SOM E SILÊNCIO. GUSTAVO DUDAMEL E A NONA DE MAHLER NA SALA SÃO PAULO. CRÍTICA DE VIVIANE CARNIZELO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.


"O silêncio está tão repleto de sabedoria e de espírito em potência como o mármore não talhado é rico em escultura."*
Em silêncio, Gustavo Dudamel caminhou até o centro do palco, recebendo, concentrado, os aplausos de boas vindas do público. À frente da Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, o jovem e consagrado regente venezuelano deu início aos primeiros acordes as Nona Sinfonia de Mahler.
Obra longa e de grande peso emocional, a Nona de Mahler é a última sinfonia completa do compositor - da décima, restaram apenas os esboços e o primeiro movimento. Em tom fúnebre tem início a Nona. Segundo Leonard Bernstein, quem ajudou a divulgar a obra do compositor durante o século XX, Mahler haveria pressentido que sua morte se aproximava, dando ao primeiro movimento um caráter triste e sombrio. Muitas especulações cabem na afirmação de Bernstein, mas pouco mais de um ano depois de escrita a sinfonia, Mahler descobriu que sua amada esposa Alma Mahler o traía com o jovem e proeminente arquiteto alemão Walter Gropius. Na tentativa de salvar seu casamento ou de recompor seus sentimentos, meses depois Mahler chegou a se consultar com Sigmund Freud. Se ele realmente tinha um pressentimento sobre o fim de sua vida, ele se provaria correto. Mahler não viveu mais um ano após sua desilusão amorosa.
A expectativa do público e a concentração dos músicos que antecederam o início da sinfonia logo se transformaram em uma execução de alto nível. Naipes bem timbrados e equilibrados se opuseram aos solos de caráter lírico, com destaque para o primeiro violino que, com pianíssimos precisos, comoveu a plateia mais de uma vez.
Com 90 minutos de execução, A nona de Mahler exige não apenas concentração, mas entrega emocional dos músicos, do maestro e também do público. Ao final de cada movimento, Gustavo Dudamel retornou ao seu silêncio inicial, tranquilizando a si mesmo e a todos os presentes. A cada pausa, a plateia parecia esperar um pouco mais do que viria a seguir, submergindo no vendaval de emoções a que Dudamel dava vida. Como dizia o poeta italiano, “E eu que ouvi o que não dizias, apaixonei-me por ti porque calavas.”** Dentre as tantas lembranças que a música de essência romântica de Mahler é capaz de cavar em seu ouvinte, talvez as que levem ao silêncio sejam sempre as mais aterradoras. A cada pausa, mais se mergulhava em Mahler, mais o público se perdia em si.
De momentos de magia se seguiu a Nona de Mahler. Apesar da extrema dificuldade da obra, imposta inclusive pelo tempo de execução, o que se ouviu foram entradas precisas das flautas, notas docemente entregues pelo toque das harpas, sonoridade cheia e enérgica da percussão e naipes inteiros de cordas tocando como um só instrumento em um palco com quase 100 músicos. Dudamel construiu sua Nona como quem cuidadosamente dá vida a algo precioso, efêmero e de grande importância. Ao fim do quarto movimento, o público já estava inebriado com o que ouvia e via. Um momento excepcional, porém, ainda estava por vir.
Soada a última nota da sinfonia, Dudamel manteve seu gesto no alto. Prolongou a resolução final da obra com suas mãos empostadas, deixando os músicos ainda atentos e a plateia em transe. Mesmo tendo ouvido a última nota, nenhum arco se baixou, nenhum músico se moveu, nenhum aplauso irrompeu. Todos estavam enfeitiçados pelo gesto silencioso de Dudamel, que congelou no ar após o ressoar do último instrumento. Estava findada a música de Mahler, mas não a de Dudamel. Por um minuto, o regente se manteve na própria música, levando a Sala ao mais absoluto silêncio, à magia da ausência de som.
Vagarosamente saindo de seu misto de devaneio e concentração, Dudamel baixou o gesto e viu sua orquestra relaxar no mesmo instante em que sua plateia explodia em calorosos aplausos. Dudamel produziu música, mas muito além disso, com uma habilidade rara de uma artista extremamente carismático, produziu silêncio. Um minuto completo de silêncio, de uma tensão que não se quebrava. O silêncio que sucede a última sinfonia de um grande compositor. Silêncio à Mahler.
Com o semblante iluminado, Dudamel deixou o palco. No mais profundo estado de encantamento, o público pediu bis e deixou a Sala apaixonado por música, por Mahler e pelo raro artista que é Dudamel. Além da música, quem presenciou este espetáculo leva consigo o poder arrebatador do silêncio. Como dizia Clarice, “Eu sei criar silêncio. O silêncio não é o vazio, é a plenitude”. ***
Viviane Carnizelo
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Agradecimentos à Sociedade de Cultura Artística que, além de proporcionar a vinda de Gustavo Dudamel com a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, teve o generoso gesto de acolher em seu espetáculo os mais de duzentos jovens que esperavam, sem ingresso, na fila de espera por lugares vagos.
*Aldous Huxley, escritor inglês em “Contraponto”, 1928.
**Olindo Guerrini, poeta italiano, sob o pseudônimo de Lorenzo Stecchetti.
***Clarice Lispector, escritora ucraniana naturalizada brasileira em “Um sopro de vida”, 1977.
Foto , Gustavo Dudamel, divulgação.

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