NUMA FAZENDA DA VIRGINIA : " JÚLIO CESAR" , DE HANDEL. CRÍTICA DE JOSÉ NILESTEIN NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Fundation Wolf Trap for the Performing Arts.

Estabelecida em 1971 por Catherine Filene Shouse, numa fazenda de 500 alqueires americanos, no Estado da Virginia, a 50 quilômetros ao sul de Washington, a Wolf Trap Foundation for the Performing Arts foi transformada, anos depois, no Parque Nacional das Artes do Espetáculo. Formando parte de uma rede de 400 parques nacionais, o Wolf Trap, contudo, é o único deles dedicado  exclusivamente às artes do espetáculo. Sua Presidente Honorária é Michelle Obama.
Num teatro parcialmente coberto, e parcialmente ao ar livre, O Filene Center, como é chamado, acomoda cinco mil espectadores, e apresenta, na primavera, no verão e no outono espetáculos de ópera, de orquestras sinfônicas, companhias de dança, grupos de jazz e de rock, musicais da Broadway, solistas, e mais. Os preços dos ingressos variam dos mais elevados aos mais modestos, o que torna as apresentações acessíveis a todas as classes sociais. Os lugares mais baratos são, naturalmente, os mais populares, porque neles, os imensos gramados atraem principalmente jovens, e também porque facilitam piqueniques antes e durante os intervalos dos espetáculos. A vegetação luxuriante da propriedade forma um ambiente de paz e beleza, fator esse que muito contribui para o clima de celebração das apresentações.
Além do Filene Center, Wolf Trap tem um Centro Educacional, onde são ministrados cursos de dança e de arte dramática, palestras, mesas redondas, introduções aos espetáculos e simpósios. Ao lado dele, foi construído um teatro de madeira, chamado The Barns, os celeiros, para a apresentação de recitais de música de câmara e de ópera, o ano inteiro. Com sua própria companhia de ópera, a Wolf Trap Opera programou para o ano em curso “Camen”, de Bizet, prevista para 25 de julho no Filene Center, e acaba de apresentar “Júlio Cesar”, de Händel, no Celeiro, e no Celeiro vai apresentar, em 8, 10 e 16 de agosto, “O pobre marinheiro”, de Darius Milhaud, e “As mamas de Tirésias”, de Francis Poulenc.
Nascido e formado na Alemanha, George Frideric Händel (1685-1759) emigrou jovem ainda para a Inglaterra, e, em Londres fez sua grande carreira, como um dos luminares da história da música ocidental, compondo óperas e oratórios, obras sacras, concertos, musica instrumental, e obras para cravo e órgão. No século XVIII, os libretos para ópera eram escritos, em toda a Europa, principalmente em italiano, e nesse idioma foram compostas a grande maioria das mais de quarenta óperas de Händel.
Dentre elas, destaca-se “Júlio César”, como uma de suas maiores realizações. O libreto de Nicola Francesco Haym, em sua forma original, resultou em quatro horas e meia de música, sem intervalo. Hoje em dia, a versão mais encenada foi reduzida a três horas e meia, incluindo dois intervalos. Em três atos, esta versão conserva, contudo, a estrutura inicial.
A ação, complexa, combina ambição política e paixões amorosas pessoais. Livremente baseada na história antiga, a ação se passa no Egito, onde o imperador romano acaba de derrotar o Rei Pompeu. Traído por Ptolomeu, Pompeu não chega a firmar um acordo de paz com César, porque é decapitado. Cornélia e Sextus, viúva e filho do rei morto, prometem vingança. Horrorizado com este crime, César presta homenagens póstumas a Pompeu.
Nisso, Cleópatra, irmã de Ptolomeu, disputa com ele o trono do Egito e tenta atrair César para contar com o seu apoio na empresa. Durante essa intriga, Cornélia e Sextus são aprisionados por Ptolomeu, que promete liberdade a Cornélia, se ela aceitar o seu amor, que ela rejeita. Em seu palácio, no Monte Parnaso, Cleópatra seduz César, enquanto no palácio de Ptolomeu, seu general Áquila tenta seduzir Cornélia, e é também rejeitado.
