"CARMEN", DE BIZET, NO TMSP. CRÍTICA DO ELENCO ALTERNATIVO DE ÉRICO DE ALMEIDA MANGARAVITE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Notícias populares: operária é morta a facadas. O suspeito é um militar.

O enredo de Carmen, ópera de Georges Bizet, é bem conhecido pelo grande público. A história do indivíduo “inconformado com o término da relação” (expressão corrente nos meios jurídicos quando se fala de violência de gênero) que, em um momento de sandice, mata a mulher, faz parte da nossa realidade. Se Carmen se passasse nos dias atuais, em uma grande metrópole do nosso país, possivelmente leríamos a seguinte sequência de manchetes nos jornais sensacionalistas:
Dia 1: Operária é morta a facadas. O suspeito é um militar.
Dia 2: Cabo preso em flagrante pela morte da operária: “foi ciúme”, disse José.
Dia 3: BOMBA! Cabo assassino traiu noiva adolescente antes de matar a operária cigana.
Dia 4: Exclusivo: delegado fala sobre os verdadeiros motivos por trás do assassinato da cigana Carmen.
Dia 5: “Estou triste e não quero falar sobre o assunto” – famoso esportista foi o estopim que causou a morte da cigana. Cabo José continua preso.
Dia 6: DIRETO DA CADEIA! Cabo José fala pela primeira vez sobre o crime da cigana. Veja também: “Ela era muambeira”: amiga de Carmen fala com exclusividade sobre os cambalachos da cigana.
Dia 7: Famoso jurista assume a defesa do Cabo José. “Ele tem direito de responder em liberdade”, declarou o advogado. Fuga de preso: cabo já era encrencado na Corregedoria.
Dia 8: Mãe Mayra revela: “As cartas não mentem!”. Vidente afirma que deu recado à Carmen – o cabo José não tinha limites!
E, podemos ter certeza, o caso permaneceria na mídia em grande evidência até que outra situação igualmente macabra tomasse o seu lugar…
Brincadeiras à parte, o enredo de Carmen, por ser tão atual, atrai multidões aos teatros. Não foi diferente na nova montagem encenada em 31 de junho de 2014 no Theatro Municipal de São Paulo. Casa cheia em um frio sábado à noite. E o que vimos foi uma montagem de excelente nível.
A soprano Andrea Aguilar, de nacionalidade chilena, encarnou Micaëla. Voz de timbre muito bonito, com vibrato agradável e limpidez nos agudos. A combinação entre qualidade vocal e segurança na parte cênica conferiu credibilidade à personagem, uma adolescente do interior que faz de tudo para tentar trazer seu amado Don José de volta para o bom caminho, sem lograr êxito.  Foi ovacionada após cantar sua ária Je dis que rien ne m’épouvante, no 3º ato, interpretada com muito lirismo.
O barítono David Marcondes (Escamillo), em sua segunda participação em um grande papel no Municipal de São Paulo – o primeiro foi Alfio, na Cavalleria Rusticanade 2013 -, a princípio mostrou algum nervosismo. Contudo, ganhou confiança com o desenrolar da récita, mostrando-se cada vez mais à vontade em cena. De fato, no final do 3º ato, ao cantar offstage, o fez com grande competência. Marcondes certamente possui os recursos cênicos e vocais necessários para interpretar Escamillo. Como em suas duas próximas récitas (nos dias 8 e 11 de junho) não haverá mais o problema da ansiedade inerente à estreia, é bem provável que seu desempenho atinja níveis mais elevados. Marcondes cantou bem e, devido a isso, foi muito aplaudido ao final, merecidamente. Contudo, no cômputo geral, esteve um degrau abaixo dos demais protagonistas. Trata-se de um nome a ser observado nos próximos anos. Como exemplo, vale destacar a trajetória do barítono Rodrigo Esteves (intérprete do mesmo papel, no outro elenco empregado nesta produção) que gradualmente se consolidou como um dos grandes cantores líricos do cenário nacional a partir de uma memorável atuação no Don Carlo encenado pelo Municipal em 2004, produção à qual assistimos.
O tenor Fernando Portari mostrou ser possuidor de uma voz amadurecida. Cantor experiente, com técnica vocal consolidada e extremamente seguro no palco, seu desempenho foi memorável, à altura dos grandes nomes que representaram Don José no palco do Municipal de São Paulo em tempos passados. Dicção exemplar, com notável domínio do idioma francês, boa projeção vocal, agudos adequados e timbre homogêneo, inclusive nos graves.  Ao contrário de outros intérpretes que tornam Don José um personagem que se limita a ser ora simplório, ora truculento, Portari conferiu maior humanidade ao militar. O fez por meio de seus dotes como ator e cantor, empregando com mestria e sutileza diversos recursos do canto lírico, como a messa di voce e a variação de dinâmicas em um mesmo trecho.
Aliás, sua interpretação de La fleur que tu m’avais jetée foi emblemática: cantada com grande sensibilidade e atenção ao texto, teve seu ápice no si bemol emitido empianissimo, sustentado com segurança e pelo tempo certo, no final da frase et j’étais une chose à toiInteragiu muito bem com os demais protagonistas, transmitindo ao público uma imagem realista do personagem: a de um homem imaturo, cujo repertório emocional se mostra limitado ao se deparar com situações que exigiriam maior autocontrole e racionalidade. Por não conseguir raciocinar sob tensão e por ter uma imagem idílica do amor, Don José traz prejuízos severos para a própria existência e para as vidas das pessoas que o cercam. Decepciona a mãe, a noiva, seus companheiros de farda e passa de fiel soldado a contrabandista e homicida.
