O GRUPO DE PERCUSSÃO LI BIAO E AS FRONTEIRAS ENTRE O POPULAR E O ERUDITO. CRÍTICA DE VIVIANE CARNIZELO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.



              É raro que um grupo de percussão se apresente nas temporadas dos espetáculos de música erudita de São Paulo. A Sociedade de Cultura Artística, que em 2008 havia trazido o japonês Kodo, apostou, na última semana, no Grupo de Percussão Li Biao. As apresentações ocorreram na Sala são Paulo nos dias 02 e 03 de junho, como parte da temporada internacional.
De liderança chinesa, o grupo é formado por mais seis percussionistas de variadas partes do mundo, todos de rígida formação acadêmica e currículos notáveis, com passagens pelas mais prestigiadas orquestras. Não há dúvida do virtuosismo de seus componentes. Li Biao, quem empresta nome e liderança ao conjunto, nasceu em Nanquim, na China, em 1969, iniciou seus estudos com apenas cinco anos de idade e passou, durante sua formação, por admiradas instituições de ensino na China, Rússia e Alemanha, onde atualmente é professor.
O programa apresentado nos dois dias pelos percussionistas trazia diferenças em algumas obras, mas não em sua estrutura: cobriam a música contemporânea escrita para percussão, como peças de Steve Reich, aclamado compositor da música experimental norte-americana; arranjos de Li Biao de uma grande obra da História da Música Ocidental, como o Concerto Italiano BWV 971 de Bach; e música popular, como suítes de Piazzolla; além de, no segundo dia, uma composição do próprio líder.
Pelo programa previamente divulgado, era de se imaginar exatamente o que aconteceu: no segundo dia de apresentação, o público cativo da Sociedade de Cultura Artística apareceu apenas em parte, deixando muitos lugares vazios. Programas ousados, com alguma relação com a música popular ou mesmo novos arranjos de partituras consagradas correm o risco de não ter total adesão do público. Quem compareceu a alguma das duas récitas, saiu satisfeito. No segundo dia, a plateia, bastante animada, aplaudiu entre movimentos, deixou-se levar pelos ritmos dançantes e, apesar do avançado da hora, pediu mais de um bis.
Para escolhas de estilo ou repertório, a cada ano que passa, há menos certo ou errado, sucesso ou fracasso. Aos poucos, as sociedades artísticas e também o público se abre para algo além do conservador. Alguns dizem da popularização do erudito, ou até da sua banalização, outros, da eruditização do popular. A nomenclatura, em um primeiro momento, não é o que mais importa, mas sim a consciência de que a aceitação do popular em um palco como o da Sala é parte de um grande movimento que engloba não apenas a música, mas a arte: “a dissolução de algumas fronteiras e divisões fundamentais, notadamente o desgaste da velha distinção entre cultura erudita e cultura popular (a dita cultura de massa)”.* O público da Sociedade de Cultura Artística, formado por ouvintes acostumados com as grandes orquestras do mundo, saiu comentando da leveza de uma noite de peças que pareciam ter saído de trilhas sonoras de desenhos animados.
Fredric Jameson, autor da frase entre aspas mais acima, narra que a dissolução das fronteiras é uma característica da época atual, a pós-modernidade. E antes que alguém tire do bolso algum argumento que cite André Rieu, é preciso lembrar que a música que ele produz, bem como seus espetáculos, guarda muitas diferenças da proposta de outros grandes artistas, apesar de também se firmar como um bom exemplo da dissolução de fronteiras entre popular e erudito. Primeiramente, Rieu não se apresenta nos palcos destinados, prioritariamente, à música erudita. O fato de nenhuma de suas dez apresentações deste ano na cidade ocorrer dentro de um teatro parece afirmar que Rieu e sua orquestra não estão preocupados em receber ou não o rótulo da música clássica. Eles fazem música em grandes espaços, cobram um valor elevado por uma entrada, interpretam à sua maneira os grandes clássicos e, enquanto a crítica se divide em opiniões, Rieu procura abraçar todas as experiências que a música pode oferecer.