Enquanto Cesar e Cleópatra falam em casamento, seu ajudante de ordens, Cúrio, entra e revela a César que ele está ameaçado de morte por traidores. Ao mesmo tempo, numa batalha à beira do Mediterrâneo, entre os exércitos de Ptolomeu e Cleópatra, o de Cleópatra é derrotado, e ela é aprisionada pelo irmão. Em face da derrota, e disposta a morrer, César e seu exército a libertam. Nesse meio tempo, Sextus mata Ptolomeu e liberta Cornélia.
Em Alexandria, César e Cleópara triunfam. Cornélia e Sextus estão vingados, e passam os seus emblemas reais a César, e ele os repassa a Cleópatra. Os dois cantam um dueto de amor, e o povo, em júbilo, canta e celebra a paz e a felicidade.
As óperas barrocas eram escritas para cantores específicos. Num processo semelhante, a Wolf Trap Opera estabelece as suas temporadas anuais de acordo com as vozes que seleciona, dentre centenas de candidatos do país inteiro e do exterior. Dos seis papéis principais de “Giulio Cesare in Egitto”, quatro foram escritos para vozes  do tipo mezzo-soprano. Na estreia, em 1724, dois desses papéis foram cantados por “castrati”, um tipo de voz semelhante ao mezzo, em grande demanda na época.
Nesta atual produção, eles são cantados por dois contratenores, com vozes equivalentes, respectivamente por John Holiday no papel título, e Eric Jurenas, como Ptolomeu. Ambos os contratenores, descobertas recentes, têm vozes fortes, afinadas, com excelentes modulações. E ambos são bons atores, tendo com esses dotes valorizado seus personagens.
Mas a grande vitória da produção recaiu sobre Ying Fang, chinesa, treinada no Conservatório de Shangai, no programa para jovens cantores da Mtropolitan Opera, e na Juilliard School, ambos em Nova York. Muito jovem ainda, ela já se apresenrou em produções da Met, na Ópera de Aspen, Colorado, e na própria Wolf Trap Opera. Soprano ligeiro com qualidades dramáticas, ela possui uma voz de timbre cristalino, e é capaz de executar ornamentações vocais, de alta virtuosidade, como era a regra entre os grandes cantores do barroco. Ela combina essas qualidades com inegável talento de atriz, beleza e desenvoltura, presença de palco e sutil senso de humor. Em suma, um nome que ainda trará grandes surpresas.
Das demais três vozes  protagonistas, destaque-se a de Renée Rapier, jovem mezzo-soprano americana, de voz robusta, cheia, redonda, valorizada por atuação trágica envolvente. Os dois outros protagonistas Carolyn Sproule, soprano, como Sextus, e Jeongched Cha, baixo-barítono coreano, como Áquila, ainda precisam de tempo para amadurecerem suas vozes,  e aprimorarem-se como atores.
Antony Walker, o regente, atual diretor da Washington Concert Opera, é um tarimbado conhecedor do estilo musical barroco, e extraiu da orquestra vibrantes ritmos e cálida sonoridade. Ele conhece também o segredo das vozes, e soube fundi-las com os instrumentos, para formar um todo harmonioso e palpitante.
Chas Rader Shieber, responsável pela direção do espetáculo, optou por uma versão moderna, mas usou elementos da arte e da arquitetura do Egito faraônico, tanto na encomenda da cenografia, com as três pirâmides servindo de fundo permanente, enquanto a arquitetura do primeiro plano variava conforme a ação, como na encomenda dos penteados das escravas, inspirados no que vemos nas múmias. Mas a movimentação cênica, embora desenvolta e contemporânea, não dispensou a solenidade de óbvia natureza barroca.
Dentro desse esquema, a cenografia de Judy Gailen, os figurinos de Paul Carey e a iluminação de Robert H. Grimes chegaram a um termo de concordância com a direção, formando, assim, uma desejável congruência de estilo. Stephanie Rhodes conduziu com firmeza o coro, constituído de alunos participantes do estúdio da própria companhia, e cuja intervenção também contribuiu para o primor do espetáculo.
Menção especial seja feita a Kim Pensinger Witman, diretora da WTO, que passa uma boa parte do ano viajando e ouvindo centenas de vozes, antes de selecionar aquelas poucas, que acabam conferindo às temporadas da Wolf Trap Opera um nível de qualidade dos mais altos do país. Ela é também responsável pela adequação do repertório às vozes que consegue descobrir.

José Neistein
Washington, D.C.
Julho de 2014

Comentários

Postagens mais visitadas