A mezzo-soprano Luísa Francesconi interpretou a protagonista. Não nos delongaremos aqui com prolixas considerações e teses acerca da singular personagem, até porque o que não faltam por aí são textos que tratam do assunto. Em síntese, há quem prefira uma Carmen de voz mais corpulenta, cujos recursos vocais seriam igualmente adequados se empregados em óperas de Richard Strauss ou de Wagner. Por outro lado, boas intérpretes do papel também se destacaram em um repertório mais leve (mas não menos exigente): vide os exemplos de Tereza Berganza, Victoria de los Angeles e Jennifer Larmore. No que tange à presença cênica, o mesmo se aplica: o sucesso ou não da atuação cênica depende do gosto do freguês. Há, porém, que se considerar que Carmen – a personagem – não deve ser analisada de modo superficial, limitando-se a sua qualificação a adjetivos como “vulgar” ou “destruidora de lares”. A cigana é, sobretudo, uma mulher que preza pela própria liberdade. E, ressalte-se, que não engana ninguém: Don José em nenhum momento é ludibriado por Carmen, haja vista que ela desde sua primeira fala já deixa claro qual é o seu modo de encarar a vida.
Nesse sentido, muito nos agradou a interpretação de Francesconi, superando nossas expectativas. Sem recorrer a exageros cênicos e vocais (isto é, sem usar excessivamente de recursos interpretativos mais adequados ao verismo e deixando de lado o emprego insistente da voz de peito), sua Carmen primou pela clareza na dicção, pelo belo timbre, pela adequada projeção vocal e pelo desempenho cênico próximo do ideal. É perceptível o engajamento da cantora, que parece compreender realmente a natureza peculiar da protagonista. E, aqui, acreditamos que devem ser feitos elogios a Portari e a Francesconi: parece-nos que o caminho escolhido, evitando-se alguns excessos que, muitas vezes, são sinônimos de ovações desmesuradas ao final de certas passagens musicais, foi muito mais honesto e atento às intenções originais do compositor. Lembremo-nos: Carmen é uma ópera francesa do século XIX, fruto de toda uma tradição forjada naqueles tempos. Não se pode abordar uma ópera de Bizet da mesma forma que se aborda uma ópera de Leoncavallo. São casos distintos. E os dois cantores mencionados, cientes disso e fazendo bom uso de suas potencialidades dramáticas, brindaram o público com belas e idiomáticas interpretações.
Aliás, falando em interpretações idiomáticas, não podemos deixar de elogiar dois comprimários: os franceses Francis Dudziak (Dancaïre) e Rodolphe Briand(Remendado) destacaram-se entre seus pares. Dois verdadeiros cômicos, entrosados ao extremo e ainda por cima bons cantores! Os demais comprimários, sem exceção, cantaram e interpretaram adequadamente.
Também foi de excelente nível a participação do Coro Lírico (que atingiu padrões elevadíssimos de qualidade em diversos trechos, enchendo o teatro com sua imponente massa sonora), do Coral da Gente (uma bela surpresa, que agradou bastante ao público) e do Balé da Cidade de São Paulo. Méritos aos respectivos regentes e à coreógrafa. Direção cênica, cenografia, figurinos e desenho de luz à altura de qualquer grande teatro mundial. Aliás, devemos ressaltar que poucas vezes presenciamos em um espetáculo tantos momentos em que a coesão entre todos os envolvidos se fez presente com tamanha perfeição.
Acerca da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, algumas observações devem ser feitas: no Pprelúdio do 1º ato a sonoridade deixou um pouco a desejar. Faltou vigor. Todavia, logo a orquestra ganhou corpo e personalidade. Se, a bem da verdade, deslizes aconteceram (uma desafinação aqui e outra acolá), sobrou competência ao longo da récita. Destaque para o belo entr’acte que finaliza o 3º ato, em que a flautista e o clarinetista solistas receberam os cumprimentos do regente.
Temos que destacar a atuação do regente Ramón Tebar. O espanhol domina a partitura. Com gestos contidos quando a discrição era suficiente e movimentos expansivos nos momentos em que maior energia se fazia necessária, Tebar deixou sua marca na récita. Soube enfatizar aspectos muito interessantes da partitura, destacando a riqueza da escrita orquestral de Bizet, e em nenhum momento atrapalhou os cantores. Excelente escolha dos andamentos empregados. Ao final, recebeu o justo reconhecimento da plateia e dos instrumentistas, que fizeram questão de aplaudi-lo espontaneamente. Esperamos revê-lo em outras produções futuras.
Em um país marcado pela violência contra a mulher, é uma pena que histórias como a de Carmen não estejam restritas aos palcos operísticos. Seríamos uma nação melhor se os feminicídios ocorressem apenas em cena e que, depois de assistir a eles, fosse possível ir para casa somente com as boas recordações decorrentes de um espetáculo de alta qualidade artística. Em uma sociedade violenta como a nossa, muitas Carmens e muitos Josés ainda farão parte do cotidiano. Há muito trabalho a ser feito. E parte desse trabalho é, sem dúvida alguma, investir mais em cultura. Mais Bizet, menos homicidas passionais.
Érico de Almeida Mangaravite

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