UMA BOA "SALOME" ESTREOU NO THEATRO DE BALÉ DO RIO DE JANEIRO. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Os números são implacáveis: Municipal do Rio é teatro de balé e de aluguel.



Preâmbulo
A primeira coisa que me chamou a atenção quando me sentei na plateia do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na última quarta-feira, para a pré-estreia de Salomé foi o fato de alguns músicos da orquestra estarem distribuídos por duas frisas e um camarote.
Mas esperem aí: o fosso não foi reformado para que recebesse “a orquestra de Strauss”, como se divulgou à época da conclusão das obras de restauração do Theatro, quando surgiram as primeiras críticas referentes à desfiguração das duas frisas supracitadas (aquelas que ficam bem em cima do fosso, uma de cada lado)? Afinal, a orquestra de Strauss cabe ou não no fosso do Theatro Municipal do Rio de Janeiro?
Registrado isso, Salome (Salomé em português), ópera em ato único de Richard Strauss sobre um libreto preparado pelo próprio compositor, com base na tradução alemã da escritora Hedwig Lachmann do drama homônimo que Oscar Wilde escreveu em francês, é apenas a segunda ópera que sobe ao palco do Municipal do Rio neste ano de 2014.

A produção
É de bom nível geral a montagem atualmente em cartaz no Theatro Municipal, e merece a visita, principalmente em uma cidade cujos produtores e administradores culturais praticamente ignoram a ópera enquanto manifestação cultural.
A concepção de André Heller-Lopes, apesar de bastante simples, funciona bem no palco, com todos os cantores/atores muito bem dirigidos. O diretor opta por unificar personagens menores, como o capadócio e o quinto judeu, e também o segundo soldado e o segundo nazareno: pecados menores que não atrapalham a interpretação da obra pelo público.
O cenário, criado pelo próprio diretor, é composto basicamente por uma grande cortina ao fundo, algumas cadeiras e outras tantas luminárias, além do necessário alçapão de acesso à cisterna onde o profeta está preso. Tudo muito simples (padrão TMRJ), mas bastante funcional, e a cena resta lindamente enriquecida pela iluminação impecável deFábio Retti. Merece destaque especial o belo efeito visual do momento derradeiro da dança dos sete véus, quando Salomé fica completamente nua.
Os belos e bem executados figurinos de Marcelo Marques contribuem bastante para o resultado visual da produção, ao contrário da coreografia simplória e quase sem graça de Eric Frederic para a sempre aguardada dança da protagonista.
Na récita de estreia, em 22 de agosto, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, conduzida com correção por Sílvio Viegas, ficou exposta especialmente no início da apresentação, quando mostrou problemas de sonoridade em algumas passagens. No decorrer da noite, o conjunto cresceu e acompanhou muito bem a soprano solista em seu longo monólogo com a cabeça de Jochanaan.
Dentre os responsáveis pelas partes secundárias e terciárias, quem esteve muito bem foi Homero Velho, como o Segundo Soldado e o Segundo Nazareno, personagens fundidos conforme mencionado acima. Murilo Neves (Primeiro Soldado), Ivan Jorgensen (Narraboth), Geraldo MathiasWeber Duarte e Geilson Santos(Segundo, Terceiro e Quarto Judeus, respectivamente), e ainda o ator Caetano Pimentel (Naaman – aquele que corta a cabeça do profeta) estiveram bem. Lara Cavalcanti (Pajem) e Patrick Oliveira (Quinto Judeu e Capadócio, também fundidos) não chegaram a comprometer; enquanto Luiz Furiati (Primeiro Nazareno e Escravo, fundidos) e Ossiandro Brito (Primeiro Judeu) não estiveram nada bem.
A mezzosoprano Carolina Faria apresentou, como sempre, um desempenho cênico muito bom como Herodias (ou Herodíades, como preferirem), e enfrentou com coragem uma partitura que, pelo menos por ora, está além de suas atuais possibilidades vocais. Quem sabe no futuro ela possa voltar com mais propriedade a esta terrível personagem?
O tenor irlandês Paul McNamara foi, no geral, um bom Herodes, captando com competência a essência do personagem. Mas quem brilhou bem mais foi o baixo-barítono Lício Bruno, que fez um ótimo e profundo Jochanaan (o profeta João Batista). Bruno, a propósito, foi o único solista que, em momento algum, foi coberto pela orquestra, mesmo quando cantou embaixo do palco.
A soprano italiana Cristina Baggio foi uma ótima e bastante musical Salomé. A artista demonstrou domínio de cena e ofereceu ao público uma voz potente e muito bem projetada, apesar de ter sido coberta pela orquestra em algumas poucas passagens de sua região média.
Antes, na pré-estreia, a personagem-título foi defendida por Eliane Coelho, grande artista brasileira que por anos a fio interpretou a protagonista em importantes palcos do mundo, especialmente na Ópera de Viena, mas que só agora, pela primeira e última vez, “se veste” de Salomé em casa, no Rio de Janeiro. Não é de se estranhar. Afinal, o nosso Municipal do Rio não tem temporadas de ópera de verdade: só finge que tem, para enganar os trouxas. E o pior é que há trouxas que gostam de ser enganados…
Eliane ofereceu ao público convidado para a pré-estreia uma Salomé que, se não é a mesma que ela cantou tantas vezes no exterior há alguns anos, é bastante segura e dramática. Sua voz pode não estar “sobrando” como em outros tempos (assim como a colega italiana, foi coberta em algumas poucas passagens da região média), mas sua técnica impecável e seu domínio do palco continuam cativando a atenção do espectador. E, a propósito, a diva não fez feio na dança dos sete véus: mostrou boa forma e não fugiu da nudez. Eliane sempre estará entre as grandes.

