçoando com raiva o cruel e tirânico diretor da prisão.
Em nossas conexões, Dom Pizarro representa os presidentes e chefes militares que ordenaram a caçada, tortura e morte de seus opositores políticos; Rocco, os agentes policiais ou militares que, à custa de suborno e promoções, aplicaram a tortura e foram coniventes com o desaparecimento de prisioneiros; por fim, a comissão de Dom Fernando pode ser considerada uma metáfora expressiva da atual Comissão da Verdade, investida de poder para a investigação de todas as denúncias de torturas e mortes daqueles anos sob a ditadura.
Final resumido da ópera:
Fidelio recebe a autorização de Dom Pizarro para ajudar Rocco no preparo da fossa na masmorra e, uma vez lá embaixo, mesmo com uma lamparina, não consegue reconhecer o moribundo que jaz desmaiado à sua frente. Promete-lhe, então, que, seja ele quem for, o libertará. Mas o prisioneiro aos poucos vai despertando e ela, emocionada, reconhece a sua voz. Sem que Rocco perceba, dá a ele um pedaço de pão que havia trazido escondido no bolso de seu casaco, pedindo ao carcereiro que lhe seja dado um pouco do vinho que ele trouxe, no que Rocco acaba cedendo após muita hesitação.
Ambos estão preparando a cova quando as trombetas anunciam a chegada de Dom Fernando e sua comissão, o que faz com que Pizarro desça correndo as escadarias com um punhal para matar Florestan. Como todo típico vilão, Pizarro fica perdendo tempo frente ao seu desafeto, Florestan, gabando-se de seu triunfo final e dizendo por que iria matá-lo. Porém, ao partir para fazê-lo, Leonore coloca-se à frente de Florestan e diz à Pizarro que ele terá de matar os dois, porque, na realidade, ele era a sua esposa. Em meio à estupefação geral dos três homens presentes, Pizarro, recobrando-se do susto, diz que então ambos irão morrer. Só que ele não contava com a reação de Leonore, que saca a pistola que trouxera escondida, e, apontando-a para a cabeça de Pizarro, o rende, ordenando-lhe que jogue seu punhal no chão.
Nesse momento, Jaquino desce com uma tropa de soldados da guarda de Dom Fernando, toma pé da situação e carrega Pizarro para cima, onde todos os prisioneiros políticos, anistiados pelo Ministro, já estão recebendo suas famílias e relatando à comissão os maus tratos a que foram submetidos.
Florestan e Leonore, que tinham ficado a sós na masmorra matando as saudades, vêm para cima e deixam todos boquiabertos, em particular Dom Fernando, que descobre que Florestan, seu saudoso amigo, não estava morto como se dizia, e principalmente Marzelline, que descobre que Fidelio era uma mulher e, ainda por cima, casada com o prisioneiro. Rocco acusa Pizarro, fazendo-se de inocente, enquanto Pizarro o denuncia como colaborador e corrupto por ter aceitado o suborno. E quando os soldados começam a tirar as algemas de Florestan, Dom Fernando os interrompe, avisando que esta era uma honra reservada à sua esposa, Leonore, que então o liberta, sob os urros e vivas de todos, que cantam juntos a apoteose final da obra.
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Se você é regente, cantor ou cantora interessado em ópera, venha participar desta Oficina, inédita no Brasil, de Regência, Direção e Interpretação de Ópera, já em sua segunda edição aqui no Rio de Janeiro. A obra a ser trabalhada é Fidelio, de Beethoven, e há vagas também para os amantes do gênero que desejarem apenas assistir, como ouvintes, às oficinas de Regência e Canto.
Este curso, promovido pela Sociedade Musical Bachiana Brasileira em parceria com o Conservatório Brasileiro de Música, terá a minha direção musical, a participação docente da cantora e professora Lorena Espina, assim como da pianista e acompanhadora Eliara Puggina. Mais informações encontram-se neste flyer aqui publicado ou fazendo contato direto com nosso escritório.
Um grande e querido abraço a todos,
Ricardo Rocha
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