CEM ANOS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL: TRÊS COMPOSITORES QUE FALAM DELA. ARTIGO DE OSVALDO COLARUSSO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
O centenário do início da Primeira Guerra Mundial, que durou de 1914 a 1918, nos leva ao encontro de composições musicais de altíssimo nível, que foram escritas inspiradas em fatos que ocorreram provocados pelo conflito. A Primeira Guerra Mundial foi a mais devastadora e letal guerra ocorrida na Europa até então. Armas novas como as de ação química e a nascente aviação cumpriram uma destruição nunca vista, num curto espaço de tempo, no velho continente. Eu destaco três grandes compositores, que em meio a tantas mortes e tanta destruição acabaram encontrando um caminho pelo qual enxergamos a dor que assolou suas vidas.
Maurice Ravel: Le tombeau de Couperin (A tumba de Couperin)
Maurice Ravel (1875-1937) ficou revoltado com as agressões alemãs ao seu país. Apesar de sua pequena altura (1,61 metros) e de uma saúde sempre frágil ele se dispôs a atuar ativamente nas frentes de batalha. Pensava em ser aviador (os aviadores nesta época tinham pouca altura) mas acabou servindo como motorista de caminhão. Viu a guerra de perto, e perdeu inúmeros amigos. Sua personalidade extremamente tímida fez com que ele escrevesse uma composição em homenagem aos amigos que morreram que nem é patriótica e nem fúnebre: Le tombeau de Couperin (A tumba de Couperin), uma suíte em seis movimentos para piano solo. O termo “Tombeau de” era utilizado desde o século XVII como uma composição em homenagem a um grande músico que tinha recém falecido. Ao escrever” Tombeau de Couperin”, ele homenageia François Couperin (1668–1733), um dos maiores compositores do barroco francês. O nome dos movimentos da suíte, com seus títulos muitas vezes de danças típicas de uma suíte fracesa, deixa clara a homenagem ao passado musical de seu país, e é a partir deste passado que Ravel homenageia seu país e seus amigos mortos na guerra. Os movimentos são: Prelúdio, Fuga, Forlane, Rigaudon, Menuet e Toccata. Uma homenagem póstuma com a típica discrição do autor. Ao ser criticado por não ter feito uma obra fúnebre e dramática ele respondeu, bem do seu jeito: “Os mortos são suficientemente tristes, em seu silêncio eterno”. Extremamente tocante é analisarmos o que há por trás das dedicatórias de cada movimento:
O Prelúdio é dedicado ao Primeiro Tenente Jacques Charlot. Charlot, na vida civil, era músico, e um bom pianista. Foi ele que transcreveu, a pedido do compositor, para piano solo Ma mére l’oye, que originalmente foi escrita para piano a quatro mãos. Ravel tinha grande estima por ele.
A Fuga é dedicada ao segundo tenente Jean Cruppi. Neste caso a dedicatória envolve outra pessoa, a mãe do tenente. Madame Cruppi, que era muito amiga de Ravel (chegou a ser sua confidente) ficou muito abalada com a morte do filho. A família Cruppi (o pai era um respeitado político) acabou se desmantelando com esta trágica morte.
A Forlane é dedicaca ao Primeiro tenente Gabriel Deluc. Ele foi um importante pintor, e sua amizade com Ravel foi tão íntima que certos boatos circularam na época de que esta amizade tinha uma afetividade amorosa.
O Rigaudon é dedicado aos irmãos Pierre e Pascal Gaudin, mortos por uma mesma bomba no início da guerra. Eles foram amigos de infância do compositor, que mantinha um constante contato com a família, mesmo morando em Paris.
O Menueto é dedicado a Jean Dreyfus, em cuja casa convalesceu quando teve que abandonar o serviço militar, em 1917. Sua presença numa casa onde reinava a dor pela perda de um parente fez com que ele dedicasse ao morto, que ele não conheceu, o mais enigmático dos movimentos.
A Tocata foi dedicada ao capitão Joseph de Marliave. Marliave foi um grande musicólogo (seu estudo sobre os quartetos de Beethoven é magnífico) e era marido da pianista favorita de Ravel, Marguerite Long (1874 –1966). Foi ela que tocou pela primeira vez a obra, em abril de 1919.
Debussy: Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon (As noites iluminadas pelo ardor do carvão)
Debussy (1862-1918) sempre teve um certo sentimento hostil aos alemães. Quando a França foi atacada pelos vizinhos do leste o compositor já estava muito doente, e sua morte quase coincide com o final da guerra. Suas três Sonatas que ele escreveu durante o tempo da primeira grande guerra, assim como “Le tombeau de Couperin”, exaltam o passado musical da França, como uma espécie de homenagem a seu país. Por duas vezes, neste período, ele chegou a citar melodias que deixam ainda mais clara a sua intenção de se referir ao conflito: O segundo movimento de “En blanc et noir” (Em branco e preto, referência às teclas do piano) em que ele cita o coral protestante “Ein feste Burg” com cores grotescas, e na “Berceuse heroica”, em que ele homenageia os belgas mortos no conflito através da citação do hino nacional belga. Mas a obra que destaco, a última composição para piano do compositor, mostra um aspecto doloroso da vida do autor. O inverno dos anos de 1916/1917 foi extremamente rigoroso. Um vendedor de carvão, que tinha grande admiração pelo compositor não deixava de entregar, mesmo nas mais difíceis situações, a cota de carvão que Debussy necessitava para se aquecer. O músico fiou tão grato que compôs uma pequena peça para piano, e entregou o manuscrito apara o vendedor de carvão, como uma espécie de compensação pelos descontos que lhe foram feitos. Como título ele usa uma frase do poeta Baudelaire, que fala sobre carvão: Les soirs illuminés par l’ardeur du charbon (As noites iluminadas pelo ardor do carvão). O manuscrito só foi descoberto no início deste século, e a pequena peça relembra algumas composições antigas de Debussy. Outro retrato discreto dos horrores da guerra.
Alban Berg: Marcha das Três peças para orquestra opus 6
Alban Berg (1885-1935) incluía um fortíssimo senso dramático em suas composições. Não é por acaso que ele escreveu duas das mais importantes óperas do século XX: Wozzeck e Lulu. Em junho de 1914 Berg estava compondo algumas peças para orquestra, quando ficou sabendo do assassinato do arquiduque Francisco Fernando da Áustria em Sarajevo, fato que desencadeou a Primeira Guerra Mundial. Neste momento, e durante os anos da primeira grande guerra, ele compôs sua mais expressionista obra para orquestra, que acentua os acentos grotescos de uma guerra. Trata-se da Marcha, a terceira das Três peças para orquestra opus 6. Com acentos dignos dos quadros de Otto Dix (1891-1969), que retratavam os horrores da primeira grande guerra, ele transforma o ritmo típico de uma marcha num retrato de destruição. Num certo ponto desta marcha ele prevê diversas batidas de um gigantesco martelo, que parece mesmo destruir todas as vidas em seu redor. Este mesmo gigantesco martelo tinha sido usado por Gustav Mahler em sua sexta sinfonia (1904), e não há dúvida de que Berg encontra uma clara referência nesta obra. Do ponto de vista sinfônico não vejo um retrato melhor a esta e a todas as guerras.
Osvaldo Colarusso
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/falando-de-musica/
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