Teatro de balé e de aluguel
O título desta resenha crítica, no qual chamei o Theatro Municipal do Rio de Janeiro de “teatro de balé”, tem a sua justificativa. O Municipal deveria ser um teatro de ópera, mas está mais para teatro de balé. Os números não costumam mentir, então vamos a eles, compilados no próprio site do Municipal.
Por títulos (entenda-se: programas diferentes apresentados, sem contar reapresentações): entre março e agosto subiram ao palco do TMRJ apenas 9 produções com pelo menos um dos seus Corpos Artísticos, e nada menos que 41 produções de terceiros (OSB, OPES, Dell’Arte e outros produtores).
Por apresentações (aqui as reapresentações são contadas): entre março e agosto subiram ao palco do TMRJ 41 concertos ou espetáculos com pelo menos um dos seus Corpos Artísticos, e 49 concertos ou espetáculos de terceiros, sendo que: dessas 41 apresentações com pelo menos um dos Corpos Artísticos do Municipal, nada menos que 24 (58%) referem-se apenas aos balés Nuestros Valses/Novos Ventos e La Bayadère.
A atenta leitura desses números explica duas coisas: primeiramente, o porquê do irônico “teatro de balé” do título desta resenha; e, também, porque eu sempre faço questão de dizer que dona Carla Camurati nada mais é do que uma gerente de pauta. Afinal, o TMRJ apresenta mais produções de terceiros do que suas próprias produções. É, na prática, um teatro de aluguel.
Ah, mas dona Carla costuma se defender quanto a isso dizendo que ela aumentou a arrecadação do Municipal. Sei… mas, se ela realmente aumentou a arrecadação, por que então não se percebe esse aumento de receita na programação própria do Municipal, que é tão diminuta quanto a que ela recebeu de seu antecessor?
Observação: neste levantamento, as apresentações da série Ópera do Meio-Dia não foram computadas, por se tratarem de espetáculos de pequeno porte, de caráter alternativo, apresentados em local e horário alternativos. Por óbvio, tais apresentações só poderiam ser comparadas com outras também alternativas.

Falta de organização
Esta Salomé é um excelente exemplo da organização (ou falta de) do Theatro Municipal do Rio. Vejam só:
1- inicialmente, a atual montagem seria dirigida por Alberto Renault; depois, foi oferecida ao argentino Marcelo Lombardero (o mesmo diretor da produção chilena deBilly Budd, trazida ao Rio no ano passado); e por fim caiu nas mãos de André Heller-Lopes;
2- o tenor que interpretaria Herodes seria, inicialmente, Paulo Queiroz; depois, foi anunciado Ricardo Tuttmann; e por fim o personagem foi entregue a Paul McNamara;
3- até meados de julho, não se sabia quem interpretaria as partes de Jochanaan e Herodias, sendo que o primeiro barítono anunciado foi Leonardo Neiva, e só depois Lício Bruno foi confirmado.
Se o nome disso não é bagunça, eu não sei qual é o nome disso. E, para completar, dona Carla Camurati escreve no programa de sala da Salomé: “Nesta montagem, que integra a programação artística desenhada pelo Maestro Isaac Karabtchevsky (…)”.
Dona Carla deveria poupar a minha inteligência e também a de todo o público que frequenta o Municipal. “Programação artística desenhada” só pode ser piada, um sarro de dona Carla. Uma programação artística “desenhada” com esmero e com cuidado, num teatro pobre e que quase não monta ópera nenhuma, como é o caso do Municipal, jamais traria, em um mesmo ano, a Carmen e a Butterfly. Jamais.
Esta é, sim, uma programação corriqueira, quase “parida”, mas nunca, em hipótese alguma, “desenhada”. Era só o que faltava!

Fábrica de Espetáculos e Música e Imagem
Recentemente, o Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro publicou dois contratos do Municipal que me chamaram a atenção:
1- o primeiro, no valor de R$ 320 mil, com uma espécie de ONG do cenógrafo Gringo Cardia, chamada “Spectaculu – Escola Fábrica de Espetáculos”, para organizar e ministrar cursos de cenotécnica e outros cursos semelhantes. Cursinhos caros, não? E é muito curioso notar, para dizer o mínimo, que a tal ONG de Gringo Cardia tenha quase o mesmo nome da tal Fábrica de Espetáculos, aquela nova Central Técnica do Municipal que, até agora, a gente não sabe bem o que vai “fabricar”, nem o Municipal esclarece direito, visto que o Theatro não produz quase nada;
2- o segundo contrato, no valor R$ 228 mil, com a 3 Tempos Produções Culturais Ltda., é para exibir o filme O Garoto na Série Música e Imagem. Filmezinho caro, não? Aqui, o curioso é notar que quase todos os filmes apresentados até hoje na referida série têm seus direitos atrelados a essa mesma empresa.
Diante de tudo isso relatado acima, eu só posso perguntar: falta muito para dezembro?
Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/

Foto do post: Eliane Coelho durante a dança dos sete véus (foto de Sheila Guimarães)

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