Vale lembrar outros nomes desgastados pela crítica e comumente colocados ao lado de Rieu, como o de Lang Lang, pianista chinês que, entre recitais de grande prestígio artístico e austeras interpretações, arrepia os cabelos antes de subir ao palco, às vezes ao lado de cantores pop. Lang guarda algumas similaridades com o grupo de percussão. Ambos são chineses e é sabido o quanto a formação em música na China é rígida, tendo início na mais tenra infância e passando por grandes instituições de ensino e concursos internacionais. Mesmo quem não gosta de suas interpretações, precisa lembrar que esta é uma afirmação que diz respeito ao gosto, pois se uma análise fria for feita de seu trabalho, entra em questão seu elevado nível técnico, seu repertório de alta dificuldade e o cuidado com que interpreta as peças que escolhe. Seu trabalho transita com naturalidade entre salas de concerto e palcos de festivais variados porque Lang é um artista múltiplo, o que não tira a qualidade do que ele produz. Quem não gosta de Lang Lang, mas esteve em sua apresentação em São Paulo em 2012, também pela Sociedade de Cultura Artística, lembra que o pianista ao palco era um jovem talentoso de respeitáveis resultados.
O Grupo de Percussão Li Biao também caminha livremente entre estilos, deixando confuso quem procura rotular o trabalho que eles entregam. Suas interpretações são de grande precisão técnica e de força artística indiscutível. Se, em muitos momentos, a Sala pulsou com o som explosivo da percussão, em outros se deixou encantar por melodias e recursos como Loop, repetição de um trecho gravado ao vivo. A combinação de um repertório diverso sem fronteiras rígidas quanto aos limites dos recursos interpretativos, fizeram da apresentação do grupo algo original e criativo sem que o fio condutor das influências eruditas fosse perdido. 
Cada um a sua particular maneira, Lang e o grupo de Li Biao integram um Hall cada vez mais vasto de virtuoses que se esmeram em seus campos de atuação, mas que não deixam de estar atentos à riqueza do mundo que os rodeia, seja ele popular ou erudito. Artistas que não veem fronteiras, que transitam com naturalidade pelo meio artístico, que lotam salas de espetáculos ou ainda as têm um pouco vazias. Não importa. Eles são parte de um movimento crescente que chama atenção dos grandes teóricos, como Jameson, reportado neste texto, seja este movimento algo de curta ou longa duração, que venha a reafirmar por oposição o conservadorismo da música erudita, ou que traga novos ares para os compositores populares, ele deve ser notado.A porosidade entre as fronteiras do popular e do erudito não elimina nenhuma de suas formas puras, pelo contrário, soma novas combinações.
O grande público, a crítica e os grandes artistas e intelectuais ligados à produção cultural não deixarão de voltar atenção às produções operísticas, à música de concerto, aos recitais de piano ou aos novos talentos que surgem inclinados à interpretação refinadas das obras de Bach, Beethoven, Mozart e imortais do mesmo porte. Os rumos que seguem a música erudita, a música popular e o pequeno infinito de combinações que a zona entre uma e outra permite, são decididos no momento presente, quando acontecem apresentações, surgem novos grupos e variações de ideias que já se desenvolviam anos atrás. Cabe aos artistas expor suas tentativas na arte sem medo. Cabe à crítica o olhar cuidadoso, pois mais vale fomentar a discussão e abrir novas perspectivas para que os artistas se sintam livres para ousar do que cunhar uma impressão negativa de algo que ainda está em construção. A contemporaneidade sempre está em construção, por isso é tão importante levantar questões e expor opiniões à luz de um julgamento, o mais livre possível, de amarras ou preconceitos.
E se palcos como o da Sala São Paulo não é o lugar das contemporâneas manifestações da música de concerto, por mais híbrida que ela possa ser em determinados momentos, qual é o lugar delas?

Viviane Carnizelo
palavrasdearte@wordpress.comviviane.carnizelo@gmail.com

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*Referência: FredricJameson em “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, publicado no Brasil por Novos Estudos CEPRAP, número 12. Jameson é professor da Universidade da Califórnia junto ao programa de História da Consciência.

Foto divulgação: Grupo de Percussão Li Biao, 

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